segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Marcas do abjeto na arte contemporânea




RESUMO
Este artigo analisa os efeitos subjetivos resultantes das transformações sociais contemporâneas, tais como o impacto da tecnologia e o crescente poder da imagem, que encaminham para a problematização sobre o lugar do corpo na sociedade. Esta análise é proposta a partir da leitura da arte abjeta, modalidade da arte vinculada à constituição do ser humano e à apresentação do real.
Palavras-chave: corpo; sociedade contemporânea; abjeto.

Toda chama é um engendramento de água.
(Novalis, [1799-1800] 2005: 62)
Que espécie de corte produzem algumas marcas do abjeto presentes em muitas manifestações artísticas contemporâneas? Imagens/ vertigens que trazem, para dentro do campo da arte, uma exigência de reflexão. Já não é mais possível simplesmente designar tais categorias como fora do campo da arte e fechar os olhos, reagindo assim de forma ingênua ao excesso de imagem, como os espectadores sem tempo, que fazem seu percurso evitando as imagens de que não gostam. Como sugere Giorgio Agambem (2004) em seu livro Imagem e memória, há uma beleza então que cai. Estamos interessados em seguir algumas pistas dessa queda. Agambem parece sintetizar na abertura do seu texto um ruído que habita o campo das artes em nossos tempos: "Chega um momento no percurso de todo grande artista, de todo poeta, onde a imagem da beleza, que ele perseguia até então seguindo uma elevação contínua, inverte bruscamente sua direção e aparece, por assim dizer, em uma queda vertical" (Agambem, 2004: 153).
Essa queda já está escrita na história da arte mesmo que algumas vozes ainda possam evocar as formas do belo, em um discurso que fez época nas reflexões clássicas de Lessing ([1766] 1990) em seu Laocoon. A regra de representação em sua época (século XVIII) interditava ao campo da arte o que não estivesse inscrito na categoria do belo. Ele defendia que nem todas as paixões humanas poderiam encontrar sua forma visual na arte e deveriam se submeter aos cânones estabelecidos de beleza. Escrevia ele: "todo outro objeto possível das artes plásticas, se ele é inconciliável com a beleza, deve ser completamente afastado" (Lessing, [1766] 1990: 50).
Mas o que a história recalca retorna agora na potente lógica freudiana e temos que encontrar no mundo visível um lugar para este resto que faz corpo e poeira em nosso olhar. Como nomear este retorno do recalcado?

A imagem na arte introduz uma dimensão do estranho que permite que o olhar recupere sua potência. É exatamente este o sentido em que insiste Jean-Luc Nancy (2003) ao dizer que toda imagem é sagrada (não confundir com religião) justamente na medida em que sagrado, lembra o autor, significa separado, colocado de lado1. De alguma forma, esta reflexão abre para o abjeto, assim como fez Georges Bataille ([1957] 1960), um lugar de pouso.
Deste modo, este objeto/abjeto estranho que paira neste novo espaço de representação resiste às categorias que até então regulavam o campo do visual. Objetos, portanto, que obrigam uma reformatação dos conceitos, dos paradigmas, do discurso. Aqui, de alguma forma, podemos recuperar a potência da arte, que sempre abriu na história novas perspectivas. O abjeto nos captura justamente naquilo que, ao nos expulsar de seu campo visual, nos atrai. Objetos/tabus que, em vão, queremos rasurar; eles, como sabemos, insistem. Vejamos como se posiciona Nancy (2003) neste ponto:
    Não podemos tocar: não se trata que não tenhamos o direito, e nem que nos faltem os meios, mas é que o traço distinto separa aquilo que não é mais do campo do tocar, não precisamente, portanto, de um intocável, mas mais de um impalpável. Mas este impalpável se revela sob o traço e pelo traço de seu afastamento, por esta distração (distraction) que o afasta. Em consequência, minha questão primeira e última seria: não será que tal traço distintivo não é sempre uma questão da arte? (Nancy, 2003: 12).
A cultura e suas transformações estão diretamente ligadas a uma experiência de tempo, produzindo inquietações e sofrimento. Cada processo de mudança social (como a globalização, por exemplo) intervém diretamente na vida de cada cidadão, que se vê jogado entre os conceitos que fizeram parte de sua formação e convocado a responder às demandas desse novo tempo.

