Orgulho e
preconceito
É bastante provável que, se
qualquer um de nós tivesse vivido durante uma das grandes épocas da arte, das
vanguardas ou dos mais importantes avanços culturais, essas novidades, mudanças
de paradigma e novos caminhos teriam passado completamente despercebidos por
nós.
Imaginemos que vivemos no que os
historiadores depois chamariam de Renascimento. Seríamos capazes de reconhecer
a importância do que estava acontecendo? Por mais otimistas que queiramos ser,
apenas um punhado de pessoas podia estar consciente da revolução que estava em
curso, já que a maioria das obras de Giorgione, Ticiano e muitos outros que
hoje admiramos livremente em grandes museus e em alta resolução no Google
Imagens estavam destinadas a ser contempladas apenas por privilegiados.
Pouquíssimos teriam acesso
pessoal às diferentes cortes italianas (Florença, Veneza, Roma etc.) onde esse
movimento começou a se desenvolver, e menos ainda possuiriam a cultura
classicista, a formação neoplatônica e a visão humanista para assimilá-las como
as explicamos hoje em dia. E nem mesmo isso: poucas pessoas teriam a mínima
educação visual ou literária para sequer entendê-las em sua forma mais básica.
Pensemos até no lugar que ocupamos no mundo atual e confessemos: se vivêssemos
naquela época, seríamos você e eu parte dos poucos que sabiam ler?
É claro que o exemplo citado, ou
outros que poderíamos imaginar (a corte espanhola dos Habsburgo e dos Bourbons,
a clientela burguesa de Rembrandt ou régia de Rubens, os arrivistas do Palácio
de Versalhes...) apresentam obstáculos puramente sociais e econômicos que nos
teriam impedido de acessar tais ambientes para exercer nossa capacidade de
julgamento estético. E poderíamos pensar que, em uma época em que a arte fosse
mais acessível, teríamos acertado.
Paris, 1863. Napoleão III abre ao
público geral o chamado Salão dos Recusados, e milhares de pessoas riem
estrondosamente de Manet, Whistler, Fantin-Latour, Jongkind, Pissarro e outros.
Seríamos dos poucos que reconheceriam o valor deles? E nas vanguardas
seguintes? Aplaudiríamos a arte dadaísta? Estaríamos entre os poucos
conhecedores contemporâneos do acionismo vienense? Teríamos feito parte do
pequeno círculo de amigos e viciados da geração beat antes de se tornarem
populares? Estaríamos morando numa ocupação no Londres de 1975 durante a
explosão do punk?
Com essas perguntas, às quais
seguramente poucos (e entre os quais não me incluo) responderiam
afirmativamente, entendemos que a arte mais avançada não apenas costuma passar
despercebida por seus contemporâneos, como às vezes é desprezada pela grande
maioria, exceto por alguns poucos clarividentes, cuja abertura mental, intuição
e fruição dessas novas tendências não se baseiam apenas na bagagem cultural,
mas na ausência de preconceitos e na aceitação do que é difícil, complexo e
áspero.
Em toda época há um esforço a ser
feito para compreender o que há de mais inovador. E apenas alguns, ao longo da
história, estiveram dispostos a fazê-lo.
O fato é que, antes da nossa
cultura globalizada e da chegada da névoa digital — termo cunhado de forma tão
acertada por Mery Cuesta —, a maioria das vanguardas artísticas, culturais e
musicais que hoje admiramos aconteceram em lugares muito específicos e
começaram como variações menores, evoluções desprezadas ou propostas rejeitadas
pela maioria. Como acabamos de ver, não seria soberba pensarmos que seríamos
dos poucos escolhidos, afinados com o underground ou com a vanguarda da época,
que saberiam reconhecer que estavam diante de algo grandioso?
Hoje em dia, temos a vantagem de
que a grande arte do passado — mesmo aquela que começou de maneira mais
marginal — foi reconhecida, sancionada, canonizada, santificada e alçada aos
altares do bom gosto pela crítica artística, pelos catedráticos, pelos historiadores,
pelas instituições bancárias que patrocinam exposições, pelos curadores, pelos
(raros) programas culturais da televisão atual, e por aí vai. Assim, é difícil
errar! E, claro, tudo isso com o benefício da retrospectiva: poucos,
insistimos, souberam ver isso contemporaneamente. Então a pergunta é óbvia: e
quanto às vanguardas atuais, ou seja, aquelas que serão reconhecidas no futuro?
Somos capazes hoje, com nossa
cultura superior, nossa abertura mental e sensibilidade artística, de deduzir
quais são esses movimentos que um dia serão considerados revolucionários? Já
vimos de tudo e estamos completamente livres dos preconceitos que influenciaram
o julgamento dos cidadãos de outras épocas? Saberíamos reconhecer um futuro
Monet, Pollock ou Bacon em uma exposição de artistas amadores, desconhecidos ou
de bairro? Ou ainda seríamos como aqueles que riram dos impressionistas sem
saber que tinham obras-primas diante dos olhos?
Tudo indica que sim. Que, como
sempre ocorreu, em algum lugar do mundo estão se desenvolvendo tendências
artísticas, provavelmente alheias ao que está estabelecido, mas em diálogo
direto com ele — seja por oposição, seja por complementaridade. Que, muito
perto ou muito longe de nós (o que já não deveria ser um problema, graças à
internet), estão sendo feitas propostas visuais, cinematográficas, musicais,
gráficas, narrativas etc., que hoje ignoramos ou, se as tivermos diante de nós,
desprezaríamos.
Se tudo isso for verdade, há uma
dessas tendências que, sem dúvida, reúne todos os elementos para se tornar um
desses tipos de arte. Um movimento nascido de uma oposição radical a tudo que
até agora foi sistematizado pelo universo musical e sonoro popular ocidental,
profundamente combativo e em confronto com as ideias de bom gosto, com o
burguês, o sagrado e o conformista. Feito por indivíduos com intenções tão
modestas que nunca tentaram alcançar mais do que um pequeno grupo — e hoje seus
seguidores (igualmente vilipendiados) somam centenas de milhares em todo o
mundo. Ainda assim, nenhum sistema conseguiu institucionalizá-los, nenhum banco
os patrocinou, nenhum museu os consagrou — e, por isso, o público em geral, a
crítica e a imprensa (salvo honrosas exceções) lhes dedicam há trinta anos a
mais absoluta indiferença, condescendência e desprezo.
Uma tendência que, só de ver o
visual dos artistas que a produzem, já é assumida como marginal (perpetuando
uma discriminação cultural tradicional por parte da crítica). Uma tendência
que, embora poucos pareçam perceber, está projetando na música popular alguns
dos grandes temas da alta cultura tradicional — temas que até bandas artísticas
aclamadas por publicações “hip” parecem ignorar. Uma tendência rotulada, em
muitas ocasiões, como infantil, absurda e risível. Exatamente como aconteceu em
cada uma das revoluções citadas.
Portanto, por mais provocador que
possa parecer, o metal extremo pode ser um desses movimentos.
Do cubismo aos braceletes com
spike: primitivismo e sofisticação
A presente dupla de artigos lida
com alguns dos preconceitos que pesam sobre o gosto de tantas pessoas cultas,
que colocam um véu entre seu tímpano e suas ideias. Por isso, dividiremos o
texto em duas partes: a primeira abordará as ideias, estéticas e elementos
culturais que o metal extremo cria ou resgata do passado para perpetuá-los; a
segunda será dedicada aos elementos formais e sonoros que tanta dificuldade
causam ao ouvinte iniciante.
Começando pela primeira parte, e
centrando-nos nos elementos puramente visuais, quem se depara pela primeira vez
com o metal extremo se vê exposto a todo um universo de escuridão, demônios,
motivos satânicos, cruzes invertidas, couro e espinhos, cabelos compridos ou
cabeças raspadas, corpos cobertos de sangue, crucificações, blasfêmia… A
mensagem é clara: hic sunt dracones (aqui há dragões).
A estética do metal extremo
(vinculada à do heavy metal, mas distinta dela, por mais que à primeira vista
pareça semelhante) provém de várias fontes diferentes — desde o universo leather
original, popularizado entre heterossexuais pelo Judas Priest, até o punk e
toda uma plêiade de negações que estudaremos mais adiante, mas que são mais
comuns do que parecem dentro da história da cultura.
O curioso é perceber como esses
temas — outrora universais, elevados e elitistas, raramente compatíveis com o
popular — agora são patrimônio não exclusivo, mas sim fundamental, de um dos
universos musicais mais rejeitados por qualquer noção de alta cultura. E isso
quando o metal extremo se alimenta justamente de um de seus elementos mais
fundamentais: o primitivismo.
Seguindo esse raciocínio, se
visitarmos qualquer museu ou galeria contemporânea, apenas o edifício, as
salas, o entorno, a assinatura, o patrocínio, a decoração ou o uniforme dos
seguranças já bastam para revestir com uma aura de sofisticação qualquer tipo
de arte que ali esteja. O contexto é a medalha definitiva de que uma obra foi
aceita pelo sistema: lembremos que o mictório de Duchamp se torna arte não
apenas por sua assinatura, mas por ter adentrado um espaço físico destinado a
sancionar o que é arte.
