1 Introdução
“Que nada menino. O que prejudica os nossos
literatos não é cachaça. É a burrice” (BARRETO, 1942, apud BARBOSA, 1964, p.
312).
O autor dessa frase desferida em um dos seus
lugares prediletos, o boteco, respondendo a um colega de bebida, seria um dos
mais controversos escritores da literatura brasileira. O autor percorreu uma
trajetória que foi, de pobre posto à margem diversas vezes por sua teimosia em
ser sincero e atacar os problemas sociais que seus olhos viam, até o respeito
por sua obra, hoje, utilizada em vestibulares e absorvida no meio acadêmico.
Lima Barreto, nascido em 13 de maio de
1881, fruto de uma mãe criada por uma família abastada e um pai com desejo de
ascensão social, desde cedo conheceu as limitações financeiras que iriam
permear toda a sua vida, tendo contato com a dura realidade de alguém nascido
no Brasil.
Autor de
dezenas de crônicas, romances, contos, entre outros. Lima Barreto se
consagraria na literatura Brasileira com o romance Triste fim de Policarpo Quaresma, livro que rendeu dívidas para o
autor por anos, pois foi custeada pelo próprio Barreto. A obra barretiana está
inserida no que se convencionou chamar de pré-modernismo – início do século 20.
Para Alfredo Bosi (1972, p.343) “Pode-se
chamar pré-modernista (no sentido forte de premonição dos temas vivos em 22)
tudo o que. nas primeiras décadas do século, problematiza a nossa realidade
social e cultural.”.
Toda a obra
de Barreto está incluída nesse momento histórico literário, pois sua obra é
marcada por incendiárias críticas sociais, sejam elas contos, romances ou crônicas.
Conforme
Sevcenko:
O temário de sua obra inclui: movimentos
históricos, relações sociais e raciais, transformações sociais, políticas,
econômicas e culturais; ideais sociais, políticos e econômicos; crítica social,
moral e cultural; discussões filosóficas e científicas, referências ao presente
imediato, recente e ao futuro próximo; ao cotidiano urbano e suburbano à
política nacional e internacional, à burocracia, dados biográficos, realidade
do sertão, descrições geológicas e geográficas (fragmentos) análises
históricas. (SEVCENKO, 1999, p. 162)
Percebe-se,
claramente, o quão diversos foram os alvos que Lima Barreto mirou. Essa ampla
plataforma de temas é um fato interessante para perceber que por mais que
existam estudos e teses sobre a obra barretiana ela é uma grande fonte de
descobertas.
Para
desenvolver esse mosaico temático o autor se valeria de um arcabouço enorme de
personagens reconhecidamente nacionais. De ex-escravos e loucos até burocratas
e presidentes – a realidade humana abordada por Barreto é tão diversa quanto os
temas explorados em diferentes gêneros utilizados para construir sua obra
literária. Suas figuras literárias são gente que provavelmente o autor
encontrava em suas andanças pela cidade do Rio de Janeiro. É interessante notar que Lima Barreto não é
só um espírito da época, mas também
anteviu, por meio de sua reflexão, um futuro obscuro conseqüente das políticas
públicas tomadas pelos burocratas e seguidas na nação.
Seu nome é
associado, em livros de história da literatura brasileira, aos de Euclides da
Cunha, Graça Aranha e Monteiro Lobato. Esse grupo de certa forma antecipará o
que explodiria em 1922, a
semana da arte moderna, um divisor de águas da literatura brasileira,
intitulado modernismo, e caracterizado pela busca de inovação, já que os
movimentos literários anteriores estavam demasiadamente explorados e com pouca
vitalidade criativa.
Notam-se,
contudo, quando se lê sua biografia, várias controvérsias em relação ao
modernismo, pois o autor cultivava mágoas, mesmo tendo contato com alguns
mentores da criação da semana da arte moderna. Um exemplo é sua sinceridade em
expor sua opinião sobre os criadores da revista Klaxon, elaborada por modernistas paulistas.
De acordo com
Barbosa:
[..]esses moços tão estimáveis - pergunta o romancista –
pensam mesmo que nós não sabíamos disso de futurismo? Há vinte anos, ou mais,
que se fala nisto e não há quem leia a mais ordinária revista francesa ou o
pasquim mais ordinário da Itália que não conheça as cabotinagens de ‘Il Marinetti.
(BARBOSA, 1964, p. 310).
Lima
Barreto, também, criticou os movimentos feministas e a luta pela ascensão
social da mulher – comparando-o a outros movimentos masculinos. Vociferou
contra a modernização do Rio de Janeiro- pois dizia que isso exterminaria os
morros, uma característica da paisagem carioca. Mostrou desprezo pelo futebol –
que afirmava ser uma prática burguesa e causadora de desunião entre as pessoas.
E defendeu a monarquia em detrimento da república, pois a primeira possuía ao
menos mais honestidade.
Entretanto,
segundo Bosi, estas contradições, de um declarado anarquista: “[...] já foram
aclaradas: Lima Barreto viera da pequena classe média suburbana, e como
suburbano reagia em termos de conservantismo sentimental” (BOSI, 1977, p. 356).
Outro
fator importante para a reflexão da obra barretiana, é o fato de Lima Barreto
ser negro. Sabe-se que no Brasil, país ex-escravocrata, o negro raramente
conseguiu ascensão social. Barreto sofreu as marcas do mito da democracia
racial.
Não
só o escritor sofreu as máculas de um país racista, basta lembramos outros
autores negros como Cruz e Souza, Domingos Caldas Barbosa, Solano Trindade,
entre outros.
Com
efeito, no Brasil, o racismo vai mostrar significância, sendo visto como
flagelo nacional somente nas últimas décadas, pois é na Constituição de 1988
que a questão ganha o mérito de ser julgada como crime sujeito a reclusão.
Antes, o sujeito racista era responsabilizado somente por um ato delituoso.
Até
hoje o debate sobre relações raciais gera tensões sociais no país. Alguns
autores afirmam que nossa sociedade não seria estruturalmente racista. Um
exemplo é o editor de jornalismo do canal de televisão rede Globo, Ali Kamel, que lançou o livro Não somos Racistas a fim de atacar as políticas afirmativas de cotas raciais, pois
para o autor essas políticas geram ressentimento racial, e a desigualdade é
fruto da pobreza e não da cor da pele. Porém, outros estudos relatam uma
opinião diferente da apresentada pelo jornalista.