Por mais que se questionem os termos modernidade e pósmodernidade, é visível que a última passagem de século trouxe consigo uma reordenação de valores. Refundar-se a partir de novos significantes, este é o trabalho de cada sujeito quando lançado nas mudanças sociais produzidas pela contemporaneidade.
Debord (1997) faz uma crítica às transformações sociais quando postula o conceito da "sociedade do espetáculo" como uma forma de estar no mundo na qual as relações entre os homens não são mediadas por coisas, mas por imagens. O espetáculo é uma forma de sociedade em que a vida real é pobre e fragmentada e na qual os indivíduos consomem, através das imagens, os objetos que lhe faltam.
A "espetacularização" pelo excesso de sentido provoca a alienação e impede que os sujeitos se impliquem frente ao que é exposto, embotando o espírito crítico e a percepção dos mecanismos inerentes ao processo de produção. Na alienação do espectador frente ao objeto contemplado, o que ocorre é que, quanto mais o sujeito contempla, menos vive, mais aceita as imagens dominantes e mais se afasta de um saber sobre o que o constitui como ser desejante.
    Não é possível fazer uma oposição abstrata entre o espetáculo e a atividade social efetiva: este desdobramento também é desdobrado. O espetáculo que inverte o real é efetivamente um produto. Ao mesmo tempo, a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espetáculo e retoma em si a ordem especular à qual adere de forma positiva. A realidade objetiva está presente dos dois lados. Assim estabelecida, cada noção só se fundamenta em sua passagem para o oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Essa alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente (Debord, 1997: 15).
Para esse autor, a "espetacularização" é uma consequência da sociedade capitalista, na qual as qualidades concretas dos objetos são anuladas em favor do seu valor de troca, encontrando seu símbolo na abstração do dinheiro. Desta forma, a economia se torna um fim em si mesma e governa o homem que a criou. O espetáculo é o resultado de um modo de produção que se constitui como modelo da vida em sociedade, como uma "visão de mundo".
Visão de desamparo absoluto ao ponto que Giorgio Agambem (2004), ao escrever sobre o cinema de Debord, diz que suas imagens indicam uma zona híbrida, flutuante, entre o falso e o verdadeiro. Agambem é categórico, ao dizer: "A imagem exposta enquanto tal não é mais imagem de nada, ela é ela mesma sem imagem" (Agambem, 2004: 95).
O mundo da arte reflete diretamente as transformações econômicas, políticas e sociais. Alguns artistas e obras de arte contemporânea passam a desfrutar de uma grande popularidade, e o valor de comércio das obras registra altos valores no mercado de arte.
Posições contrárias se estabelecem: para alguns críticos a arte passou a obedecer às leis da moda e os valores estéticos passaram a ter um curto prazo de validade (o que está em questão é sempre a produção do novo); os artistas são elevados à condição de estrelas. Por outro lado, em oposição ao valor de mercado da arte, surgem em alguns artistas posições de resistência, ao se proporem a recuperar, pela arte, uma força política contrária aos dogmas da economia capitalista. Neste ponto, a arte recuperaria sua função essencial como utopia e crítica dos valores instituídos.

Diferentemente das visões dos principais teóricos da pós-modernidade que veem esse momento como um período de crise das relações sociais, o sociólogo francês Michel Maffesoli tem outra visão do mundo contemporâneo. Para ele, a proliferação e o crescente poder da imagem (que pode gerar intensos sentimentos coletivos) produzem uma comunhão e coesão social.
Maffesoli (1995) direciona seu olhar para além do individualismo e do racionalismo enunciado pelos críticos da sociedade de consumo e analisa a pós-modernidade como um fenômeno global de comunicação, caracterizando-a pelas identificações fugazes, pelo tribalismo e pelo hedonismo. Para ele, a comunicação (base das relações sociais) não se resume em uma sociologia da mídia, mas tem a ver com a vida em sociedade, com a relação que se estabelece com o contato entre os sujeitos, mesmo que este contato se dê de formas diferentes e fragmentadas. Um elemento importante nessa transformação é o presenteísmo pós-moderno: trata-se de gozar de imediato, além de uma tendência ao hedonismo que permeia não apenas a elite, mas todas as diferentes camadas sociais. O corpo toma um lugar importante na vida social, deixa de ser apenas um corpo produtivo para ser um corpo amoroso, um corpo erótico. Ao contrário de autores que associam o prazer à resignação, ele o vê como algo que ajuda a resistir à força uniformizadora do sistema.
Segundo Maffesoli (1998), o que melhor pode caracterizar a pós-modernidade é o vínculo que está sendo estabelecido entre a ética e a estética, entendendo-se estética no sentido etimológico do termo: a faculdade comum de sentir, de experimentar. A experiência ética diz respeito aos princípios comuns em um determinado laço social, já que a produção de discursos e narrativas sobre o sentido da vida, na atualidade, não é dada mais por nenhuma verdade transcendental, mas sim por uma tarefa coletiva em que cada sujeito tem a sua pequena participação.