Portanto, mantendo esse
exercício, se víssemos essas mesmas obras em outros contextos — por exemplo, se
víssemos no casebre imundo onde Pollock pintava, sem saber que era dele; ou
peças de arte povera ao lado de um contêiner de lixo reciclável; se
encontrássemos obras descontextualizadas de Beuys; ou estivéssemos diante de um
edifício brutalista de Le Corbusier sem saber que era seu — talvez não
perceberíamos a sofisticação validante desse contexto, como aconteceu — ápice
da nossa argumentação — com a faxineira que, em outubro de 2015, jogou no lixo
a instalação Where shall we go dancing tonight?, de Sara Goldschmied e
Eleonora Chiari, em Milão, composta apropriadamente pelos restos de uma festa.
E é que muitas dessas obras,
quando retiradas do contexto sofisticador de um museu ou galeria, permanecem
como aquilo que a vanguarda pretendia que fossem: obras primitivistas.
Se considerarmos, para os objetivos
deste artigo, o impressionismo e sua rejeição à técnica acadêmica como a
primeira vanguarda, e citarmos em linhas gerais o pós-impressionismo, o
construtivismo, o cubismo, o futurismo, o dadaísmo, o primeiro surrealismo, a
nova objetividade, a abstração ou o expressionismo abstrato, entre muitos
outros, veremos que uma das maiores tensões entre público e artistas, no fim do
século XIX e meados do XX, é justamente a tensão entre muitos artistas que
buscavam escapar da sofisticação, do acabamento, do academicismo e da limpeza
formal, deixando-se inspirar por elementos “primitivos”, antiacadêmicos ou não
ocidentais (do ponto de vista contemporâneo), como o japonismo, a arte
africana, a arte encontrada, o arte povera, o trash art…
Essa tensão também está presente,
como veremos mais adiante, no campo das vanguardas musicais eruditas. Mas
dentro da chamada “música popular” — hoje prisioneira da indústria fonográfica
—, a necessidade de gerar sucessos de massa fez com que a maioria das propostas
sonoras de vocação pop no século XX se tornasse algo suavizado e revestido,
quase sempre, por um ar de sofisticação. E ainda que pareçam difíceis, como
veremos, na imensa maioria dos casos essas propostas seguem baseadas em
princípios plenamente assimilados pelo Ocidente.
O jazz, por exemplo — não veio
ele da fusão entre a música africana, o blues e várias tendências marginais dos
bairros pobres de Nova Orleans, que precisaram ser devidamente suavizadas até
se transformarem no pálido swing de salão dos anos 1930 e 1940? O bebop
não é uma forma incisiva e agressiva de reagir contra essa placidez branca e popular?
As maravilhosas capas do hard bop da Blue Note não eram uma maneira de
sugerir ao público que estavam diante de algo mais sofisticado? É acaso que a
capa de um dos álbuns mais vendidos da história do jazz (Time Out, de
Dave Brubeck) seja justamente uma obra de arte abstrata?
Minha aposta (que, se eu perder,
ainda assim me proporcionou centenas de horas de prazer auditivo) é que, com o
tempo — seja em anos ou décadas —, virão críticos e especialistas que nunca
estiveram lá para nomear, quando o cadáver já estiver frio, o metal extremo
como um dos movimentos de vanguarda da arte entre os séculos XX e XXI.
No entanto, sua sonoridade será
igualmente aceita pelo gosto das pessoas do futuro? Minha previsão é que não —
e que isso não importará: poucos assistem em casa aos DVDs de Nam June Paik,
poucos ainda sabem o que Cézanne realmente queria fazer, poucos escutam Merzbow
ou Esplendor Geométrico no dia a dia, poucos pendurarão em casa reproduções de
Joel-Peter Witkin… E, no entanto, todos eles serão reconhecidos para sempre.
Em nome de Satã: sobre o
demônio e suas encarnações musicais
Ao começar a estudar os elementos
mais ásperos da temática e da estética do metal extremo, analisaremos três em
particular que, ao neófito ou ao ouvinte externo, provocam reações vivas de
escândalo, terror, riso, acusações de infantilismo e, o que pessoalmente mais
me irrita: condescendência.
E é que o restante da arte parece
se sentir confortável em um mundo “adulto” de obras que falam dos mil e um
clichês do amor Disney, da intelectualidade pop de um semanário de tendências,
dos tropos gastos e da pose existencial como elemento-chave da dita
sofisticação; uma rejeição ao que é pedestre, rural, tradicional (primitivo)...
O metal extremo também aborda uma
vasta gama de temas — e também fala de amor em todas as suas variantes, das
questões sociais e seus desafios, da reivindicação política, do protesto
existencial e muito mais, incluindo temas mais exóticos como o que chamaremos
de “o sublime cósmico”. No entanto, o público em geral tende a fixar-se, não
sem razão, em outros temas menos habituais e bem mais escandalosos, como o
terrorismo, a tortura, o assassinato, os serial killers, entre outros — e
trataremos aqui de três particularmente polêmicos: o satanismo, a guerra e a
violência explícita.
Falemos de Satã. A simples menção
desse nome (adequadamente traduzível por “adversário”) ainda provoca todo tipo
de reações emocionais no avançadíssimo século XXI da internet, da nuvem e do
colisor de hádrons, porque carrega a força dos símbolos mais básicos que o ser
humano preserva na base de qualquer ideia de cultura. Pronunciar em voz alta
“Satã” (faça isso) ainda provoca um certo nervosismo, um riso aliviado, uma
condescendência nada neutra ou, diretamente, um sinal da cruz disfarçado.
Considerando que, por outro lado,
pouquíssima música que trata de religião entra nas paradas de sucesso, a ideia
de que uma divindade — e ainda por cima “maligna” — possa ser o centro temático
de canções, discos, versos, refrões e imprecações soa estranha ao ouvinte
contemporâneo. E, no entanto, não poderia estar mais enganado: não só grande
parte do cancioneiro tradicional ocidental é, obviamente, de origem religiosa,
como também grande parte da história da música (financiada e patrocinada pela
Igreja) é sacra. Mas, nesse caso, para tranquilidade dos piedosos e
bem-pensantes, os grandes compositores do passado exaltaram o bem e a luz,
certo? A resposta é: não.
De fato, um olhar sobre a música
e a literatura da Idade Média em diante nos revela que Satã sempre foi uma
personagem com a qual se podia brincar de muitas maneiras, e que a fascinação
pela liberdade que representa (em oposição à repressão cristã) é tão humana
quanto alguns dos maiores escritores e compositores da história, que se
deixaram tentar não poucas vezes por sua figura ao compor suas melhores obras.
E, na verdade, um percurso pela cultura ocidental nos permite identificar ao
menos quatro encarnações do anjo caído.
A primeira delas é o que chamamos
de Satã bíblico, que, como o nome indica, é uma encarnação do mal dentro do
reino de Deus. Esse Satã medieval é simplesmente o demônio bíblico, a
personificação da maldade, da morte, da tentação, da possibilidade de não alcançar
a salvação eterna e do domínio do pecado. Ele aparece sob a forma de monstro
devorador para advertir os perigos de não seguir adequadamente a moral, os
preceitos e mandamentos cristãos, servindo em suma como gerador de medo da
condenação ao inferno ou da perda do paraíso, em contos, pinturas e livros
iluminados.
É esse o Satã preso no nono
círculo do inferno em A Divina Comédia de Dante Alighieri, mas também
aquele que se manifestava em uma forma musical chamada trítono, que, segundo
Telemann, os antigos chamavam de diabolus in musica, e que esteve
proibida ou pelo menos não normalizada até o Romantismo. É também o Satã que
aparece nas letras de bandas de metal extremo como Abaddon Incarnate, Altar,
Angelcorpse, Arallu, Celtic Frost, Dead Congregation,
Decrepit, Deicide, Immolation, Incantation, Morbid
Angel, Pyrexia, Sinister, entre muitos outros.
Mas a figura de Satã como
príncipe das trevas não termina aí: sua linguagem se sofistica, ele sai do
inferno e se torna o Satã mefistofélico — precisamente aquele que se tornará
símbolo universal dos pactos demoníacos, ainda hoje um clichê no cinema e na
literatura. Esse demônio é abraçado por Marlowe, Goethe e Thomas
Mann sob o nome de Mefistófeles, pois sua capacidade de pactuar com o homem
quando convocado o transforma em um Satã mágico e esotérico, que atende a
cerimônias, sabás e feitiços, e que pode ser invocado por meio de símbolos,
encantamentos e litanias para negociar — tradicionalmente em troca da alma. E
novamente, é esse espírito satânico pactuante que sobrevive hoje nas músicas de
Absu, Acheron, Akercocke, Archgoat, Barathrum,
Behemoth, Black Funeral, Christ Agony, Deathspell Omega,
Dark Funeral, God Dethroned, Samael, Vader, Vital
Remains, entre muitos outros.
Já plenamente imersos no espírito
romântico, com os novos tempos e a ânsia de rebelião, e com a nova valorização
do artista como espelho de sua época (e opositor aos sistemas absolutistas), a
cultura passa a demandar um novo adversário: o que chamamos de Satã heróico, um
Prometeu libertador e caído, que prefere “reinar no inferno do que servir no
céu”. É, obviamente, o Satã de John Milton em O Paraíso Perdido,
mas também o de Lérmontov em O Demônio, Baudelaire em As
Litanias de Satã ou Giosuè Carducci em seu Inno a Satana; A
Tragédia do Homem de Imre Madách, As Tentações de Santo Antão
de Flaubert, as Cartas da Terra de Mark Twain e, claro, Là-bas
de Huysmans, entre muitos outros autores como James Hogg, Edward
Bulwer-Lytton, Jules Michelet, Marie Corelli, George
Bernard Shaw, Ferenc Molnár ou Washington Irving.