Conforme,
estudo de caso de Ciconello:
O mito da democracia racial, ainda presente no imaginário da
população brasileira, foi um avanço sociológico na época de sua criação, nos
anos de 1930, quando se consolidava um “racismo científico” e com
características eugênicas. Contudo, ao mesmo tempo em que incorpora a presença
da contribuição negra na formação nacional, naturaliza os espaços subordinados
que negros e negras ocupam na sociedade e invisibiliza as relações de poder
entre as populações negra e branca. O resultado é uma sociedade em que o
racismo e as desigualdades sociais dele resultante não se revelam, não se
debatem, parecem não existir. O problema, dizem, não é o racismo, é a pobreza;
as desigualdades não são raciais, são sociais. (CICONELLO, 2008, p.02)
Esses debates explicam, no mínimo, que mesmo o negro livre, sua
situação pouco ou nada mudou, e nos dias atuais ainda são necessárias
intervenções do Estado para reparar essa desigualdade. Lima Barreto viveu na
pele a condição de ser negro num país que vai tomar políticas tardias contra o
racismo, assim, igual seria forçoso afirmar que sua exclusão também é
originária de um racismo velado.
Outro motivo de exclusão sofrida pelo autor é pelo fato, além de negro
e alcoólatra, Barreto ter passado por internamentos psiquiátricos. Para
conhecer as reflexões sobre essas experiências recomenda-se ler seu livro Cemitério dos Vivos, um misto de
autobiografia com romance.
Entretanto, o foco central deste estudo é supor a obra Os bruzundangas como importante fonte Histórica que mantém diálogo com os estudos
de explicação do Brasil, mais especificamente na questão do caráter nacional.
Cogitaremos sobre como a obra antecedeu e dialogou com estudos sobre o mesmo
tema.
Octavio
Ianni, em seu Pensamento Social no Brasil
divide em três épocas os estudos sobre interpretações do Brasil, a saber:
precursores, clássicos e novos.
“Dentre
os “precursores”, colocam-se Euclides da Cunha, Alberto Torres, Joaquim Nabuco,
Rui Barbosa, Silvio Romero, José Veríssimo, Machado de Assis e Lima Barreto
[...]” (IANNI, 2004, p. 60). A temática desses autores gira em torno de
questões como: “[...] raça, povo e nação, centralismo e federalismo, oligarquia
e liberalismo, escravatura e monarquia, europeização e americanização” (IANNI,
2004, p.61).
Os
clássicos seriam: “[...] Jackson de Figueiredo, Oliveira Vianna, Gilberto
Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Roberto C. Simonsen, Caio Prado Junior e
Eugênio Gudin.” (IANNI, 2004. P. 61). Seus estudos girariam em torno da questão
nacional defendendo a tese de que o Brasil era predominamente agrário e
extrativista (Ianni, 2004).
E
os novos: “Mário de Andrade, Florestan Fernandes, Raymundo Faoro, Clóvis Moura,
Jacob Gorender, Celso Furtado, Antonio Cândido, Mario Pedrosa, Alfredo Bosi,
Cândido Portinari, Graciliano Ramos e Oscar Niemeyer” (IANNI, 2004, p. 61).
Esses autores buscam acompanhar a modernização do Brasil e os vastos desafios
impostos.
Percebe-se,
e Octavio Ianni menciona, que esta divisão não tem fronteiras bem delimitadas,
pois os autores sendo eles precursores, clássicos ou novos, vão dialogar entre
si, formando uma grande painel de interpretações sobre a nação.
As
crônicas de Os bruzundangas, que
virariam livro em 1923, após a morte do autor, começaram a ser publicadas em
1917, no semanário ABC. Com dívidas contraídas pela publicação de seu Triste Fim de Policarpo Quaresma, vendeu
os direitos de Os bruzundangas ao
editor Jacinto Ribeiro dos Santos: “Quando publicar estas notas em volume, que
está a aparecer em edição de Jacinto Ribeiro dos Santos, meu bom amigo e
camarada.” (BARRETO, 1998, p. 210).
No
livro, por meio da sátira, Lima Barreto retrata os costumes nacionais que
sempre incomodaram o país ou foram deixadas de lado. O Brasil foi fruto de uma
cultura transplantada, consequência de ter sido um país colonizado, ou seja,
sua formação cultural vem dos colonizadores, e a ele é atualmente associada uma
imagem de um país com um povo alegre, pacífico, com belas praias, natureza
exótica, entre tantos outros adjetivos, muitas vezes distorcidos. Distante dessas
assertivas, Lima Barreto, criando um país fictício, constrói um país distópico
e descreve sobre sua cultura, política e economia, criticando principalmente a
pseudo-erudição que angariava títulos para quem a professasse. As crônicas do
livro mostram, também, as máculas
desse país, como o preconceito de raça e uma elite preocupada em valorar
objetivos frívolos e sem sentidos, criadas pela oligarquia, mesmo essa
chafurdando na ignorância. É interessante
como várias das crônicas contidas no livro do autor possuem o mesmo teor
cáustico do escritor irlandês Jonathan Swift, quando esse, por meio de seus
romances, atacava a sociedade de sua época, denunciando, também pela sátira, o
discurso dominante. Um exemplo disso é o livro As Viagens de Gulliver,
onde Swift destila um humor maligno contra o “pensamento científico”, as
relações fúteis num âmbito geral e a ojeriza contra todo tipo de injustiça
encontrada nas viagens do personagem principal. Esse método de crítica voraz
tem uma ligação bastante íntima com o escritor brasileiro.
Conforme
Barreto :
Em nome da religião têm-se praticado muitos
crimes; em nome da arte têm-se justificado muitas sem-vergonhices; mas,
atualmente, é a ciência que justifica crimes e também assaltos aos minguados
orçamentos do país.( BARRETO, 2004, p. 386).
Isso
talvez não seja coincidência já que Lima Barreto conhecia as Línguas francesa e
inglesa acompanhando o que se produzia em outros países.
É
recorrente no país a indagação sobre o que é ser brasileiro e o significante que isso acarreta. São numerosos os estudos
interessados no comportamento nacional. Desde um viés antropológico, indagando
e analisando nossa história como grupo étnico, passando pela psicologia social
buscando compreender nossas idiossincrasias, artigos de revistas e jornais
relatando como pensa o brasileiro, até conversas do cotidiano produzindo uma
auto-projeção do que os povos do Brasil foram, o que são, e o que poderão ser.
Em
Os bruzundangas, Lima Barreto narra
uma variedade dos nossos comportamentos em diversas esferas sociais. Com isso,
infere-se o merecimento de estudar sua obra sob uma perspectiva do texto
literário como documento histórico, ou seja, tratando sua obra, aqui estudada,
como contributo para a historiografia.
Podemos,
assim, com mais acuidade, entender que contribuição é essa, focalizando nas
crônicas contidas em Os bruzundangas
a visão do autor a respeito do caráter nacional.
Na literatura brasileira tanto
literária e não literária encontramos estudos que retratam a população
brasileira. Oliveira Vianna, considerava nossa sociedade como não solidária
sendo isso uma característica notória do brasileiro, conforme afirma artigo
intitulado O caráter individualista e
pouco solidário do brasileiro, autoria de Dejalma Cremonese.
Mário de Andrade, no romance Macunaíma, publicado em 1928, trata o Brasil como resultado da mistura de povos,
gerando um tipo sem caráter algum, porém, festivo e malandro. Paulo Prado
contrapondo-se a isso, em Retrato do
Brasil, lançado no mesmo ano, analisa o comportamento nacional e afirma que
somos um povo melancólico e triste.
