quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Tudo o que é grande se constrói sobre mágoa e a gênese da solidão.

Em outubro do ano passado conversei com Leandro Márcio Ramos, autor do livro de contos “Tudo o que é grande se constrói sobre mágoa”, seu livro de estreia, lançado pela editora independente Ugra Press. O livro foi lançado originalmente em 2011, teve uma segunda edição e atualmente encontra-se esgotado. Isso é bom, pois mostra que autores independentes têm público e, também ruim, pois quem não pegou este livro interessantíssimo com capa feita à mão, dificilmente encontrará algum exemplar por aí. Enfim...

"O homem por sobre quem caiu a praga da tristeza do mundo, o homem que é triste para todos os séculos existe e nunca mais o seu pesar se apaga! Não crê em nada, pois, nada há que traga consolo à mágoa, a que só ele assiste. Quer resistir, e quanto mais resiste mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga. Sabe que sofre, mas o que não sabe é que essa mágoa infinda assim, não cabe na sua vida, é que essa mágoa infinda transpõe a vida do seu corpo inerme; e quando esse homem se transforma em verme é essa mágoa que o acompanha ainda!"   Augusto dos Anjos.

Quando terminei a leitura do livro foi com esta sensação descrita acima que fiquei imaginando o personagem M. O livro mostra as desventuras de um personagem, aparentemente, em uma cidade grande, com desejos que pulsam, mas que a realidade insiste em mostrar a contrariedade em estar vivo.

Leandro deixa de lado seu conhecimento musical* e foca apenas em literatura, e que literatura! Não se engane em acreditar que o livro é uma miríade de sucessivas desgraças, o autor também fala de forma franca de amor, tesão, liberdade, passado, e vamos encontrando brechas potentes onde podemos inferir uma rebelião exasperadora em querer demolir a contemporaneidade, esta vida contemporânea que nos mostra diariamente uma classe política essencialmente corrompida e com cada vez menos serventia, o miserável papel de uma elite pouco educada e nada comprometida com o bem comum, a decadência moral das religiões que em algum momento serviu como incubadoras de valores, a imersão cultural em que a causa principal é o consumo, a falta de mobilidade social, a impunidade como administração pública, uma partidocracia cada vez mais cínica e disfuncional e um sistema educacional público sem esperança.

Ramos não se prende em uma ou outra inspiração. O autor tem coragem, pois não se deixa ser caricaturado neste ou naquele pensamento, escola, paranoia. Sua escrita foge de amarras é desprovida de discursos de uma política só, e conseguiu ter uma essência toda costurada. Quem neste atual cenário filisteu conceberia histórias que intercalam Cioran e Cortázar, por exemplo? O autor não tem vergonha de dizer que odeia, mas também se apaixona, que é rude, mas também cede. Não seria isto uma verdadeira liberdade para o fracasso como dizia Hilst?

Certa vez eu escutei um diretor de cinema falando que “escrever era um ato solitário” e o que Ramos fez é praticar um ato solitário falando de solidão, mas não só, utilizando situações emocionais desconcertantes. Isto dá uma ideia geral da porrada de sua escrita.

Se você ficou interessado você pode ler os textos de Leandro Márcio no seu novo blogue http://comovoltarparacasa.blogspot.com.br/. E como lerá abaixo “Tudo que é grande se constrói sobre mágoa” é só o começo de uma longa guerra entre palavras.

*O autor teve papel relevante em bandas underground paulistana de música extrema.  




O Marcelino Freire quando publicou o primeiro livro que ele odeia e não recomenda ninguém comprar. Dizia que ele precisava expurgar, pois aquilo era uma exasperação. Recordo que você fala algo parecido, de por pra fora o desespero, o cansaço, parte daí você pensar em publicar um livro?

Especificamente esse meu primeiro (e por enquanto único) livro tem sim muito do ato do exorcismo, de expurgar demônios, de dar vida ao que pulsa por dentro. Eu não sabia que o Marcelino falava isso de seu primeiro livro, mas ele está certo: algumas das primeiras coisas que escrevi são patéticas. Tenho a felicidade de não as ter publicado, mas ainda as guardo em cadernos sebosos nas gavetas de casa. Um dia desses li o meu primeiro caderno de poesias, deveria ter uns 14 anos, e ele era cheio de versos apaixonados e rebeldes. Eu lia Rimbaud e Byron e Álvarez de Azevedo e estava com o coração virado para uma mocinha que não me dava a mínima, então pode imaginar o desastre. E junto com esses versos amorosos, outros de inspiração nitidamente punk, clamores por "liberdade" e "absoluto", cheios de imagens surreais. Alguns em verso livre, outros em rimas horrorosas, não importa: o resultado, embora impublicável, faz parte do exorcismo, de por para fora o que mastiga as vísceras e tira o sono.

Então eu sempre escrevi desse modo, de modo sentimental, e é desse modo a única maneira que consigo escrever. O que ocorreu com o passar do tempo é que, mesmo mantendo o ímpeto de escrever apenas em estados emocionais extremos, passei a ser mais exigente comigo mesmo, buscando formas mais adequadas de expressão - e então demoro mais para escrever, meu processo é lento, muito lento. No "Tudo o que é grande..." tratei então de compilar apenas os textos que achava mais representativos, aqueles onde os demônios estavam devidamente dilacerados. Ainda assim, reescrevi muitas partes de todos eles, para que a versão impressa fosse única, além de escrever o conto "O colecionador" especialmente para essa edição, e que jamais será publicado online. Considero, inclusive, esse conto como o perfeito exemplo do "exorcismo rebuscado" que busco hoje, em vomitar sentimentos e pensamentos de modo mais lapidado. Obviamente que muitos poderão se identificar e ver nos meus textos diversos sentidos - mas antes de qualquer coisa, escrever para mim sempre será um ato de egoísmo, de guerra contra mim mesmo.