Caso pareça que apenas os
literatos estavam fascinados por Satã durante o Romantismo, lembremos que
compositores como Charles-Valentin Alkan compuseram seu Les
Diablotins nessa época; que virtuoses como Giuseppe Tartini ou Niccolò
Paganini talvez tenham pactuado com Ele para tocar Il trillo del diavolo
ou La risata del diavolo; que até Liszt compôs a Faust
Symphonie, uma polca e quatro valsas Mefisto, e que Gounod, Schumann,
Strauss II, Berlioz, Boito e Wagner também
“negociaram” com o novo libertador. Essa tradição, hoje praticamente ausente da
indústria musical popular (você imagina um hit satânico nas paradas? E Marilyn
Manson?), continua viva e inspiradora em bandas rebeldes como Agathodaimon,
Arcturus, Cradle of Filth, Emperor, Entombed ou Ulver.
Ainda podemos registrar mais uma
encarnação entre as evoluções do caído: o Satã niilista é filho do século XX —
uma figura que encarna o mal desvinculado de tudo o que é divino, como
responsabilidade exclusiva do homem e seu impulso de autodestruição. Após o
pacto mefistofélico com as grandes potências, as guerras mundiais, o
Holocausto, o rearmamento e o terrorismo global, já não se pode culpar nenhum
deus por nossas desgraças — o homem abraça a violência, na arte e na vida, como
consequência de seu próprio ser: na forma de drogadição, alcoolismo,
criminalidade, depressão, bullying, redes sociais e o culto à cultura da
violência. De Nietzsche a Heidegger, Baudrillard, Brassier,
o dadá, o punk, Clube da Luta, o Coringa, a heroína,
Burroughs ou Ligotti… o novo Satã tem campo fértil para prosperar
em nós.
Essa última encarnação não
elimina ou substitui os outros portadores da luz, pois Mefistófeles e o
Prometeu napoleônico continuam e continuarão entre nós graças a conceitos como
a pós-modernidade e seus derivados. E. Hoffman Price, Katharine
Burdekin, Alfred Bester, Lord Dunsany ainda se fascinam por
eles — assim como Anatole France, John Collier, Robert Bloch,
Neil Gaiman, William Peter Blatty, Terry Pratchett, Philip
Pullman, Thomas Mann, Bulgákov, Stephen King, entre
muitos outros, incluindo, é claro, toda a história do cinema até hoje. A música
recente esqueceu o diabo? Não. Ele continuou presente em obras de György
Ligeti, Bax, Wuorinen, Ralph Vaughan Williams, Stravinsky,
Prokófiev, Meynaud — e não nos esqueçamos das Seguidillas del
Diablo do mestre Joaquín Rodrigo. Por isso, e por tudo o que foi
dito antes, o aporte de bandas como Abruptum, Aeternus, Anaal
Nathrakh, Arkhon Infaustus, Beherit, Belphegor, Carpathian
Forest, Craft, Darkthrone, Gorgoroth, Impaled
Nazarene, Mayhem, Mütiilation, Sarcófago ou Mysticum
não é apenas absolutamente contemporâneo, mas também, ao contrário da maioria
dos universos musicais populares atuais, segue de forma coerente e clara uma
tradição centenária praticamente em solidão.
Esperamos, agora, que se entenda
que, se em algum concerto, verso ou letra nos ouvir gritar “Ave Satã!”,
não estaremos sacrificando nenhuma cabra nem bebendo o sangue de nenhuma
virgem. Estamos apenas bebendo de — e comungando com — uma liberdade, rebeldia
e ausência de medo centenários.
Que chova napalm: o bélico
como estética e escândalo.
Talvez, com uma dose de otimismo,
pudesse se pensar que estamos nos referindo, é claro, às típicas baladas
pacifistas do rock e do heavy metal, aquelas em que uma multidão acendia
isqueiros em comunhão, cantando em coro pelo fim de um conflito. E embora tal
imagem jamais vá acontecer diante de um palco onde toque uma banda de metal
extremo, é verdade que algumas de suas canções rejeitam a ideia da guerra. No
entanto, outras não apenas a toleram, como também a apoiam, a glorificam e
fazem sua apologia. Quem, em sã consciência, faria canções sobre conflitos
globais e massacres históricos? Outro dos temas que fazem o ouvinte alheio ao
universo do metal extremo franzir a testa é a temática bélica.
Como ocorre com o satanismo, a
atual correção política, a necessidade de nos mostrarmos virtuosos e a nova
moral conservadora que surge da obrigação de respeitar toda sensibilidade e não
incomodar ninguém sob pena de linchamento virtual, em público rasgamos as
vestes ante a ideia de que uma manifestação artística que não se destine a uma
bienal, à ARCO (Feira Internacional de Arte Contemporânea) ou a algum espaço
reconhecido como transgressor possa tratar artisticamente — e nem sempre
pacificamente — de algo como a guerra. Mais uma vez (vale a pena imaginar), é
possível visualizar canções pró-guerra em qualquer emissora pop ou premiação da
música?
O metal extremo utiliza de forma
normalizada a temática bélica em suas letras, e a razão pela qual às vezes o
tom é pacifista e, em outras, o completo oposto, se deve simplesmente à
natureza da guerra: ela acontece. Ela tem sua própria estética e é mais uma das
temáticas que a história da literatura universal (alta literatura, se quisermos
ser pedantes) abordou continuamente e que, hoje em dia, volta a ser ignorada —
talvez por ser desconfortável (não por falta de guerras, obviamente). E vale
lembrar que, na grande maioria dos casos, o metal extremo não se posiciona
politicamente de forma clara. O que ele faz — e esta é a palavra-chave — é
descrever. De maneira tão fria quanto o faria uma fotografia de Robert Capa ou
de Tim Page. Esse distanciamento estético é sua principal contribuição, seu
elemento identificador e a fonte de todas as polêmicas a respeito.
Pode-se até argumentar que as
próprias origens da literatura e da narrativa como tradição cultural provêm de
temas bélicos, afinal, a Ilíada de Homero não é a história de uma longa
batalha? Os Comentários sobre a guerra da Gália, de Júlio César, não são uma
autobiografia para maior glória de si mesmo? E o poema com que Ramsés II se
autoenaltece no relato da batalha de Kadesh em 1274 a.C., não é também uma
história de guerra? No Mahabharata hindu, do século IX a.C., já se expõem
teorias como a da "guerra justa", e o caminho da literatura até a
Idade Média está pavimentado com cantares de gesta e feitos de grandes
guerreiros como o celta Cú Chulainn em Táin Bó Cúailnge, do século I, o
fragmento de Finnsburg do ano 1000, bem como os mais conhecidos Chanson
de Roland de 1140 e, claro, o Cantar de Mio Cid de 1195... ou seus
herdeiros contemporâneos, como O Senhor dos Anéis, do famosíssimo J. R.
R. Tolkien, ou o outro homem das três iniciais, G. R. R. Martin, e sua Canção
de Gelo e Fogo.
Por isso, ao longo da história
convivem duas tendências: uma admirativa de tudo que é bélico, que exalta a
valentia, o ardor guerreiro, o choque das armas, o sangue derramado e a
aclamação do vencedor, com obras como o Manifesto Futurista de Marinetti
e sua frase: “Glorificaremos a guerra — única higiene do mundo —, o
militarismo, o patriotismo, o gesto destrutivo dos que trazem a liberdade, as
belas ideias pelas quais vale a pena morrer.” Podemos somar a isso Tempestades
de Aço, de Ernst Jünger, a literatura de guerra como as Memórias de
Omar Bradley, as obras controversas de Sven Hassel ou o pulp castiço de Boixcar
em Hazañas Bélicas. Obras incômodas, não é? Pois têm equivalente musical
no mundo clássico, começando por Beethoven e sua Vitória de Wellington
ou Batalha de Vitória, de 1813, sua Germania e, é claro, a Sinfonia
nº 3 Eroica; não esqueçamos O Cerco de Trípoli, de Benjamin Carr
(1804), A Vitória do Exército Italiano, de Jean-Jacques
Beauvarlet-Charpentier (1797), A Batalha dos Hunos, de Franz Liszt
(1857), e citemos, ainda que brevemente, obras similares de Saint-Saëns,
Schönberg, Antheil, Blitzstein, Khachaturian ou Shostakóvich.
Talvez agora não pareça tão
estranho o enfoque de bandas de metal extremo como Vader (Litany),
Slayer (South of Heaven), Metallica (Kill ‘Em All), Marduk (Panzer
Division Marduk), Morbid Angel (Domination), Ancient Rites (Rubicon),
Sodom (Agent Orange), Bolt Thrower (The Fourth Crusade) ou os
fantásticos holandeses Hail of Bullets, que atualizam de forma quase literal o
conceito de “cantar de gesta” com três álbuns dedicados a diferentes campanhas
e marcos da Segunda Guerra Mundial: Of Frost and War, de 2008, narra
diferentes aspectos, frentes, batalhas e episódios do front oriental desde o
início da Operação Barbarossa em 1941 até a queda de Berlim em 1945; On
Divine Winds, de 2010, retrata a campanha do Pacífico em seus variados
cenários, como Guadalcanal, a ação dos kamikazes ou a rendição japonesa; e III:
The Rommel Chronicles, de 2013, narra cronologicamente a carreira do
referido marechal, desde seus êxitos na Primeira Guerra Mundial até seu
suicídio forçado por sua relação com o atentado fracassado contra Hitler em 20
de julho.