Sérgio Buarque de Hollanda escreve
em Raízes do Brasil, publicado em
1936, no capítulo intitulado Homem Cordial, que somos uma sociedade que resolve
tudo no “jeitinho brasileiro”, fugindo da formalidade para resolver nossas
vidas e que vingaríamos como uma sociedade cordial.
Em Urupês, impresso em 1918,
autoria de Monteiro Lobato, o autor descreve um sujeito nacional que ele chama
de caboclo. No conto, Lobato descreve cheio de emoção e ferocidade o que
intitula um conjunto de hábitos que ele vai chamar de “caboclismo”, fruto da
miscigenação gerando um homem com fraqueza, preguiça e incivilizado, vivendo de
forma inconsciente politicamente, representando a parte atrasada do Brasil.
Essa visão se contrapõe à da literatura romântica de José de Alencar que em
seus romances demonstrava o contrário por meio das ações em que a “mistura”
entre a raça indígena e europeia formava uma raça forte constituindo o “caráter
da pátria”
Outro livro que aborda o tema, tornando-se obra canônica, é Casa Grande e Senzala de Gilberto
Freyre. Nele o autor faz um extenso estudo do que ele chama família
brasileira. No prefácio da 48° edição, o
autor escreve: “Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o
caráter brasileiro; a nossa continuidade social” (Freyre, p. 45, 2003).
Refletindo sobre o caráter brasileiro, Freyre vai descrever o comportamento
sexual das famílias, a vida privada, a influência da cultura indígena,
portuguesa e dos escravos que para cá foram trazidos, e quais as conseqüências
desta cultura híbrida para a formação do Brasil.
Todas essas obras supracitadas a respeito dos estudos de
interpretação do Brasil são apenas uma parcela do que se produziu com o
objetivo de compreender a nação, pois trabalhos que objetivam analisar,
compreender e até sugerir caminhos para a nação sempre foram amplos e ainda
continuam a ser produzidos.
Com a
produção literária de Lima Barreto não foi diferente, apesar de não estar
situado na mesma seara de todos os autores supracitados (lembremos que a obra
de Barreto é considerada literária). Toda sua obra é marcada por ácidas
críticas ao comportamento nacional.
Adiante vamos discutir o conceito de caráter e discorrer
sobre sua origem e expor como alguns autores a conceituaram e como esta
problematização persiste nos dias atuais.
2. CARÁTER
Existe realmente uma índole genuinamente brasileira,
determinando o que é o brasileiro, onde qualquer estrangeiro percebesse que
tais hábitos são somente nossos?
Somos um povo sofredor? Somos obrigados a enfrentar
diariamente cargas de trabalho excessivas com um salário mínimo que não nos
sustenta, ou passar horas no trânsito, conseqüência de uma mobilidade urbana
ineficiente. Somos trabalhadores? Enfrentando, às vezes, mais de oito horas
diárias num ofício e ainda desenvolvendo outras tarefas, como cuidar da família
ou melhorar nossa formação curricular. Somos alegres? Ao longo do ano,
participamos de várias festividades, sendo a mais emblemática o carnaval. Somos
conformados? Aceitamos a corrupção exibida nos meios de comunicação por parte
dos políticos. Somos violentos? Colocamo-nos como o terceiro país no ranking da
América Latina em homicídios, morrendo mais de 43 mil brasileiros por ano. Ou
somos malandros? Tentamos driblar a burocracia e as leis em benefício próprio,
adeptos da Lei de Gerson.
Todos esses, e outros mais, adjetivos imputados aos
brasileiros podem ser um non sequitur, ou
seja, premissas que levam a conclusões falsas. Ou esconder as causas de um país
de várias facetas que apresentam uma grande complexidade social e cultural.
No século 19, escrito por Manuel Antônio de Almeida, surgiria
um romance com características que posteriormente seriam bastante exploradas no
contexto brasileiro. Memórias de um
sargento das Milícias publicado em 1854, narra estória de Leonardo Pataca,
um estabanado português quem vem para o Brasil e vai sofrer as desventuras do
amor e se meter em diversos mal-entendidos. O livro caracteriza de forma
convincente, usando o cômico e a linguagem popular, as relações sociais no país
por meio da malandragem e a opção por uma vida fácil. Encontramos isso tanto na
figura do pai, Leonardo Pataca, quanto do filho Leonardo, esse, demonstrando
desinteresse por qualquer ofício, sempre optando pela vida livre de obrigações,
recheada de lazeres. O livro pode ser considerado na literatura nacional como
obra que inicia um tipo nacional, o malandro.
Algumas décadas depois, surgiria o personagem Macunaíma no
livro de mesmo nome, escrito por Mário de Andrade. Macunaíma é fruto da
mestiçagem brasileira, dado à preguiça e a malandragem, que entre muiraquitãs e
“famintos” estrangeiros constrói um “caráter próprio”, ou talvez, caráter
nenhum, pois na falta de um caráter assimila, a seu modo, um caráter provisório
a fim de estar adaptado ao ambiente. Andrade mistura lendas indígenas com
relações urbanas que primam pelo individualismo. Outro caráter explorado é a
falta de vontade, bastando lembrar a célebre frase do personagem principal que
se repete durante o romance: “Ai que preguiça”. Mario de Andrade celebra o
mestiço como elemento fundador da nação e longe de querer inferir que no
brasileiro a falta de caráter nos levaria a um mau-caráter, o autor nos leva a
entender que no Brasil ainda não existia um caráter que nos definisse como
brasileiros, ou que nossa identidade estava em formação.
Em meados da década de 40, o mundo conheceria um personagem
criado por Walt Disney. Seu nome, Jose Carioca, para os brasileiros Zé Carioca,
um papagaio preguiçoso, bon vivant,
malandro, bom de papo que vivia apenas de trabalho informal. O personagem foi
antes publicado em tirinhas e em 1943 seria exibido no desenho animado Alô, Amigos. A animação foi dividida em
quatro partes, cada uma explorando uma parte da América do Sul. Na última,
intitulada Aquarela do Brasil, Zé
Carioca convida Pato Donald, numa explícita imagem criada do Brasil, para tomar
aguardente e aprender samba.
Nota-se, com estes exemplos, que a imagem do brasileiro
malandro foi uma característica bem explorada e incutida no imaginário do
Brasil. Várias outras características seriam adicionadas a esse perfil, fazendo
do brasileiro um ser complexo em que, numa reflexão da sua própria imagem, nos
levaria a vários paradoxos.
Exemplo disso, é mais recentemente, a Revista Época, comemorando a 700º edição,
publicada em 17 de outubro de 2011, destaca na capa o artigo “O otimismo geral da nação”. Nele, é
apresentada nova pesquisa estatística em relação à pesquisa realizada em 1998,
ano de surgimento da revista. Na pesquisa do ano atual são apresentadas
opiniões de alguns brasileiros, infográficos de uma pesquisa encomendada e
reflexões de alguns pensadores de como pensa o brasileiro e as mudanças de suas
perspectivas a respeito do país.