    Essa poderia ser a minha hipótese central: o paradigma estético é o elemento que permite englobar uma constelação de ações, de sentimentos, de "ambiências" específicas do espírito dos tempos modernos. Tudo aquilo que diz respeito ao presenteísmo, ao senso de oportunidade, tudo aquilo que remete à banalidade e à força agregativa. Numa palavra, a ênfase no "carpe diem", hoje novamente em voga, tem na matriz estética um lugar privilegiado (Maffesoli, 2005: 65).
Maffesoli reconhece no imaginário a força determinante da vida social e propõe uma "sociologia da imagem" que abandone os preconceitos contra o imaginal, abandonando também qualquer análise baseada em categorias clássicas, tais como modo de produção, classe social, partido político e outras desta natureza.
Sem desconsiderar a importância das teorizações de Maffesoli para o avanço da compreensão da pós-modernidade, a fragilidade desta proposta está justamente em não abordar a questão do poder, não levando em conta a influência do capital, do mercado e das condições históricas de produção em qualquer período de uma sociedade. O risco de uma "ética de instante" é a produção de uma sociologia que se debruce unicamente sobre o contemporâneo, e o preço da alienação em relação ao poder é a cegueira frente às possibilidades disfuncionais da imagem, como a da produção de discriminação e exclusão social.
Segundo Lipovetsky e Sebastien (2004), a indiferença do sujeito contemporâneo se dá pelo excesso e não pela falta. Na visão destes autores, a situação paradoxal da sociedade hipermoderna traz como consequência uma fragilização do indivíduo que, frente à desestabilização do controle social, se vê obrigado a dar conta de suas próprias escolhas e ações na sociedade. Na busca pelo reconhecimento, observa-se uma lógica do excesso, que frequentemente encontra no corpo um depositário destes ideais.

Apesar das divergências entre os teóricos da contemporaneidade, uma coisa parece ser de senso comum: o efeito que a supervalorização da imagem, na medida em que transforma os ideais sociais, teve sobre o corpo humano, questionando-o em sua capacidade de dar conta das exigências surgidas na atualidade.
Reconhecidos artistas contemporâneos, tais como Nan Goldin, Stelarc e Cindy Sherman, entre outros, apresentam a problemática do lugar/não lugar que o corpo ocupa nesta sociedade. Em suas obras, vemos o corpo humano limitado, doente, obsoleto, deficiente, fragmentado e mutilado. Esta nova construção do corpo sugere elaborar a discussão do abjeto em sua relação com o espaço de identidade do sujeito contemporâneo.
Georges Bataille ([1957] 1960) identifica a sociedade como um sistema de violência e exclusão no qual o abjeto é uma forma de coesão social: aquilo que o sistema não consegue assimilar, ele rejeita, constituindo-se um movimento de atração e repulsão. Para o autor, este sistema de violência e exclusão está relacionado às proibições universais da sociedade, e é somente a partir da transgressão que se tornam possíveis as vivências de erotismo, contemplação da morte e horror. "O erotismo abre à morte. A morte abre à negação da duração individual. Poderíamos, sem a violência interior, assumir uma negação que nos leva ao limite de todo o possível?" (Bataille, [1957] 1960: 23).
Para Bataille, o horror está vinculado à negação e ao estranhamento frente ao desconhecido que produz no sujeito tanto atração quanto repulsa, pressuposto da abjeção. Esta experiência interna, como a náusea, por ser uma experiência afetiva, não tem limite e escapa ao domínio da cognição. Desta forma, a subversão é o que dá autenticidade ao ser humano e é onde este consegue se libertar da "carcaça" forjada pela repressão.