Certamente tua narrativa tem um modo único. Explico, na primeira parte do livro nota-se que existe um diálogo com autores pessimistas como Cioran e Nitszche, mas no desenrolar dos contos, temos surpresas como referências ao Cortázar. A ideia era mostrar este transitar do narrador pela literatura em diferentes histórias e ânimos?

Não, isso ocorreu ao acaso. Quando surgiu a ideia de compilar os contos do blogue em um livro, busquei diferentes formas de organizá-los. Coloquei todos os textos em um único arquivo e fui lendo e revisando aquilo diversas vezes. Nessas incontáveis idas e vindas, percebi que alguns temas sempre se repetiam nos meus escritos; e discutindo com o Douglas e a Dani (o "casal 20" que comanda a Ugra Press) achamos que seria legal organizar os contos nesses eixos temáticos - que são "Cidade", "Mulheres" e (mais abstrato) "Mágoa". Os dezessete contos são divididos, portanto, por laços de afinidade com esses temas, que se repetem como uma obsessão no que escrevo. E esses temas estão presentes nesses escritores que você citou (e são todos eles grandes referências para mim, Cioran principalmente). Cortázar é um danado que me ensinou muitas coisas, e quando escrevi "Da sutileza de certos desejos" eu estava mergulhado na obra dele e, também, naqueles primeiros momentos do nascimento de uma nova paixão, então ele saiu com aquela tonalidade cor-de-rosa. Gosto muito dele. E é preciso esclarecer: mesmo escrevendo sob o tormento dos afetos, não necessariamente eles são feitos de dor. Os sentimentos que transbordam podem ser sublimes. E depois que os sentimentos são transformados em texto, são sublimados, deixam de ser tormento e viram registro. Mesclam elementos inventados com experiências e, no torvelinho do processo criativo, transformam-se em pura ficção - mas uma ficção em cuja veias corre um sangue feito de experiências cruas e extremas.


Na segunda parte me espantou positivamente a sensibilidade como são descritas as mulheres, mesmo no período de "secas". O personagem M. estaria mais para um romântico do "mal do século" ou apenas um cara contemporâneo com crises existenciais e problemas de ser amado em uma cidade grande? 

Estaria mais para uma mistura de tudo isso, uma espécie de "forever-alone do mal do século com crises existenciais", e que ainda por cima curtiu muito Sisters of Mercy, Bauhaus e Christian Death sozinho em casa quando adolescente. Não tem como negar as raízes, as primeiras coisas que escrevi foram justamente após a leitura de "Noite na taverna", e estão impregnadas daquela aura decadente que coloca a mulher em um pedestal e a realização amorosa como um absoluto.


Imagino que você tem uma ligação muito forte com a música, mas acredito que não existem conexões entre a música e a literatura em seu livro, estou certo ou errado?

Não, não existem, mas na primeira versão de "Cidade-orgia" eu fazia uma citação à música "I got erection" do Turbonegro http://dissolvecoagula.blogspot.com.br/2010/05/cidade-orgia.html . Na versão impressa, resolvi retirar. Mas acho que a ligação entre música e literatura rende muito. Estou escrevendo um romance agora e nele quero experimentar muito mais essas conexões com a música, que está presente em praticamente todas as horas do meu dia.

Recentemente você disse que o Dissolve e Coagula chegou ao fim, mas sua jornada literária terá outro nome, "Como Voltar pra Casa". Isto é um novo processo de criação para um novo livro?

Na verdade o "Como voltar..." não tem ligação direta com o processo de composição desse novo livro. Eu só queria sepultar de vez um blog que não estava mais sendo o foco de minhas atenções, e que registrou um percurso de minha existência. Talvez alguns elementos do blog se cruzem com os desse novo livro (que sei lá quando termino, sou leeeeeeento), mas a princípio é só a minha nova "casa" nessa nau de veneno chamada Internet.

 Terminando aqui, só mais uma pergunta, tenho sofrido bastante com este mar de lama virtual, o que você faz para filtrar tanta ignorância e o que recomendaria para as pessoas?

Eu não filtro nenhuma ignorância virtual - eu as absorvo, todas. Nunca bloqueei ninguém em redes sociais, mesmo aqueles mais imbecis e reacionários, até para saber o que se passa na cabeça geral desse tipo de palerma. Acho que a única forma de filtrar a lama virtual é, certamente, ficar fora da Internet. Não há escapatória. Já fiz minhas reclusões, farei outras certamente, mas anseio pelo momento de fazer a definitiva. Como o Drogo de O Deserto dos Tártaros, anseio pela minha batalha definitiva, nutro a esperança de uma mudança radical de hábitos. Se virá ou não, a minha sanidade mental comprovará.

Sobre recomendação, não sei o que dizer.  Recomenda-se em geral com um tom de "ei, faça isso, é legal, é bom" mas ultimamente não tenho feito nada, tenho apenas ficado quieto o máximo de tempo possível. Em todos os momentos que fiz algo me arrependi depois. Por isso, minha recomendação hoje é essa: não faça nada. Abdique da ação. Torne-se objeto e não mais sujeito. Desista e fique quieto, parado, curtindo o som de sua respiração, mergulhado em seus próprios pensamentos. Não tem nada lá fora, não tem nada aqui dentro.

Muito obrigado Leandro, por dispender um tempo.
Cara foi um prazer enorme. Sinto-me honrado de verdade.




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