Época inicia seu
artigo, de autoria do jornalista Ricardo Mendonça, mostrando uma pesquisa
realizada pelo Gallup World Poll em 2009, que mediu o grau de satisfação do
brasileiro em relação a outros 144 países. O resultado colocou o Brasil em 17º
lugar no ranking em relação ao contentamento de sua vida. Quando perguntado ao
mesmo entrevistado sobre o futuro, mais especificamente uma projeção para 2014,
colocava-nos na primeira posição do ranking como nação otimista. Entre os 144
países, anteriormente éramos um país “moderadamente otimista” preocupado com o
desemprego.
A revista,
encomendando pesquisa exclusiva realizada pelo Instituto MCI, busca mostrar
atualmente como pensa o brasileiro, apresentando o resultado de que nosso
caráter otimista aumentou consideravelmente.
Fato interessante é
quando o artigo cita o sociólogo e jornalista Muniz Sodré, citando seu livro A comunicação do grotesco: introdução a
cultura de massa no Brasil, quando esse afirma que o otimismo está
relacionado à psicologia do brasileiro e a políticas sociais que começaram a
fazer parte do que é ser brasileiro. Na
reportagem, essas afirmativas vão fazer coro com o “homem cordial” de Sérgio
Buarque de Hollanda, pois, segundo a revista, Sodré ainda assinala que somos
uma sociedade caracterizada pelo “espírito de conciliação”, “gosto pelo
verbalismo” e uma sociedade com “transigência nas relações raciais”, colocando
atenção especial em nosso “otimismo generalizado”. (MENDONÇA, 2011, p.80-86).
A tendência ao otimismo teria se iniciado com o governo do
Presidente Getúlio Vargas que no imaginário nacional teria incutido um tipo de
ufanismo, propalando mudanças profundas nos país e valorizando a classe
desfavorecida, sendo até hoje seu governo conhecido como “pai dos pobres”.
A revista, a fim de dar base científico-argumentativa,
consulta Marcus Figueiredo, pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e
Política da UERJ bem como Odair Figueiredo, psicólogo da PUC de São Paulo, esse
defendo a ideia, com base nos dados obtidos pela publicação, de que nosso
otimismo é oriundo de políticas econômicas que visam uma distribuição de renda
mais igualitária como consequência melhorando a autoestima do brasileiro. Já
para Figueiredo, a hipótese é que o Brasil deu um salto econômico muito grande
nos últimos anos.
A publicação apresenta gráficos para corroborar a afirmação
de que somos um povo otimista. Em um deles, mostra resultado indicando que
melhoramos em relação aos nossos pais na vida de 44% em 1998 para 73% em 2011,
ou seja, ocorre uma inversão de perspectiva. A revista assinala que mesmo esse
otimismo não apagou da memória coletiva dos brasileiros, a consciência que
vivemos num país desigual, com criminalidade alta e com vários outros problemas
sociais preocupantes. Para isso, Época,
apresenta resultados da pesquisa relacionada às grandes preocupações dos
brasileiros, onde figura em primeiro lugar a saúde, em detrimento de 1998, onde
a primeira grande preocupação seria a criminalidade.
O autor do artigo finaliza concluindo que essas mudanças
geram novos desafios e necessitam novas maneiras de pensar o Brasil.
Perante esses diagnósticos mutáveis, tanto da revista como os
apresentados no corpo deste trabalho, muitas das interpretações do Brasil
tomaram um viés racista e autoritário. Ontem e hoje, muito do que se tem
divulgado pode ser considerado mero “achismo” com bases pseudocientíficas ou
apenas erros interpretativos, como, por exemplo, alguns pensadores que vão
tentar definir o caráter nacional pelo viés racial, tais quais o diplomata francês
Conde de Gobineaux e o psicólogo Gustave Le Bon que são exemplos dos que
escreveram teorias raciais com a intenção de explicar a formação da nação
brasileira.
Atualmente, alguns formadores de opinião, continuam com uma
perspectiva pessimista, defendendo que o caráter do brasileiro é arruinado,
como é o caso de Olavo de Carvalho que publica em sua Home Page (www.olavodecarcarvalho.org) uma série de artigos
atacando as políticas e comportamentos do país e, também, com seu livro
polêmico intitulado O imbecil coletivo. Na mesma linha segue Janer Cristaldo que escreve crônicas diárias, em seu blog (http://cristaldo.blogspot.com/), sob um viés conservador, criticando a
intelectualidade brasileira e Diogo Mainardi, formador de opinião, que lançou
dois livros expondo, implicitamente, porque o Brasil não cresce como nação,
sendo eles: Contra o Brasil e Arquipélago,
duas ficções em gênero de paródia do que já se pensou e fez do Brasil.
Para tentar compreender essas diversas discrepâncias e como o
caráter nacional foi formado, este estudo utiliza como matriz investigativa a
obra de Dante Moreira Leite, nascida de uma tese de doutorado defendida em
1954.
Em O caráter nacional
Brasileiro, em sua 4º edição publicada em 1983, o autor faz um extenso
estudo sobre o tema, investigando desde premissas que dão sua origem até obras
brasileiras que abordaram a temática, vinculando ideologias que deram forma ao
conceito de caráter nacional como é concebido nos dias atuais, até a construção
de um caráter brasileiro.
Para Leite, no uso atual do termo, a ideia tem sua construção
no romantismo, e seu grande responsável seria Herder. Pois é no movimento Sturm und Drang que nasceriam várias
teses, indo a princípio contra o racionalismo iluminista dando mais valor a
intuição e ao sentimento. Entretanto:
“Mais importante ainda, fracciona-se a unidade fundamental da humanidade, que
passa a ser vista, não apenas na sequência histórica – o que já era feito pelo
Iluminismo – mas nas suas peculiaridades regionais, nacionais e individuais”
(LEITE, 1983, p. 21).
Em Herder, explica o autor, é lançado um olhar sobre o
progresso particular das nações. Nota-se
que estas ideias andariam lado a lado com os sentimentos nacionalistas.
Buscando valorizar as culturas populares dos países, vincula-se, mesmo que
implicitamente, à idéia de que uma nação desenvolver-se-ia por meio de
características nacionais – um contraponto aos ideais iluministas que negavam
tal afirmação.
Enfim, enquanto os românticos defendem a diversidade das
nações, e nelas surgiriam ideias individuais e originais – ideais mais ou menos
vinculadas ao ufanismo. Para os racionalistas a história, indiferente da nação,
busca um objetivo único.
No caráter nacional atribui-se um desenvolvimento de uma
nação por seus caracteres próprios. Nesse conceito são atribuídos valores
psicológicos, raciais e desvincula-se, por exemplo, questões sociais e
históricas.