Mas será que o metal extremo e a
cultura estão destinados apenas a glorificar o casus belli e suas
consequências? Não há espaço para a reivindicação pacifista? Claro que sim,
embora seja curioso notar como a literatura antibélica é um fenômeno
relativamente recente; talvez antes do século XX e do surgimento da fotografia
que permitiu ao mundo ver os grandes massacres, os conflitos estivessem
excessivamente distantes do olhar público, glorificados pela propaganda. O fato
é que essa literatura humanista toma forma como movimento ou adjetivo a partir
de obras como Nada de Novo no Front, de Erich Maria Remarque, O Bravo
Soldado Švejk, de Hašek, e continua com célebres relatos como Johnny Vai
à Guerra, de Dalton Trumbo, Company K, de William March, Por Quem
os Sinos Dobram, de Hemingway, A Um Passo da Eternidade, de James
Jones, Os Nus e os Mortos, de Mailer, Matadouro-Cinco, de
Vonnegut, Ardil 22, de Joseph Heller, Duas Mulheres, de
Moravia...
Mas existe também uma música
antibélica? Curiosamente, seu desenvolvimento também é mais tardio, e o grosso
da produção parece pertencer aos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial,
embora algumas obras coincidam com ela no tempo, como a Sinfonia nº 2,
de Khachaturian, Um Sobrevivente de Varsóvia, de Schönberg, a Sinfonia
nº 2 “Hiroshima”, de Penderecki, O Diário de Anne Frank, de Frid, War
Scenes, de Ned Rorem, dedicada aos mortos do Vietnã, a homenagem a Whitman
que é The Wound-Dresser, de John Adams... E, claro, a inesquecível (e
aparentemente esquecida) Os Desastres da Guerra, de Mario Rivière. E,
por que não, dentro do próprio metal extremo, podemos citar faixas do Metallica
como “One” ou “Disposable Heroes”, discos como Rust in Peace, do
Megadeth, com seu libelo antinuclear, a denúncia do estresse pós-traumático dos
soldados feita pelo próprio Slayer em “Eyes of the Insane”, e outros como
Sacred Reich (“Surf Nicaragua”), Sepultura (“Territory”), Gorefest (“The
Glorious Dead”), Napalm Death (“The Kill”), Terrorizer (“Fear (of) Napalm”) e
Nasum, Brutal Truth, Rotten Sound...
Por que essa dualidade? Por que
ao mesmo tempo o antibelicismo e a exaltação da violência? A resposta é que,
diante da escolha supostamente moral entre rejeitar ou promover a guerra — e da
relativa resposta imoral que nasce das circunstâncias de cada conflito —, o
metal extremo, como faz ao tratar de outros temas, prefere adotar uma
perspectiva perfeitamente amoral, na qual se descreve simplesmente o que se vê,
o que ocorre e as consequências do que acontece, por mais horríveis que sejam,
simplesmente porque acontecem. Minha interpretação pessoal é que esse tom frio,
desapegado e, como disse, essencialmente amoral, pretende apenas servir de
espelho à condição humana, sem necessariamente julgá-la ou rejeitá-la, mas
aceitando-a como um elemento ineludível do que é ser humano, com todas as
contradições que isso implica.
A natureza da besta: a paz
interior pela catarse da violência.
Essas contradições são conaturais
tanto ao ser humano quanto ao metal extremo e, por mais que sejam rejeitadas
externamente, um rápido olhar sobre a cultura pop atual nos permite ver que
outros temas, como a violência explícita, são tão comuns nela quanto em outras
manifestações de massa.
Porque, é razoável que se
censurem várias músicas dos especialistas em gore Cannibal Corpse, a ponto de
não poderem tocá-las ao vivo sob pena de multa, quando The Walking Dead
é um sucesso televisivo de massas? Videogames como Resident Evil e toda
a pletora de ficção sobre zumbis não contêm violência explícita e selvagem? Uma
visita ao Museu do Prado não é um passeio pelas infinitas formas de torturar,
martirizar e matar? Não há necrofilia, literal ou sugerida, em obras de autores
como Swinburne, Oscar Wilde ou Bataille — e até mesmo em Uma Família da
Pesada? Alguém se escandaliza porque best-sellers como Stephen King, Bret
Easton Ellis ou Cormac McCarthy descrevem relações carnais com mortos? Uma
selvageria como Martyrs, de Pascal Laugier, não foi financiada com apoio
público, da Canal+, de três produtoras, e seus direitos de distribuição
adquiridos pelos irmãos Weinstein? Por que há mortes reais, execuções,
acidentes, assassinatos, vídeos de armas e um longo — e danoso — etcétera ao
alcance de qualquer um no YouTube?
Por que, então, o metal extremo é
criticado, vilipendiado e rejeitado por seu retrato da violência? Por que um
estilo musical minoritário, que não é transmitido por rádios públicas, cujos
videoclipes mal circulam fora da cena metálica, feitos conscientemente para um
público pequeno e sem nenhuma intenção de alcançar as massas, que não é uma
indústria poderosa ou lucrativa em nenhum sentido e cujas letras são
ininteligíveis devido ao estilo vocal com que são interpretadas... por que é
rejeitado, criticado e atacado, ainda mais se sua influência sociocultural é
mínima?
Talvez a razão seja que temas
como satanismo, guerra ou violência poderiam contribuir para formar indivíduos
com tendências antissociais, psicopáticas ou indesejáveis, e por todas as
fixações e obsessões descritas (e deixamos de fora muitas, acreditem, muito
saborosas), a dedução pareceria fácil.
O problema para quem quiser
acreditar nisso é que, por exemplo, em junho de 2015 a Universidade de
Queensland (Brisbane, Austrália) publicou um artigo demonstrando que o metal
extremo, entre outras músicas “violentas”, ajuda a processar sentimentos como raiva
e frustração, e que os níveis de ira, hostilidade, irritabilidade e estresse
diminuíam ao ouvir esse tipo de música, que, ao que parece, regula sentimentos
como a tristeza e aumenta as emoções positivas. E em 2007, a britânica National
Academy for Gifted and Talented Youth revelou que um “número
desproporcional” de seus membros escolhiam o metal como sua música favorita. E
que outro estudo da Heriot-Watt University (Edimburgo) analisou as respostas de
trinta e seis mil pessoas de seis países e concluiu que os fãs de música
clássica e de metal têm muito mais em comum do que parece, sendo geralmente
descritos como criativos, gentis e em paz consigo mesmos (o mesmo estudo,
aliás, concluiu que os fãs de indie careciam de autoestima e ética de
trabalho). E, por fim, que um estudo da Universidade Hebraica de Jerusalém
demonstrou que os fãs de metal tendem a ser mais felizes e tranquilos, por meio
do conceito de “raiva construtiva” que, por meio da catarse, os purifica
interiormente de sentimentos negativos. Não nos surpreende, então, que no
Brooklyn, uma yogini chamada Saskia Thode tenha criado o “Black Yoga”, em que
os praticantes realizam suas asanas ouvindo drone, ambient experimental
e black metal.
Até aqui, esperamos ter
demonstrado que o metal extremo é artisticamente meritório, filosoficamente
interessante, musicalmente profundo e vitalmente saudável.
Sabemos que não é para todos. Mas
temos orgulho dele, de quem somos e de em quem ele nos transformou.
Acima tratamos dos elementos
éticos, temáticos e estéticos do metal extremo, é possível que tais apoios
culturais tenham despertado no leitor iniciante um interesse pela própria forma
da música ou, melhor dizendo, por seu som (a ênfase é importante).
Nesse sentido, um dos problemas
que hoje envolvem a assimilação dos movimentos mais radicais — sejam eles quais
forem — é a sua aceitação superficial, leitura diagonal, consumo instantâneo de
Instagram ou simples opinião de Twitter. No entanto, ao contrário da recepção
imediata das artes visuais tradicionais, a música — assim como o cinema —
impõe, por sua natureza, um sentido de tempo que lhe é próprio e irredutível, e
que, como tal, deve ser processado através do ato da escuta.
Entretanto, como também
mencionamos, há no metal extremo uma dificuldade adicional: em geral (veremos
exceções), seu som costuma parecer monolítico, embaralhado, indistinto,
agressivo, atonal e, muitas vezes, abertamente hostil — o que provoca, a
princípio, reações de rejeição bastante compreensíveis.