A psicanalista Júlia Kristeva (1988), em uma análise da arte contemporânea, retoma o conceito de abjeto de Georges Bataille propondo-o como inerente ao sujeito: abjeção é aquilo que se produz de forma ameaçadora e não assimilável; algo que solicita, inquieta, fascina o desejo.
Kristeva (1988) desenvolve seu conceito de abjeto a partir da distinção de dois momentos específicos da aquisição da linguagem no sujeito: semiótico e simbólico. O semiótico diz respeito à fase pré-linguística da infância, na qual o corpo da criança se compõe de zonas erógenas em constante processo de mudança, sem identidade fixa, período no qual ela tenta, através do balbucio, se apropriar da linguagem dos adultos pela imitação, em uma "linguagem" que, pela falta dos sinais linguísticos necessários, se apresenta sem um sentido lógico e convencional. A semiótica está associada ao corpo maternal como fonte de ritmos e movimentos ainda desprovidos de significação e, por isso, operando na materialidade do corpo.
O simbólico está ligado à crise edípica e à aquisição da linguagem, na qual a criança se reconhece como um "eu", assumindo sua posição na ordem simbólica. O elemento simbólico possibilita a referência, pois está associado à gramática e à estrutura de significação.
A significação da linguagem para os sujeitos só se dá a partir da combinação destes dois elementos, pois sem o simbólico toda a fala teria uma significação delirante, mas é em função de seu conteúdo semiótico que as palavras dão significado à vida.
É justamente a estruturação do sujeito a partir da linguagem que marca a sua instabilidade, sua descentralização, de forma que não pode ser concebido como uma unidade, mas sim como um "sujeito em processo". É a cultura que determina as posições do sujeito na sociedade, bem como seu inconsciente.
A abjeção se constitui na heterogeneidade da linguagem entre o semiótico e o simbólico: é uma trama torcida de afetos e pensamentos que não tem objeto definível, tendo apenas uma qualidade de objeto que é a de ser oposto ao eu. Mas se, por um lado, o objeto sedimenta o sujeito no desejo por um significado, por outro o abjeto o leva em direção à impossibilidade de significação.
Para Júlia Kristeva (1988), a abjeção está diretamente relacionada à função materna, sendo que a alimentação recusada e expelida pela criança é uma das formas visíveis e mais arcaicas da abjeção. Segundo ela, a abjeção é uma operação psíquica através da qual se constituem as identidades subjetivas e de grupo, pela exclusão daquilo que ameaça as fronteiras sociais e singulares. A fim de nos tornarmos sujeitos, temos que abjetar o corpo materno, principal ameaça ao sujeito em estruturação: para fazer-se nascer é necessário reagir através dos soluços e vômitos.
O que produz a abjeção é o que perturba a identidade, o que aponta para a fragilidade daquilo que supostamente deveria salvar o sujeito da morte. Delimitado na fronteira entre o eu e o outro, o interior e o exterior, a morte e a vida, o abjeto não livra o sujeito daquilo que o ameaça, mas o mantém constantemente em perigo, preservando o que existia na arcaica relação pré-objeto, na violência da separação do corpo materno, na qual qualquer significação desaparece e só o afeto imponderável é realizado: defesa contra essa ameaça exorbitante, ao mesmo tempo tão tentadora a tão condenada, e por isso repugnante.
O abjeto traz em si a violência da lamentação de um objeto que sempre esteve perdido e circula entre a pulsão de morte e a produção de uma nova significação. Repetição incansável de um impulso que, produzido por uma perda inicial, não para de insistir, apagando e retraçando incessantemente os limites do eu.

Kristeva (1988) vê na abjeção um modo que provoca, na arte contemporânea, profundas mudanças, quando esta se refere à utilização do corpo como matéria e suporte de investigação. O abjeto testa os limites da sublimação e afirma que o papel do artista não é sublimá-lo, mas sim investigar, explorar, sondar a ordem social em crise.