Assim, a ideia de caráter nacional, vai ser abandonada por
algum tempo, retomada, fundida com outras teses e bastante criticada em algum
momento e depois receberia contribuições de vários campos científicos como a
antropologia, a sociologia, a psicologia e a genética.
Conforme Oliveira:
Nos estudos de caráter nacional
podemos observar um princípio muitas vezes aparente no trabalho intelectual: a
uma fase de entusiasmo sucedeu um período de crítica e ceticismo, onde o
conceito de caráter nacional foi inteiramente abandonado; depois, através de
novos pressupostos, o conceito foi retomado [...] (OLIVEIRA, 1983, p. 39).
Na antropologia o conceito foi esquecido, pois em tal campo
científico encontraram-se múltiplas dificuldades em gerir uma classificação
racial e associar raça com características de determinado povo.
A ideia volta ao debate de forma bastante tímida com Ruth
Benedict quando essa vai pesquisar a cultura global. Ainda que prudente segundo
Dante de Oliveira, a antropóloga não expõe dúvidas em considerar a ideia de uma
cultura orgânica sob vistas do global. Para ela, os antropólogos não teriam
assimilado as especificidades, fruto de serem estudiosos de mesa. “Por isso
supõe que os trabalhos de Malinowski – com sua análise funcionalista de
determinada sociedade – sejam dos primeiros a atingir essa apreensão global”
(OLIVEIRA, 1983, p. 40).
Estes estudos geram consequentemente um fator importante,
estudando a diversidade cultural. Benedict observa que os indivíduos aceitam os
padrões impostos pela cultura de sua sociedade. Desta forma, o caráter estaria
ligado ao fato de valores culturais que estimulam tais comportamentos, ou seja,
“[...] a partir do comportamento das pessoas, constrói um padrão cultural e
depois, afirma que a personalidade apresenta tais ou quais comportamentos
porque a cultura os impõe [...] (OLIVEIRA, 1983, p 40).
Essas suposições geraram problemas, pois, por exemplo,
precisaria aos estudiosos à época, levar em conta a homogeneidade de
personalidades e culturas, como, por exemplo, nos estudos de Benedict que a
explicação dos sujeitos desajustados nas sociedades não ganhou explicações
convincentes. Com isso percebiam-se lacunas que teorias psicológicas
conseguiriam preencher, conectando padrões culturais a padrões de
personalidades.
Na psicologia, Freud seria o precursor dos estudos sobre a
personalidade das pessoas na sociedade. O autor vai contribuir, entre outras
suposições, com sua teoria do Complexo de
Édipo, em que faz uma analogia entre a constituição evolutiva individual da
pessoa com o desenvolvimento da sociedade onde este estava incluso, as duas
formações estariam vinculadas em suas origens, uma e outra eram frutos de
repressões. Freud chega a fazer uma diferenciação entre classes sociais e como
essas se comportavam no meio em que viviam. Enquanto acreditava que as classes
trabalhadoras tinham uma tendência a levar uma vida mais alegre por não ser tímida
sexualmente, essa, também seria incapaz de possuir forças para a produção
intelectual. Obviamente esta problemática vai se perder no caminho dos estudos
sobre apreensão das personalidades pelo seu viés extremamente cheio de
conceitos subjetivos.
Para Oliveira:
A contribuição de Freud para a renovação dos estudos de
caráter nacional foi indireta e decorreu da parte de sua teoria que pareceria
menos significativa para esse campo de estudos: a universalidade do complexo de
Édipo. Este princípio foi discutido por Malinowski e essa discussão abriu novo
caminho à pesquisa da formação da personalidade. (OLIVEIRA, 1983, p.43)
Dante de Oliveira descreve que após Freud novos estudos mais
amplos surgiriam fazendo uma conectividade entre estudos psicanalíticos e culturais.
O autor discorre sobre as ideias de Kardiner, Erich Fromm e David Riesman.
Frisa-se, também, que epistemologicamente a palavra caráter
nacional, tem muitas vezes como sinônimo os conceitos de identidade nacional e
cultura nacional, porém existem diferenças dependendo do autor que as aborde.
Para Calderoni:
Quando se fala em “caráter nacional” está se aludindo à
índole, a características internas ou mentais que um povo teria e assumindo uma
visão de homem e de ciência nas quais as pessoas agiriam orientadas por
inclinações internas e estas seriam as responsáveis por sua condição social e
material. A noção de “caráter nacional” predominou nas (então chamadas)
Ciências Sociais até aproximadamente a década de 1930-1940. (CALDERONI, 20--?,
p. 11)
Assim, o conceito se
diferencia sutilmente de identidade, esse mais amplo e atualmente mais em voga
no debates contemporâneos. Prova disso é a freqüência com que os estudos de
Stuart Hall são referenciados e a importância que esse autor tem para o meio
acadêmico, ganhando mais notoriedade com os Estudos
Culturais e reflexões sobre a pós-modernidade. Levando isso em
consideração, acredita-se ser relevante, mencionar como Hall conceitualiza a
questão.
No livro, A identidade
cultural na pós-modernidade, Stuart Hall inicia a obra explicando
resumidamente como a identidade foi concebida em três épocas. Num primeiro
momento haveria o sujeito no Iluminismo, quando esse estava “baseado numa
concepção de pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado
das capacidades de razão, de consciência e de ação [..]” (HALL, 2001, p. 10).
Inserido neste meio, o sujeito é quase inalterável em sua identidade,
valorizando bastante o eu individual de cada um.
Após, o advento da modernidade, as grandes mudanças são
geradas ao redor do mundo e, como consequência, as relações sociais tornam-se
complicadas de serem traduzidas, percebe-se que “[...] este núcleo interior do
sujeito não era autonômo e auto-suficiente, mas era formado na relação com
“outras pessoas importantes para ele” [...]” (HALL, 2001, p. 11). A identidade
e o eu entram num diálogo e sob este olhar gera o “[...] que se tornou a
concepção sociológica da questão, a identidade é formada na “interação” entre o
eu e a sociedade.” (HALL, 2001, p 11). Desta forma, o sujeito constrói sua
identidade a partir do contato com o mundo em que vive, ligando sua
subjetividade à objetividade dos lugares em que habita.
Em um terceiro momento, estaria a sociedade contemporânea,
esta caracteristicamente fragmentária, de alta complexidade, efêmera,
contraditória, de maneira que o sujeito absorve uma identidade com as mesmas
características dessa sociedade, ou seja, rompem-se as identidades
contínuas/sólidas para não apenas uma identidade, mas sim várias, nem todas bem
delineadas.