Existe, porém, outra música,
situada aparentemente no extremo oposto do espectro cultural e musical, que
também se mostra monolítica, embaralhada, indistinta… E tão indigesta para o
recém-chegado quanto o nosso metal extremo. Falamos, é claro, de outro universo
baseado na experimentação com sons (às vezes, como veremos, em oposição à
tradição musical ocidental), silêncios e texturas, que, assim como o rejeitado
metal, se agrupa conceitualmente em uma infinidade de termos, escolas e estilos
como o atonalismo, o futurismo, o serialismo, a dissonância, a politonalidade,
os clusters, o minimalismo, e por aí vai. Trata-se, em conjunto, de um
movimento que mistura nomes familiares para quase todos (como Philip Glass ou
John Cage) com outros mais obscuros e desconhecidos, até mesmo para os
iniciados.
Seria inútil procurar até hoje
uma relação direta de influência formal ou temática com o metal extremo (embora
eu tenha certeza de que isso acontecerá — e em breve), mas algo que ambas as
manifestações musicais têm em comum é a exigência que impõem ao ouvinte diante
do aparente radicalismo de suas propostas. E dentro de seus respectivos mundos
— tanto da música chamada “clássica” ou sinfônica quanto do rock ou da música
popular — são manifestações que figuram entre as menos escutadas.
Como sabe o fã de Ferneyhough,
Von Bose ou Pablo Rivière, esses compositores são reservados para ciclos
específicos em auditórios tradicionais; e mesmo dentro da muito qualificada
Radio 3 da BBC, tais estilos são meramente representativos. É uma música complexa,
difícil e talvez o mais importante: para o recém-chegado que não deseja fazer
esforço, ela chega a ser feia.
De fato, ela não busca satisfazer
o ouvinte com momentos doces, melodias pegajosas, árias heroicas ou estruturas
tradicionais e de fácil assimilação, mas sim se compraz na dissonância, em
silêncios desconfortáveis e, por vezes, no puro ruído. No entanto, embora seja
improvável que alguém relaxe em casa com obras de Stockhausen ou Russolo, ou as
leve no iPod para tornar o dia mais leve, associamos esse universo à alta
cultura — com músicos de fraque e vestidos longos, salas de concerto
institucionais e patrocínios bancários — o que, sem dúvida, lhe confere ao
menos uma respeitabilidade e um selo de qualidade evidentes. É, como dissemos
no artigo anterior, a celebração da sofisticação escolhida.
É por essa dificuldade de
assimilação — quando não pelo incômodo da rejeição — que, obviamente, a
indústria musical voltada para o grande público não se preocupou em introduzir
um equivalente dentro de sua engrenagem produtiva. Mas, talvez por acidente e
seleção natural, é exatamente isso que o metal extremo oferece — ao menos
formalmente e como experiência auditiva (e não poucas vezes também
conceitualmente).
Mas como assimilar sua validade
dentro do espectro da música popular? Que apoios temos para apreciá-lo para
além do aparente ruído que o compõe? Como pode a agressividade, a escuridão e a
demência que ele parece conter ser compatível com nossas sensibilidades?
Vejamos três elementos sonoros que o tornam especialmente difícil — e cuja
compreensão teórica pode esclarecer algumas dessas dúvidas.
O metal extremo não é heavy
metal
É compreensível que, para a
maioria dos não iniciados, o metal extremo e o heavy metal pareçam a mesma
coisa. Seus seguidores, em muitos casos, aparentam sê-lo e, certamente, muitos
escutam músicas de ambos os movimentos. E é por isso que muitos dos tropos,
lugares-comuns e maneirismos de um são aplicados ao outro. Mas nem
musicalmente, nem no que diz respeito à ética ou à estética, estamos falando da
mesma coisa.
A maneira mais fácil de
diferenciá-los, fazendo um exercício sempre injusto, mas esclarecedor de
simplificação, é que o heavy metal está baseado em pressupostos conservadores,
enquanto o metal extremo contém em si uma tensão progressista que o impulsiona
a romper inevitavelmente suas próprias normas e formas, renovando suas
possibilidades ad infinitum.
Você consegue imaginar um fã do
Iron Maiden, Blind Guardian ou Rage aceitando realizar remixes techno de suas
músicas? Pois foi exatamente isso que clássicos como Morbid Angel, Napalm Death
e Brutal Truth fizeram na coletânea da Earache Hellspawn (Extreme Metal
Meets Extreme Techno). Consegue imaginar o Manowar incluindo ritmos,
influências e até trompetes afro-caribenhos ou brasileiros em qualquer um de
seus álbuns? Pois tais influências podem ser ouvidas em discos como World
Demise do Obituary, Chaos A.D. do Sepultura ou nos mexicanos Acrania
em seu recente Fearless. É comum ouvir toques ou passagens de jazz em
LPs do Saxon, Hammerfall ou Grave Digger? Pois tais elementos, por exemplo,
oriundos do jazz fusion, são claramente apreciáveis em discos-chave de bandas
de death metal técnico como Atheist, Cynic ou Pestilence (Elements, Focus
e Spheres, respectivamente).
O heavy metal é um universo
admirável pelo orgulho que manifesta em suas conquistas musicais, coros épicos,
solos virtuosos, fidelidade a um estilo de vida e veneração infinita por seus
heróis clássicos, como os imortais Judas Priest, Motörhead ou Led Zeppelin. No
entanto, musicalmente, sempre se sentiu mais confortável perpetuando
indefinidamente os tropos dessas bandas, além de incontáveis outras como Deep
Purple, Rainbow ou Black Sabbath… mais as contribuições pontuais do thrash
metal, do hard rock ou até do folk; mas nunca renunciou a suas estruturas
básicas nem —o mais importante— à sua raiz nos sons melódicos, clássicos e
derivados do blues.
Esse último fator é precisamente
o que o metal extremo começa rejeitando de forma categórica, com seu nascimento
proposto em 1981 com Welcome to Hell do Venom. Um dos méritos da banda
britânica, tantas vezes incluída à força na NWOBHM, consistiu justamente em
tomar a distorção, a épica e o senso de espetáculo do nascente heavy metal,
sim, mas substituindo o senso de melodia e os modos do blues por uma influência
contemporânea muito menos "agradável": o punk.
De fato, o recém-nascido metal
extremo abraça o punk via Venom e começa a desenvolvê-lo com os primeiros
grupos de culto, como os suíços Hellhammer ou os suecos Bathory. Ainda são
lembradas e comentadas as incontáveis críticas destrutivas que a imprensa do
rock e do heavy metal tradicionais dedicou a esses pioneiros, sem entender
minimamente que estava sendo criada uma atitude inédita e um som novo.
E é o componente punk que não só
transforma esse som do primeiro metal extremo em algo bárbaro, primário e, em
suma, primitivo (não fazia o mesmo o expressionismo?), como também dota o
movimento de algo fundamental: a irreverência. Mas atenção, não apenas em
relação às demais manifestações musicais (que, na realidade, tende a ignorar),
mas esse senso de insubordinação será aplicado a qualquer tentativa de
sistematizar ou homogeneizar seu som, mesmo que as pressões venham de dentro.
É por isso que no metal extremo
existem duas tensões, uma mais que conservadora e outra absolutamente
libertadora, que se misturam, se opõem, brigam e se enfrentam na trajetória de
cada uma das bandas que pertencem a ele, e que pode fazer com que uma banda
comece fazendo brutal death metal e acabe fazendo pop rock sinfônico
(Anathema), outra inaugure o estilo chamado death metal sueco e acabe flertando
com o garage rock escandinavo (Entombed), e outra comece em um ambiente
cavernoso de doom/death para alcançar supervendas de um technopop gótico
sensual (Paradise Lost).
O interessante é que o componente
punk chega a criar um senso de autocrítica, metarreflexão e até autoparódia
(como qualquer fanático por Darkthrone sabe), que no heavy metal está presente,
mas de forma acidental, inconsciente e ingênua (o que filmes como Spinal Tap
ou Anvil imortalizam), enquanto no metal extremo isso é paradoxalmente
sério, fomentado e aceito (bandas como Immortal, Impaled Nazarene ou grande
parte do universo do thrash metal o utilizam frequentemente como leitmotiv).
O que acontecerá quando, em uma
década ou duas, os maiores ícones do heavy metal tiverem desaparecido? Suponho
que haverá uma plêiade de incontáveis bandas que prolonguem seu som de forma
fiel e reverente, e que ele será basicamente o mesmo, uma recriação continuísta
ad infinitum que reproduza o que os deuses do estilo conquistaram, tal
como ocorre com estilos como o garage rock, o jazz de Nova Orleans, a maior
parte do country ou certo tipo de cantautores.
No entanto, quem pode imaginar
que rupturas, misturas, avanços, revoluções e novos caminhos terá aberto o
metal extremo…?
A parede sonora: brutalidade,
distorção e ruído
Outro dos elementos que mais
costumam chocar quem se depara pela primeira vez com praticamente qualquer
estilo do metal extremo é a enorme quantidade de distorção nas guitarras, o
alto volume da bateria intensamente onipresente, ou a profundidade e densidade
de um baixo que, como os demais instrumentos, costuma estar afinado vários tons
abaixo do normal... Tudo isso configura uma parede de som que, para o novato, é
puro ruído e, para o iniciado, é um conjunto de matizes sempre distintos e
sempre notáveis.
Além disso, há um elemento que
especialmente incomoda as pessoas: a voz. Embora não seja de forma alguma uma
regra que ela deva ser agressiva (em suas variações “gritada”, “rasgada” ou
“gutural”, entre outras), o fato de que às vezes ela seja tão grave afasta não
poucos estranhos e até mesmo alguns do próprio meio (novamente, é comum até
mesmo entre fãs de rock ou heavy metal, acostumados ao som distorcido, ouvir
queixas sobre a estridência ou guturalidade da voz).