Os procedimentos de incorporação do abjeto na arte contemporânea seguem basicamente em duas direções: a primeira busca o objeto obsceno como uma forma de aproximar-se da abjeção, a segunda representa a condição da abjeção, explorando os efeitos metafóricos para provocar a sua essência repulsiva e tornar reflexiva a sua operação.

Desta forma, a arte contemporânea aproxima-se das noções de informe e de abjeto, propostas por Bataille, o que resulta em uma arte disforme, na qual a contemplação do sujeito se dá através de noções de ambiguidade e desdobramento. O paradoxo da arte contemporânea consiste em integrar o discurso da abjeção, reinserindo a questão do corpo na produção plástica.

Didi-Huberman (1998) explicita que o valor de um objeto de arte, ou a potencialidade que nosso olhar tem, frente a uma obra de arte, tem a ver com o que nela nos olha, ou melhor, nas palavras do autor, "O que vemos só vale - só vive - em nossos olhos pelo que nos olha" (Didi-Huberman, 1998: 29).

Para este autor, o valor de uma imagem, ou o que nos olha nela, tem sempre o caráter de uma perda, uma perda que nos concerne e que por isso nos persegue, mesmo que seja por uma simples associação de ideias; desta forma, ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, aberta.

Didi-Huberman (1998) aponta para o jogo existente no "ver" entre o vazio e o volume, sendo que a visão se choca sempre com o volume dos corpos, pois esses são os primeiros objetos de todo o conhecimento e de toda a visibilidade, mas também são coisas a tocar. Às vezes é preciso fechar os olhos para ver: quando o visível é inelutável, um trabalho do sintoma atinge o corpo vidente e o cega. Por outro lado, nos aconselha a abrir os olhos para experimentar o que não vemos: o que não vemos funciona como evidência do visível.

A cisão do olhar, evocada por este autor, encontra sua "situação exemplar" no olhar de quem se acha frente a um túmulo: de um lado há a evidência de um volume (uma massa de pedra, mais ou menos figurativa, mais ou menos coberta de inscrições), de outro há uma espécie de esvaziamento (do inevitável da existência, do esvaziamento da vida). Diante de um túmulo nossas imagens nos remetem ao que o túmulo encerra, ou seja, à identificação com o semelhante morto e à angústia de saber e, ao mesmo tempo, não saber o que vem a ser o meu corpo entre o seu volume e o vazio que ele encerra.

Desta forma, à frente de um túmulo abrem-se duas possibilidades de negação, duas possibilidades de recalcamento da angústia: a primeira é ater-se ao que é visto, ao volume visível, que é o exercício da tautologia, e a segunda é querer superar imaginariamente tanto o que vemos quanto o que nos olha, que é o exercício de uma crença.

Durante muito tempo a "arte cristã" produziu inúmeras imagens que tratavam de esvaziar o corpo da sua materialidade, reproduzindo túmulos (assim como o de Cristo) esvaziados de seus corpos: a proposta era ver o que não se vê, ou seja, não ver para crer.

De outro lado, o homem da tautologia é exemplificado através da leitura de algumas obras de artistas minimalistas dos anos 60, que procuravam, através da criação de objetos específicos, renunciar a toda ilusão e toda a ficção para serem vistos por aquilo que são.

Para Didi-Huberman (1998), a atitude da crença e a atitude da tautologia mostram-se como uma "luva do avesso" (de qualquer lado é sempre uma luva); ambas sonham com um olho puro, um olho sem sujeito. Ambas buscam recusar à imagem o seu poder de abertura, de onde ela se torna capaz de nos olhar.

É do sujeito cindido da psicanálise que esse autor se utiliza para conceituar a dialética do olhar. A teoria freudiana do fort da, que funda o sujeito no jogo da simbolização, sustenta o ver como invariavelmente sustentado por uma perda. A criança com o carretel, em jogo, nos coloca frente a um paradoxo: no jogar há um momento de imobilidade mortal, um momento em que somos olhados pela perda e ameaçados de perder-nos. "Estamos de fato entre um diante e um dentro. E esta desconfortável postura define toda a nossa experiência, quando se abre em nós o que nos olha no que vemos" (Didi-Huberman, 1998: 234).

As imagens de arte sabem apresentar a dialética visual desse jogo infantil, pois inquietam nossa visão, inventam lugares para essa inquietude e produzem uma poética da "representabilidade".