Segundo Hall, “O próprio processo de identificação, através
do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais
provisório, variável e problemático” (HALL, 2001, p. 12). Tem-se,
consequentemente, o sujeito pós-moderno “[...] como não tendo uma identidade
fixa, essencial ou permanente.” (HALL, 2001, p. 12). No resultado dessa mutabilidade já não existe
mais características de um sujeito coeso diante do mundo, existe, sim, uma
identificação por meio do contexto histórico, adaptativa. Diferente, por
exemplo, das sociedades tradicionais onde a questão biológica estava em
cena. A narrativa pessoal já não mais
existe ou se existe é entrecortada. A nossa estória é por vários momentos
confrontada com a ampliação dos símbolos culturais nos levando a assimilá-los,
mesmo que temporariamente. “A identidade plenamente unificada, completa, segura
e coerente é uma fantasia” (HALL, 2001, p 13).
Ademais, a identidade já não tem mais uma fixidez, é
relativizada, marcada por símbolos, e se dá por meio da exclusão. Ou seja, para
o sujeito identificar-se no seu meio é necessário, antes de tudo, excluir o que
é “de fora”, o “estranho”, o eu se constrói num jogo social binário de tal
forma que para afirmar sua identidade excluem-se outras identidades e
vice-versa.
Contrapondo essas identidades líquidas contemporizadas onde
não existem delimitações definidas com o objetivo de distinguirem-se plenamente
uma das outras, no Brasil, algumas décadas atrás, e até mais recentemente,
tentou-se por meio de propagandas, do ensino, da cultura e de políticas
governamentais vincular um caráter que fosse realmente nacional. Perpetrado
pela elite e vários intelectuais, buscou-se instruir o “povo” a fim de
constituir uma consciência nacional única. Assim, o ensino de história, por
exemplo, vai ser um dos mecanismos para incutir tal ideologia.
De acordo com Abud:
Os programas de ensino de História
continham elementos fundamentais para a formação que se pretendia dar ao
educando, no sentido de levá-lo a compreender a continuidade histórica do povo
brasileiro, compreensão esta que seria a base do patriotismo. Nessa
perspectiva, o ensino de História seria um instrumento poderoso na construção
do Estado Nacional, pois traria à luz o passado de todos os brasileiros [...] (ABUD,
1998)
Não só com a educação, como já referenciado no corpo deste
trabalho, mas também com a literatura, o movimento modernista levou o debate à
exaustão, produzindo várias obras e manifestos. Como exemplo anterior, a Liga
da Defesa Nacional, organização surgida em 1916, fundada pelo poeta Olavo Braz
Martins dos Guimarães Bilac e em funcionamento até os dias atuais, defendendo
os “sagrados” valores da pátria. Têm-se também, posteriormente, a Associação
Brasileira de Anunciantes – ABA, que em 2004, lançando a campanha “O melhor do
Brasil é o Brasileiro”, objetivando combater uma suposta baixa estima da
população. E a outra campanha iniciada no governo Lula em que se usa o slogan,
“Sou brasileiro e não desisto nunca”, com a finalidade de mostrar que mesmo que
vivamos num país desigual, somos um povo forte, trabalhador e renitente quanto
aos nossos sonhos e objetivos. Ironicamente, no início deste ano, o governo
federal sob gestão da presidente Dilma Roussef, desistiu de manter a campanha,
após 6 anos desde o seu lançamento, alegando outras prioridades.
Conclui-se que não só estas campanhas buscaram moldar
características no povo brasileiro, mas tiveram efeitos psicologizantes em que
se pode obter resultados positivos de uma elite sob a “massa”, ou esconder as
discrepâncias sociais como a desigualdade de renda, miséria, corrupção, fome,
violência e desemprego. Problemas sociais ainda vistos em abundância no
cotidiano de qualquer habitante, ou seja, um otimismo, ou a imposição de um,
que mascara o conformismo de muitos favorecendo poucos.
3. OS BRUZUNDANGAS
Segundo Barreto a: “bruzundanga” fornece matéria de sobra
para livrar-nos, a nós do Brasil, de piores males, pois possui maiores e mais
completos. Sua missão é, portanto, como a dos “maiores” da Arte, livrar-nos dos outros, naturalmente menores”. (BARRETO, 1998,
p. 27).
As crônicas contidas no livro supracitado fazem parte do que
podemos chamar de fase madura de Lima Barreto, pois é no final da vida do autor
que elas ganham vida. Percebe-se, lendo-as, que são frutos de uma crítica
social aprofundada, não escondendo grandes doses de revolta nas linhas que as
constituem. Mostram, também, um homem com dissabores de uma vida cheia de
impropérios em várias esferas, que o levam a conclusão, em seu diário: “Quando
chegar à minha idade, depois de lutas e desgostos de toda ordem, verá como
tenho razão” (BARRETO, 1993, p. 288).
Lima Barreto, nessas crônicas, retratando um país fictício,
reflete a respeito da cena literária, dos burocratas despreparados ocupando cargos
públicos, da elite, que ele chama de nobreza, da política republicana e dos
políticos que a governam, do ensino oferecido para a classe favorecida, das
relações diplomáticas, como as leis que a regem, das suas relações de poder,
das forças armadas, e seus supostos heróis, da sociedade, das eleições, do
sistema de saúde e da religião. Todo esse temário é descrito ironicamente. Com
isso Barreto constitui um país nos seus aspectos fundamentais, pintando-o à sua
maneira, fazendo assim, uma paródia de um país chamado Brasil.
O autor escreve sem temor ou preocupação sobre o que
pensariam os vários intelectuais da época. Um exemplo disso é a discussão em
torno das eleições presidenciais em que Rui Barbosa disputava o cargo. O autor
tinha asco da escrita de Barbosa, imputando-lhe o mimo de “João das regras”
(MORAIS, 1983, p.50). O resultado desse
comportamento subversivo é ser taxado de cínico.
Conforme assinala Morais:
Muita gente há de ter considerado Lima Barreto um cínico,
desses sujeitos que só querem rir dos outros, desde o cerne do seu fundo
despeito. Mas o escritor anotava nas páginas das suas Impressões de leitura: “A ironia vem da dor”. Sua obra é a
expressão de uma perplexidade dolorida ante um tempo de vícios legitimados e
injustiças estruturais da sociedade. (MORAIS, 1983, p. 57)
Deduz-se, que muitos dos adjetivos que o autor recebeu de
seus críticos à época, (como o exemplo acima) e também de ser ignorado e
tratado como suburbano, sem estilo, demasiadamente biográfico entre outros,
apontados quando se lê estudos sobre o autor - são mais para desmerecer o
trabalho criativo de Lima Barreto do que uma crítica ao conteúdo de sua obra.
Basta pensarmos na crítica que o autor não possuía estilo, ou seja, sem as
pomposas expressões de literariedade; No entanto, muito do que parecia fruto de
uma literatura mal escrita, produzida sem preocupação com normas gramaticais,
era na verdade uma intenção consciente do autor, uma forma de combater as
frivolidades da literatura, já que: “Para ele, o papel do literato era o de
instruir o leitor e não de entretê-lo simplesmente. Por isso, é que a idéia da
literatura "decorativa" para deleite de uma elite corrupta tanto lhe
desagradava” (MATIAS & GOMES, 20--?, p. 04).