Este é, sem dúvida, o conjunto de
elementos puramente sonoros que mais pode gerar rejeição em qualquer curioso.
Qual é o sentido de tanta distorção? Por que muitas dessas bandas parecem roçar
o ruído em seus discos? Por que essa ânsia de fazer uma música o mais brutal
possível?
A resposta para essa pergunta é
dada por um dos maiores especialistas em jazz do mundo, autor, entre outros, do
famoso The History of Jazz e do indispensável The Standards of Jazz,
Ted Gioia. Em seu último livro, How to Listen to Jazz, o músico e
crítico nos lembra algo que tantas vezes esquecemos: que existem outras
tradições além da europeia e ocidental na hora de criar arte.
Gioia nos lembra que a tradição
africana concebe a música como a criação de sons, o que obviamente não é
o mesmo que notas. O Ocidente (que ainda domina hoje em dia a música
popular) baseia sua música no sistema pitagórico de notas escalonadas em doze
subdivisões, convenção que persiste até hoje. Mas a tradição africana
permaneceu durante séculos livre dessa limitação, podendo basear sua música em
outros tipos de gradação de sons diferentes das notas — igualmente valiosos,
por mais rudes ou “primitivos” que pareçam a muitos “ocidentais”. Gioia
demonstra como o jazz enfrenta desde sua origem essa tensão, e os resultados,
obviamente, formam um dos estilos mais ricos da história da música.
Com essa explicação, fica mais
fácil entender que o metal extremo também baseia, ao menos em parte, sua arte
na criação de sons. É verdade que, pelo tipo de instrumentos trastejados que
são usados (guitarras e baixo), há notas na mistura. Mas também é verdade que a
maneira de as tocar — particularmente atonal, às vezes cromática, rejeitando as
convenções dos modos e escalas tradicionais, convertendo os instrumentos em
recursos melódico-percussivos e imergindo seu som numa massa de distorção
uniformizadora —, em muitos casos anula o efeito das notas e nos proporciona
algo diferente: uma textura.
Apreciar e distinguir essas
texturas é um dos maiores prazeres e emoções do metal extremo: desde os
ultra-graves arrastados de bandas de death metal como Incantation, até
as passagens velozes e técnicas que os alemães do Obscura nos oferecem;
desde o elegante e cru minimalismo dos primeiros discos do Skepticism,
dentro do estilo chamado doom/death, até o som gélido de geada e vento que, em
suas vertentes mais atmosféricas (Burzum) ou mais rápidas (Enslaved),
os grupos do black metal norueguês nos proporcionam.
Mas por que os gritos?, talvez
ainda se pergunte o leitor. Obviamente, há várias explicações técnicas: como o
fato de que a voz consegue escapar assim da necessidade de emitir ou entoar
notas; que a tessitura ultra-grave ou rasgada do vocalista acaba se assemelhando
à distorção das guitarras e fornece mais uma camada à textura geral; que, às
vezes, a quantidade e velocidade com que as notas são executadas tornaria muito
forçado ou inútil tentar emitir melodias vocais coerentes...
Ou, simplesmente, porque o grito
— usado não poucas vezes em outras disciplinas artísticas — é a manifestação
mais clara, sincera e natural da dor e do ódio humanos.
Do baterista como
metralhadora: blast beats e hipervelocidades
Outros fatores que também saltam
aos olhos — ou melhor, aos ouvidos — dos recém-chegados ao estilo são outras
peculiaridades que, aparentemente, o metal extremo tem explorado como nenhum
outro, e que tanto impressionam quanto estranham os de fora, como os tempos
extremos em que a máquina metálica se move. Também não são novos: muitos
bateristas de jazz podem competir com os de grindcore.
Mas, mais uma vez, comete-se um
erro comum ao tomar a parte pelo todo: assim como a voz gutural está longe de
ser a única opção dentro de estilos como o death metal, as velocidades mais
altas não são necessariamente dominantes nele ou no black metal. De fato,
representam uma grande parte de sua identidade e são um recurso frequente, mas
insistimos: não devem ser tomadas como regra.
Certamente, apesar de tudo, esse
conceito é tão importante que começou a se desenvolver com o thrash metal e as
influências punk (a banda norte-americana Repulsion é o precedente mais
lembrado, embora não o único). Tão importante é, dizemos, que o metal extremo
desenvolveu um nome próprio para essa técnica de bateria, que chamamos de blast
beat.
Mais uma vez, seria simplista
pensar nessa técnica como um recurso de poucas possibilidades, quando na
verdade ela possui muitas variações e usos: desde sua aplicação como ressaltos
nos temas complexos do death metal técnico (Necrophagist) — em não
poucas ocasiões combinados com síncopas intricadas — até as longas cavalgadas
do onipresente black metal norueguês (Isvind), com sua capacidade de
induzir ao transe; os acentos incisivos e metralhantes do black/death (Zyklon)
ou os disparos rasgados do grindcore mais combativo (Agoraphobic Nosebleed).
O ouvinte deveria não apenas
apreciar a evidente capacidade atlética dos bateristas que usam esse tipo de
técnica, ou o treinamento necessário para replicar os compassos e quebras mais
complexos em tais velocidades, mas simplesmente deixar-se levar pela intensidade
insistente desses sublimes momentos de ostinato veloz que constituem alguns dos
melhores, mais explosivos e libertadores clímax desses estilos. Por outro lado,
como se pode imaginar, nem tudo é velocidade: há uma ampla gama de tempos
dentro de todos esses estilos, sendo perfeitamente comum encontrar também
ritmos mais solenes, arrastados e lentos — até limites dificilmente críveis.
No entanto, se mesmo com essa
explicação o leitor ainda só ouve um emaranhado de notas indistinguíveis em uma
velocidade absurda e endiabrada, não deve se preocupar: as pessoas que ouviram
Charlie Parker e Dizzy Gillespie pela primeira vez nos anos 1940, no auge da
explosão do bebop… sentiram exatamente a mesma coisa.
Alguns fizeram um esforço para
entender. Outros, não.
Para terminar, há outro elemento
próprio do universo do metal extremo que o torna particularmente difícil para o
recém-chegado: a incrível variedade de estilos e subestilos que o compõem — e
que continuam a se desenvolver trinta e cinco anos depois de Venom ter aberto o
primeiro buraco negro nesse universo.
Entendemos, então, que o leitor
que tenha chegado até aqui tem um interesse declarado em se aprofundar nessas
águas escuras e lamacentas. Por isso, a seguir, faremos um breve percurso por
cada um desses estilos, esperando conseguir sintetizar em poucas palavras
aquele feito específico, aquele matiz ou detalhe que os singulariza — para que
sejam melhor compreendidos e assimilados, ao menos até o temido momento de
apertar o play.
Advertimos, no entanto, que a
classificação a seguir, baseada em critérios e cânones tradicionalistas, mantém
as fronteiras entre um estilo e outro tão borradas quanto se poderia esperar —
o que torna qualquer exploração ainda mais desafiadora e satisfatória.
Pessoalmente, da última vez que tentei resumir uma história como esta, acabei
escrevendo um livro de seiscentas páginas... mas desta vez vou tentar ser mais
breve.
Cronologicamente, alguém que
queira se jogar de cabeça, de maneira imprudente, arriscada e sem proteção
(opção recomendada apenas para quem já aprecia músicas difíceis), pode começar
com o que chamamos de pioneiros do metal extremo. São várias bandas que
representam bem o espírito desbocado, barulhento e irreverente da primeira
conjunção entre punk e heavy metal — e que captam a crueza, a transgressão e o
ambiente violento, sombrio e niilista que ainda hoje são uma influência chave e
uma conquista a se respeitar.
Falamos, é claro, dos já
mencionados Venom, cuja trilogia indispensável é Welcome to Hell, Black
Metal e At War with Satan; o restante de sua longa e respeitável
carreira não chega a superar essas joias imundas. Da semente dos Venom surgem
dois grupos fundamentais. Um deles é um projeto individual chamado Bathory,
do falecido e lembrado jovem sueco Quorthon — entre seus méritos está ter
incorporado, na segunda fase de sua carreira, temas vikings e influências do
heavy metal que abririam caminho para as vertentes mais folk. De escuta
difícil, mas imprescindíveis, são Bathory, The Return…… (sic) e Under
the Sign of the Black Mark. Os outros discípulos de Venom que se tornaram
clássicos formavam uma banda suíça chamada Hellhammer, liderada por um
visionário chamado Tom G. Warrior: lançaram apenas algumas demos e LPs
incompreendidos, depois reunidos sob o título Demon Entrails. O
interessante nesse grupo é que ele evoluiria para outra criatura chamada Celtic
Frost, que com Morbid Tales, To Mega Therion e Into the
Pandemonium antecipariam praticamente todos os estilos dos vinte anos
seguintes — o que, por si só, já inspira respeito. Os caminhos da vida, já no
novo milênio, transformariam o Celtic Frost em Triptykon, e tanto seu Eparistera
Daimones quanto Melana Chasmata são obras-primas em que um líder já
com mais de cinquenta anos expressa o peso de uma vida de dor e decepções com a
expressividade, a tristeza e o ressentimento de qualquer cantaor flamenco
contemporâneo.