Didi-Huberman (1998) nos mostra que uma imagem dialética deve se apresentar sempre como uma imagem crítica, ou melhor, uma imagem que critica a imagem e que relança a nossa maneira de vê-la, obrigando-nos a olhá-la verdadeiramente. Assim, uma imagem dialética não produz formas estáveis, mas deformações; não uma imagem a ser lida, mas uma imagem a produzir imagens, a produzir história. Uma imagem que possa abrir fendas no discurso, posições novas de sujeito na linguagem.

Transpondo os conceitos que Didi-Huberman (1998) traz para a cena contemporânea, lança-se a seguinte questão: o que nos olha atualmente na arte abjeta para que ela seja um constante tema em algumas exposições? O que essa repetição nos diz?

Segundo Seligmann-Silva (2005), a arte contemporânea busca, através da aproximação do real, a apresentação da violência, das mudanças tecnológicas, sociais e políticas às quais o sujeito vem sendo submetido na atualidade: "A arte quer mostrar o i-limitado, sem medo da 'queimadura' que a visão do 'real' implica. Esse 'corte' na fina película do 'real' representa na verdade um momento no processo de dissolução das fronteiras que é característico do que se convencionou denominar pós-modernidade" (Seligmann-Silva, 2005: 55).

Conforme Júlia Kristeva (1988) aponta, o abjeto fragiliza nossas fronteiras, problematizando tanto a subjetivação quanto os significados dados pela cultura; portanto, não é estranho que os artistas sintam-se atraídos pela sua potencialidade desestabilizadora dos sujeitos e da sociedade.

A partir de montagens, sobreposições, justaposições, simulações de sangue, excremento e vômito, o corpo é recriado, questionando os limites entre vida e morte.

O abjeto mostra-se através do excesso de realidade. As imagens não têm anteparos, apresentam uma literalidade característica do evento traumático: ali, onde não é possível representar, o que resta é a experiência da ferida. As marcas do abjeto revelam na arte suas possibilidades contestadoras, subversivas e questionadoras da cultura atual e das normas e condutas vigentes em nossa sociedade, pois, ao tocar na fragilidade de nossas fronteiras, questionam o mundo imaginário de uma fantasia capturada pelo consumismo e se colocam como uma recusa frente a essa posição. Contudo, não podemos ser ingênuos em pensar que estas obras não cedem à tentação do espetáculo e às garras interesseiras do capital, reproduzindo assim exatamente o mesmo tom do que antes buscava questionar. Resta-nos, neste processo de captura ideológica constante, acompanhar a singularidade de cada percurso artístico e de suas obras e confrontá-las à história para saber se ainda preservam a densidade suficiente para merecerem a nomeação, como dizia Paul Valéry (1999), de obras do espírito.



REFERÊNCIAS
Agambem, G. (2004). Image et mémoire - écrits sur l'image, la danse et le cinéma. Paris: Desclée de Brouwer.
Bataille, G. (1957/1960). El erotismo. Buenos Aires: Sur Editorial. Debord, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.
Didi-Huberman, G. (1998). O que vemos e o que nos olha. São Paulo: Ed. 34.
Kristeva, J. (1988). Poderes de la perversión. México: Siglo Veintiuno.
Lessing, G. E. (1766/1990). Laocoon. Paris: Hermann.
Lipovetsky, G. & Sebastien, C. (2004). Tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla.
Maffesoli, M. (1995). A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios.
Maffesoli, M. (1998). O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Maffesoli, M. (2005). O mistério da conjunção. Ensaio sobre a comunicação, o corpo e a sociedade. Porto Alegre: Sulina.

Nancy, J.-L. (2003). Au fond des images. Paris: Editions Galilée.
Novalis. (1799-1800/2005). Art et utopie - les derniers fragments. Paris: Editions Rue D'Ulm.
Seligmann-Silva, M. (2005). O local da diferença - ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Editora 34.
Valéry, P. (1999). Variedades. São Paulo: Iluminuras.
 NOTAS
1 Lembra Jean-Luc Nancy (2003) que a palavra distinto, segundo a etimologia, é o que é separado por suas marcas (esta palavra reenvia a stigma).


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