Para sua literatura militante, Barreto se apropria de um
mecanismo que acreditava ser uma importante arma de combate – a ironia. “É o
viés irônico o caminho escolhido por Lima Barreto para “dizer a cidade”, “dizer
o Brasil”.” (PESAVENTO, 1997, p. 42).
O autor acreditava que mais demolidor do que ações diretas
contra as injustiças, a exposição dessas injustiças ao ridículo causaria mais
danos. Ou seja, a ironia como arma dos “fracos”.
A obra é também a tentativa de representação do real. O
autor, militante usando a linguagem como uma prática social, vai com a obra,
interagir com o meio social, atacando ferozmente tudo aquilo que ele considera
medíocre. Barreto se vale do simbólico
para fundir o real e o imaginário. Sob esse olhar, percebe-se, a importância de
tentar apreender a obra e buscar explicitar os momentos com que o autor
constrói ou descreve o caráter nacional, a índole que guiava aquele momento, e
que reverbera até os dias atuais.
Na crônica “Os samoiedas”, parte importante do livro, Lima
Barreto trata da literatura da Bruzundanga, “literatos importantes, solenes,
respeitados, nunca consegui entender[..]” (BARRETO, 1998, p. 31).
Sua crítica vai ancorar-se em denunciar uma linguagem
prolixa, mimética do que se produziu na Europa: “Quanto mais incompreensível é
ela, mais admirado é o escritor que a escreve, por todos que não lhe entenderam
o escrito” (BARRETO, 1998, p.31). Com interesses mais no status quo do que propriamente em uma literatura, que Barreto
acreditava ser maior.
O autor demonstrava como os literatos privilegiavam a
futilidade e suas obras se sustentavam por elogios midiáticos. Ou seja, uma literatura mascarada, sem
sinceridade, enviesada, onde qualquer opinião destoante era posta de lado.
Os literatos teriam o caráter subserviente ao que se produzia
fora do país, exibiam uma aversão ao nacional e até tentavam imitar os costumes
destes países.
No entanto, nesse capítulo, Lima Barreto escreve um trecho
revelador para narrar um conto popular chamado “O general e o diabo” ou “O
padre e o diabo, segundo ele próprio, inferindo que a cultura rica estava com
os populares.
Conforme Barreto:
Nela há a literatura oral e popular que me foi narrado com
todo o sabor da ingenuidade e dos modismos peculiares ao povo, posso reproduzir
aqui, embora a reprodução não guarde mais aquele encanto de frase simples e
imagens familiares das anônimas narrações das coletividades humanas (BARRETO,
1998, p. 32).
Demonstra-se, que o autor tinha apego à cultural popular, às
modinhas de violão produzidas nas ruas, aos contos transmitidos oralmente, fora
dos eixos institucionais como a academia ou redações de grandes jornais. Em Triste fim de Policarpo Quaresma esse apego também aparece, são
vários os momentos em que o autor insere a cultura popular no romance.
Sua visão amarga é concebida com ataques usando um discurso
teimoso e monolítico, onde o autor mostra bastante sarcasmo quando descreve os
seguidores da escola dos samoiedas. Essa escola seria o ninho de produção
literária do país, onde seus frequentadores tinham o hábito de utilizar
citações para defender argumentos falsos, buscar esquemas prontos para produzir
suas obras poéticas e teriam como grande preocupação apenas manter o status de
artista, mesmo sendo ignaros e completamente sem talentos.
Assim, Barreto conclui:
Poderia mais esclarecer semelhante escola, os seus processos,
as suas regras, as suas superstições; mas não convém fazer semelhante cousa,
porque bem podia acontecer que alguns dos meus compatriotas a quiserem seguir.
Já temos muitas bobagens e são bastantes.
Fico nisto. (BARRETO, 1998, p. 47).
Na visão do autor, a produção cultural do país era
caracterizada por uma supervalorização do banal e sua função social era nula.
Se as letras tinham o papel de modificar o meio, este papel não só não era
cumprido como era ignorado.
Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda,
entra em consonância com a crítica à escola dos samoiedas de Lima Barreto, no
capítulo intitulado Novos Tempos, o estudioso afirma:
Ainda quando se punham a legiferar ou a cuidar de organização
e coisas práticas, os nossos homens de ideias eram, em geral, puros homens de
palavras e livros; não saíam de si mesmos, de seus sonhos e imaginações. Tudo
assim conspirava para a fabricação de uma realidade artificiosa e livresca,
onde nossa vida verdadeira morria asfixiada. (HOLANDA, p. 63, 1995)
O trecho de Hollanda também amplia a crítica de Barreto,
explanando que não só os literatos apresentavam uma formação de fachada, sendo
inábeis para por em prática qualquer ideia. Essa característica desdobra-se
também para a classe política.
Em outro momento do livro Os
bruzundangas há o retrato da política do país fictício. Ela, semelhante à
organização do Brasil, possui, segundo o autor, uma superstição chamada
eleições.
Dentre as muitas superstições políticas do nosso tempo uma
das mais curiosas é sem dúvida a das eleições. Admissíveis quando se trata de
pequenas cidades, para a escolha de autoridades verdadeiramente locais, quase
municipais, como eram na Antiguidade, elas tomam um aspecto de sortilégio, de
adivinhação, ao serem transplantadas para os nossos imensos estados modernos.
(BARRETO, 1998, p. 128)
Compreende-se que para o autor o problema das eleições seriam
os grandes conglomerados urbanos, já que nas pequenas cidades, as eleições
seriam legítimas. Nota-se, com isso, que Barreto com um avançado pensamento
libertário para a época, acreditava numa sociedade descentralizada, ou seja, é
nas pequenas cidades que o fluxo verdadeiramente democrático ocorreria melhor.
Numa sociedade avessa ao ideário do autor, ele, com um
azedume idiossincrático, caracteriza os mecanismos do sufrágio universal.
Conforme Barreto:
Um deputado eleito por nossos imensos distritos eleitorais,
com nossas dificuldades de comunicação, quer materiais, quer intelectuais, sai
das urnas como um manipanso a quem se vão emprestar virtudes e poderes que ele
quase não tem. Os seus eleitores não
sabem quem ele é, quais são os seus talentos, as suas ideias políticas , as
suas vidas sociais, o grau de interesse que
que ele pode ter pela causa
pública; é um puro nome sem nada atrás ou dentro dele. (BARRETO, 1998, p. 130).
Sendo assim, numa sociedade fragmentada, a pior situação
seria uma eleição em que o eleito não representa as variadas necessidades de
seus eleitores. Porém, mesmo assim o eleito se gaba de seu novo cargo, e
defende veementemente os interesses de seus pares.
Barreto prossegue sua crítica ao caráter da política narrando
uma história particular. Nela, um eleitor preocupado com os interesses pessoais
de um amigo em eleger um político favorável aos pobres, para não morrer de
fome, decide averiguar estes mecanismos “democráticos”. O resultado é “uma
porção de pauladas e quatro facadas” (BARRETO, 1998, p. 134).