Passando ao próximo estilo do
nosso percurso, falemos do chamado thrash metal. Fazendo o aviso
habitual de que não se escreve trash, este é sem dúvida o estilo mais
conhecido pela maioria dos ouvintes de fora, e também o mais acessível, graças
às bandas de fama notável que desenvolveram o gênero nos anos oitenta. O thrash
metal representa a encarnação do punk — transformado em hardcore
raivoso, juvenil e norte-americano — unido ao heavy metal mais simples e
eficaz. O resultado é uma música que faz da velocidade e dos ritmos repetitivos
o seu modus vivendi, e que sempre soa refrescante, energizante e aberta: em
seus primórdios, era uma música que representava o espírito outsider, a festa,
o universo skater e a convicção de que era preciso se divertir, caso a Guerra
Fria (tão frequentemente mencionada nas letras) e a cerveja esquentassem
demais.
São bastante famosos os grupos
que começaram a dar forma ao estilo, sendo Metallica (é preciso
conceder-lhes esse mérito) a banda mais rápida e agressiva de sua época em Kill
‘Em All; seguidos de perto por seu ex-guitarrista Dave Mustaine e sua
vingança chamada Megadeth, com, por exemplo, Peace Sells… But Who’s
Buying? Na costa nova-iorquina do CBGB, o Anthrax mostra com Fistful
of Metal que o thrash estava se tornando um fenômeno nacional. E,
para quem quiser, apesar de tudo, duvidar da validade dessas bandas — dado seus
notórios altos e baixos — deve-se dizer que sempre teremos o Slayer,
cujo imortal Reign in Blood completou trinta anos em 2016 e finalmente
foi consagrado como um clássico “do rock” por diversas publicações mainstream.
No entanto, pessoalmente, sempre defendi sua capacidade de se adaptar aos
tempos com discos posteriores tão ambiciosos quanto rejeitados pelos puristas,
como o potente God Hates Us All.
A Europa, com sua proximidade ao
Muro e às bases de mísseis soviéticos, não ficaria indiferente a essa
“agressão”, e com as armas vindas da América e a vigente influência dos Venom,
os alemães Kreator (Pleasure to Kill), Sodom (Persecution
Mania) e Destruction (Eternal Devastation) criam o thrash
continental mais sóbrio e duradouro. O estilo, após uma notável crise em meados
dos anos noventa (quando, apesar dos grooveiros Pantera, o som de
Seattle lhe roubou grande parte dos fãs), encontra-se hoje em plena ascensão,
protagonizado por grupos como os crossover Municipal Waste (The Art
of Partying), os cósmico-polifônicos Vektor (Outer Isolation)
ou os espanhóis Angelus Apatrida (Evil Unleashed).
Em meados dos anos oitenta,
algumas das bandas mais obscuras que praticavam thrash começam a evoluir
tecnicamente: a velocidade deixa de ser um requisito, e passa-se a buscar um
som mais sombrio, às vezes baseado em andamentos mais lentos e quase sempre em
busca de uma justaposição de ritmos aparentemente arbitrários que escondem
estruturas complexas e recursos mais elaborados. Graças à influência, entre
outros, de Possessed (Seven Churches) e Dark Angel (Darkness
Descends), o death metal logo surgiria da tumba — e com ele, novos
temas, mais violentos, sombrios e demoníacos.
O abismo ímpio de onde surgiu a
primeira grande onda de death metal foi, paradoxalmente, a ensolarada Tampa
(Flórida). Ali se consolidou um dos gêneros de som mais puro e sóbrio — e, por
isso, talvez mais difícil de ser apreciado por iniciantes. Estamos falando dos
imortais Death, de Chuck Schuldiner (Leprosy), dos desventurados Morbid
Angel (Altars of Madness), dos Deicide, do satanista Glen
Benton (Deicide), ou dos Obituary (Slowly We Rot), entre
muitos outros. Logo, outras partes dos Estados Unidos ecoariam sons ainda mais
obscuros, como os do Immolation (Dawn of Possession), Incantation
(Onward to Golgotha) ou Autopsy (Severed Survival). Outros
focos de infecção surgiriam na Europa, com os combativos Bolt Thrower (Warmaster),
ou os holandeses Asphyx (The Rack), Gorefest (Mindloss)
e Pestilence (Testimony of the Ancients), entre outros, como os
espanhóis Avulsed, do histórico Dave Rotten (Eminence in Putrescence).
No entanto, o death metal é o
primeiro estilo a apresentar subestilos — ou seja, variações do seu som
original suficientemente coerentes e contínuas para constituírem novas escolas.
Falamos, por exemplo, do death metal técnico, que, como o nome sugere,
ainda hoje busca levar ao máximo suas possibilidades instrumentais e incorporar
novas influências progressivas, como os clássicos Nocturnus (The Key),
os já citados Cynic (primeira banda de metal extremo com dois membros
que assumiram sua homossexualidade) e seu Focus, Atheist (Piece
of Time) ou, já em tempos recentes, os bem-sucedidos Obscura (Cosmogenesis).
Outro dos grandes subestilos, o brutal death metal, faz o mesmo, mas
tentando romper não só as fronteiras técnicas, como também as da rugosidade, da
dificuldade auditiva, da precisão técnica, do bom gosto e, em suma, da
brutalidade — graças aos famosos Cannibal Corpse (Butchered at Birth),
aos deuses nova-iorquinos Suffocation (Effigy of the Forgotten)
ou aos macabros europeus Demigod (Slumber of Sullen Eyes). Cabe
dizer que ambos os subestilos alcançaram tal ímpeto em destruir suas próprias
fronteiras que hoje em dia se cruzam entre si, gerando discos que, sem qualquer
exagero, estão abrindo caminhos musicais com a potência psicodélica de um
buraco negro — como Ulcerate (Vermis), Portal (Seepia)
(sic) e os mestres canadenses Gorguts; não propomos, mas desafiamos o
ouvinte a mergulhar em seu último lançamento, uma viagem cósmica em forma de LP
com apenas uma faixa de trinta e três minutos chamada Pleiades’ Dust.
O death metal não termina aqui
seu caminho, demonstrando ser um dos estilos mais flexíveis e que mais
influenciou os demais — e, especialmente, um lugar muito concreto: a Suécia. De
lá surgiriam vários outros subestilos, como o death metal sueco old school,
ou som de Estocolmo, uma mistura suja de Autopsy com espírito e
sonoridade crust/punk, que imortalizariam em partes iguais Entombed (Left
Hand Path) e Dismember (Like an Ever Flowing Stream). Mas é
graças aos multiformes, únicos e absolutamente mágicos At The Gates (Slaughter
of the Soul) que surge outro subestilo, o new school ou som de
Gotemburgo, que incorporava elementos do heavy metal tradicional à mistura,
como pode ser ouvido nos fantásticos discos de In Flames (Lunar
Strain) ou Dark Tranquillity (Skydancer). Ainda haveria uma
encarnação a mais do estilo naquilo que chamamos de death metal melódico,
amplamente variado mas com o elemento melódico comum sublimado: inaugurado
pelos britânicos Carcass da segunda fase (Heartwork) e
popularizado até beirar o mainstream por bandas como Children of Bodom (Something
Wild), Amon Amarth (Once Sent from the Golden Hall) ou uma
das bandas com vocalista gutural feminina mais célebres da nossa história: Arch
Enemy (Wages of Sin).
Enquanto isso, outros estilos
criariam raízes no gosto dos seguidores mais radicais entre os radicais: por um
lado, o chamado grindcore, anunciado por Repulsion em Horrified
e definido pelos britânicos Napalm Death em seu histórico Scum. O
grindcore é um dos estilos mais abertamente baseados na ética, estética e
técnica do hardcore punk, do crust e do anarcopunk, e busca levar ao extremo os
pressupostos de velocidade, agressividade e compromisso político, com músicas
geralmente curtas (em alguns casos com apenas alguns segundos) e abrasivas,
como demonstram Brujería (Matando Güeros), os saudosos Nasum
(Inhale/Exhale), Rotten Sound (Under Pressure) ou os
espanhóis Looking for an Answer em seu álbum homônimo. Se adicionarmos
uma boa dose de influências do brutal death metal, substituirmos a
temática política por gore, patologias, humor negro, ruído puro, pornografia e
tabus sexuais, e uma admiração imitativa sem limites por Reek of
Putrefaction, dos citados Carcass, obtemos em linhas gerais o
chamado goregrind — estilo consolidado por General Surgery (Necrology),
Necrony (Pathological Performances), Dead Infection (A
Chapter of Accidents) ou os clássicos espanhóis Haemorrhage (Grume).
Até mesmo estilos aparentemente
alheios ao metal chegaram a afetá-lo tanto que acabaram se consolidando como
subestilos próprios, como, por exemplo, o metal industrial: de fato,
este recebeu de braços abertos influências obviamente afins do rock e da
eletrônica — como Throbbing Gristle, Kraftwerk, Skinny Puppy
ou os interessantes Laibach —, o que explodiu com a formação, no Reino
Unido, do Godflesh (Streetcleaner) e sua projeção ainda mais
metalizada no trabalho de Fear Factory (Soul of a New Machine), Pitchshifter
(Industrial) ou Scorn (Vae Solis). Se esse estilo
representa o futuro, outro universo estranho ao metal curiosamente impregna o
som de culturas passadas e milenares: o folk metal baseia-se
precisamente em incorporar instrumentos, temas tradicionais, estética e
melodias do folclore tradicional — principalmente do norte da Europa e do
Oriente Médio. No primeiro caso, podemos citar os primordiais Storm (Du
Nordavind), a banda cult Vintersorg (Till Fjälls) ou Kampfar
(Mellom Skogkledde Aaser), que derivam (e ocasionalmente degeneram) em
grupos de ares festivos e alegres; quanto às segundas influências, falemos dos
israelenses Orphaned Land (Sahara) ou dos (muito mais voltados ao
brutal death, sem dúvida) Nile, de Amongst the Catacombs of
Nephren-Ka.
Seguimos nosso percurso
desembarcando na Inglaterra mais romântica, lugar onde sem dúvida surge um dos
estilos mais abertos, ricos e sentidos: o gothic doom. É na região de
Halifax (West Yorkshire) que surgem várias bandas que, partindo de um estilo
tão sóbrio quanto o death metal, decidem adicionar influências como The
Sisters of Mercy ou Joy Division, a literatura do século XIX e um
interesse fundamental pelo rock progressivo — o que acaba se concretizando no
trabalho da tríade Paradise Lost (Gothic), Anathema (Serenades)
e My Dying Bride (As the Flower Withers). Embora essas bandas
tenham evoluído consideravelmente ao longo dos anos, chegando a extremos como o
technopop ou o puro rock progressivo, há outro subestilo que pende a balança
para os elementos mais pesados, enfatizando o death metal — chamado doom/death,
apenas indicado para ouvintes dispostos a alcançar os abismos mais profundos da
lentidão e da gravidade, com bandas como Thergothon (Stream from the
Heavens) ou Skepticism (Stormcrowfleet). No entanto, se
voltarmos ao lado oposto do espectro e acentuarmos as influências mais
roqueiras, sombrias e pós-punk, chegamos à contribuição de bandas que reduzem a
agressividade e misturam cadências elegantes, ritmos quase dançantes e vocais
lânguidos, tanto masculinos quanto femininos, obtendo o gothic metal dos
Katatonia da segunda fase (Discouraged Ones), Cemetary (Sundown)
ou The Gathering (Mandylion); misturando tudo ainda mais, podemos
encontrar joias esquecidas como o supremo Painting on Glass, dos
noruegueses The Third and the Mortal.
A essa altura, certamente alguns
leitores já devem estar sentindo falta daquele que, possivelmente e a
contragosto, é o gênero mais conhecido da atualidade — e que (sendo honestos)
representa no imaginário coletivo o metal extremo. Falamos, obviamente,
do black metal, estilo mais famoso pelas caras pintadas, braceletes de
espinhos, invocações a Satanás, assassinatos e queimas de igrejas norueguesas
do que pela interessante música que representa. Sobre o primeiro aspecto já se
falou bastante, então vamos nos concentrar no segundo.
Talvez devêssemos enfatizar —
caso não tenhamos insistido o suficiente — a influência do punk dentro do metal
extremo: o primeiro black metal já criado, ou o black metal clássico, tem um
fortíssimo componente punk, o que não é de surpreender, pois descende
diretamente de Venom, Hellhammer e Bathory, que, como vimos, bebiam diretamente
dessa fonte. É por isso que, desde o seu nascimento, os elementos mais
niilistas, obscuros, provocadores, perigosos, esquivos, contraditórios e
autodestrutivos dessa filosofia se acentuaram em comunhão com a arrogância,
confiança, exibicionismo, adrenalina e testosterona do heavy metal. O resultado
é uma tradição antitécnica e anticlassicista que, ainda hoje, é a mais difícil
de ser assimilada por novatos, mas também a mais autêntica — e que não é um
fenômeno exclusivamente escandinavo, como costuma se pensar. É o momento dos
primeiros Mayhem (Deathcrush) e de outras bandas que nenhum hipster
“entendido” de última hora irá citar nem ouvir, como os suecos Morbid (December
Moon) e Treblinka (Crawling in Vomits), os húngaros Tormentor (Anno
Domini), os israelenses Salem (Destruction till Death), os
brasileiros Sarcófago (I.N.R.I.) e os colombianos Parabellum (Sacrilegio).
Mais conhecido, obviamente, e
praticamente símbolo do estilo, é o black metal norueguês, famoso pelas razões
extramusicais já citadas e baseado em um som que evoca uma frieza ventosa e
gélida que sugere, de fato, a paisagem inóspita do norte da Europa. Menos
citado é o fato de que tal contribuição parece ser responsabilidade de um único
homem: Snorre Ruch, líder dos malogrados e cultuadíssimos Thorns (Grymyrk),
cujo som pessoal acabaria sendo popularizado por dois grupos de seu círculo
íntimo: os Mayhem, a partir de De Mysteriis Dom Sathanas (do qual ele
foi membro), e Burzum (Burzum). Outras bandas rapidamente aprenderam
quais acordes, modos e ritmos compunham esse novo som e o adotaram em suas
variantes mais lentas e atmosféricas ou mais rápidas e cortantes. Alguns grupos
dessa época são os históricos, muito respeitados e mutáveis Darkthrone (A
Blaze in the Northern Sky), os depois popularíssimos Immortal (Diabolical
Fullmoon Mysticism), liderados pelo famoso Abbath (se houvesse um rosto que
representasse todas as contradições do black metal, seria o dele), os Enslaved
(Yggdrasil) ou Satyricon (Dark Medieval Times).
Um estilo com tantas
possibilidades quanto o black metal não poderia se limitar a apenas duas
modalidades, e a partir daí tornou-se uma arte buscar um equilíbrio entre a
incorporação de novos sons e recursos e a preservação de uma autenticidade
sonora que não provocasse rejeição da cena, notoriamente purista. É assim que
surge o black metal sinfônico, que, como o leitor pode deduzir, consiste em
revestir a crueza do estilo-mãe com camadas de teclados e instrumentos
orquestrais, criando um contraste interessantíssimo, inaugurado pelos
ambiciosos Emperor (In the Nightside Eclipse) e continuado por Arcturus
(Aspera Hiems Symfonia), pelos japoneses Sigh (Infidel Art) ou
Limbonic Art (Moon in Scorpio). Mas será que um estilo tão feroz quanto
o black metal é capaz de se conter e incorporar elementos suaves, atmosféricos,
góticos e influências do doom e do progressivo? A resposta foi o surgimento do
chamado black metal melódico, iniciado por bandas como os suecos Katatonia da
primeira fase (Dance of December Souls), os noruegueses …In The Woods (HEart
of the Ages), Dismal Euphony (Soria Moria Slott) ou Empyrium (A
Wintersunset). Ainda pode o black metal ir além? Podemos imaginar mais uma
hibridização — a que surge, obviamente, de dois demônios potentes: o death
metal e o black metal. A isso chamamos simplesmente de death/black metal,
talvez o estilo mais agressivo, brutal e com mais possibilidades destrutivas
que se possa imaginar, e que nasce de propostas como a do Necrophobic (The
Nocturnal Silence), dos popularíssimos e incorruptíveis poloneses Behemoth
(Satanica), ou de projetos mais cultuados como os noruegueses Cadaver
Inc. (Discipline).
Para finalizar, podemos
considerar a existência do metal extremo progressivo e de vanguarda, que, como
o nome sugere, é um caldeirão de experimentação onde muitas das bandas citadas
— e dezenas mais — acabaram situadas, pontualmente ou de forma permanente, e
onde, se ainda faltava algum tipo de música a ser incorporada, algum limite a
ser rompido, seja ele das músicas do mundo à eletrônica, ali foi possível. A
quantidade e variedade de propostas é absolutamente impossível de resumir em um
parágrafo, mas o leitor curioso pode se aventurar por obras como 666
International dos noruegueses Dødheimsgard, William Blake’s The Marriage
of Heaven and Hell do Ulver, os finlandeses Beherit com H418ov21.C,
Arcturus com La Masquerade Infernale, Borknagar (Quintessence),
Manes (Vilosophe), Blut Aus Nord (MoRT), Akercocke (Antichrist),
Agalloch (The Mantle), Solefald com seu recente World Metal.
Kosmopolis Sud… E um longuíssimo etcétera extremado.
Milhares de bandas, dezenas de
milhares de discos, um universo cultural em expansão e uma cena em perpétua
mutação. É possível conceber algum estilo, subestilo, tendência ou influência
que o metal extremo não venha a tocar daqui em diante?
Dito tudo isso, só esperamos que
este universo passe a ser um pouco melhor apreciado. E a partir daqui, se vocês
não sentem os pelos arrepiarem ao ouvir os primeiros golpes de bateria de
“Reign in Blood” do Slayer… Se não se arrepiam de expectativa ao ouvir a
abertura de “Symbolic” do Death… Se não sentem o peso do transcendente ao se
perderem no ostinato enevoado de “Dunkelheim” do Burzum… Então não podemos
fazer muito mais por vocês.
Mas, se apesar de tudo, sentirem
o chamado das trevas e decidirem se converter, só precisam caminhar por este
longo túnel de escuridão, onde os esperamos no fundo do abismo — fortes,
obscuros e orgulhosos.
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