O absurdo da situação caracteriza uma realidade que vem até a
contemporaneidade, tendo sido necessário criar mecanismos como a urna
eletrônica para evitar fraudes dos que queriam chegar ao poder.
Lima Barreto fecha o capítulo, desferindo: “Os meus leitores
poderão verificar que, no ponto de vista eleitoral, a Bruzundanga nada tem que
invejar da nossa cara pátria”. (BARRETO, 1998, p. 134).
A busca em escrever de forma sincera, sem uma retórica
falseada, mostra como a obra de Lima Barreto, com certo tom jornalístico,
sempre buscou a representação do real. A ficção se mistura ao real quando o
autor quer mostrar exemplos que corroborem com sua linha de raciocínio. Assim,
os “causos” seriam uma estratégia para o autor expor uma realidade de um país
dividido entre uma realidade acachapante e uma utopia de nação sorridente em
que a infelicidade reinava por dentro. O cômico em Barreto não é para rir com a
sociedade, e sim rir dela. Diante disso, entre outros variados aspectos, a obra
de Lima Barreto constitui um realismo crítico.
O autor sempre se preocupou em fazer uma leitura aproximada
da realidade brasileira, são muitas as afirmações em que autor diz buscar
entendê-la. Conforme trecho do livro Cemitério
dos Vivos:
Sou levado incoercivelmente para o estudo da sociedade, para
os seus mistérios, para os motivos dos seus choques para a contemplação e análise
de todos os sentimentos. As formas das coisas que a cercam, e as suas criações,
e os seus ridículos, me interessam e dão-me vontade de reproduzi-los no papel e
descrever-lhe a sua alma, e particularidades. (BARRETO, 1956, p. 82 apud LIMA,
2001, p. 18).
Essa reprodução da
realidade barretiana que permearia todos os gêneros em que publicou, é um
diálogo áspero com a sociedade do seu tempo. O autor denuncia com sua
sinceridade as lacunas que história contada pela visão dominante evitava a todo
custo mostrar.
Os vários estudiosos sobre o Brasil, quase
sempre construíram uma crítica de que no país não existiria uma cultura
originalmente brasileira. O que faz sentido, haja vista que o país foi uma
colônia de Portugal e o processo imigratório foi bastante acentuado de povos
europeus que de lá trouxeram o seu caldo cultural, como também, os escravos da
África trazidos para cá.
Podemos ser fruto de
uma cultura oriunda do outro lado do oceano, mas Lima Barreto em um capítulo da
obra sob o título de “A organização do entusiasmo” faz um contraponto quando se
trata de um dos costumes da população da Bruzundanga:
A curiosa república de
que me venho ocupando é acusada pelos seus filósofos de não ter costumes
originais. É um erro de que participam quase todos os seus naturais – erro
muito naturalmente explicável, pois mergulhados na sua vida, não possuem pontos
de referência para aquilatar da originalidade das usanças especiais da sua
terra. (BARRETO, 1998, p. 143).
No capítulo, o autor
dispara contra a falsidade com que eram organizados saraus, piqueniques,
banquetes, entre outros, a fim de homenagear algum sujeito que muitas vezes era
um charlatão, “[..] foi de segundo tenente da Marinha a contra-almirante, em
cinco anos, sem nunca ter comandado uma falua” (BARRETO, 1998, p. 144). Isso
gerava efusivos entusiasmos no elogiado.
Entretanto, nessa
prática idiotizante, surgiam alguns contratempos:
Acontecia em certas ocasiões que um grupo gritava – Viva o
doutor Clarindo! – o outro exclamava: - Viva o doutor Carlindo! – e um terceiro
exclavama – Viva o doutor Arlindo! – quando o verdadeiro nome do doutor era –
Gracindo! (BARRETO, 1998, p. 144).
O sarcasmo inexorável
que permeia toda a obra, como se pode ver nos trechos usados no corpus deste estudo, escondem um pano de
fundo de costumes insensatos. Além disso, não só uma marcha estúpida guiava a
nação, Barreto indica pistas do caráter do povo, apresentando-o como ingênuo e
sem poder de reflexão, sendo guiado por uma classe doutoral incipiente. Esse singular costume satirizado na obra, mantém
conexões com a identidade brasileira. Esses costumes artificializados poderiam
ser frutos de uma cultura oriunda de fora trazida para o Brasil, numa tentativa
de criar caracteres do Brasil, e, aqui, numa prática mimética, distorcem-se
produzindo essas singularidades.
Desde os primórdios
do período da independência do Brasil, vem-se tentando incutir uma identidade,
um caráter e uma cultura nacionais. Nesta tentativa ocorreria o que se assinala
abaixo:
Roberto Schwarz observou em “Nacional por subtração” que o
caráter imitativo e inautêntico de nossa vida cultural configurou-se como um
dado formador de nossa reflexão crítica, desde os tempos da independência. A
partir daí várias “cruzadas nacionalistas” em prol de nossa cultura e
identidade autênticas tornaram-se uma constante. (LIMA, 2001, p 34).
Nesta busca
incessante por uma identidade própria, cria-se um sintoma psicológico conhecido
como Bovarismo.
O bovarismo tem sua definição a partir do
que se lê na obra canônica de Flaubert - Madame
Bovary. Levada para o campo da
psicologia por Jules Gaultier em 1892 na obra Le Bovarysme. La psychologie dans l’oeuvre de
Flaubert, de acordo com o E-dicionário de termos literários.
Segundo a teoria de Gaultier, o Bovarismo se constituíria de uma “[...]
capacidade dos indíviduos de constrúirem imagens de si próprios
diferentes daquilo que são na realidade.“ (PESAVENTO, 1997, p. 30-31).
De igual modo, o
autor sendo um provável leitor de Flaubert, afirmava que tendo lido a obra do
psicólogo francês encontrou “vistas do que já tinha sentido também” [..]”. (PESAVENTO,
1997, p. 32), Com isso, o autor, utiliza a teoria aplicando-a no contexto
brasileiro, a fim de mostrar como o caráter nacional tinha um paralelo com a
essa teoria.
Percebe-se que um dos
suportes de análise do Brasil feita pelo autor foi utilizar o Bovarismo, e assim, apontar como em
vários setores da sociedade este sintoma estava presente.
Como é demonstrado
nos trechos supracitados, o teor da crítica barretiana sempre foi buscar
mostrar a desonestidade de uma elite de que ele não fazia parte, mas que estava
presente na sua vida, por meio das suas relações e contatos pessoais.
Essa desonestidade,
sob um viés do Bovarismo, pode ser
interpretada de forma ambígua, podendo ser vista como uma atitude consciente de
quem a pratica com o objetivo de ascensão social ou como uma ato inconsciente
em que o portador do sintoma imaginando aquilo que não é começa a se comportar
como ele imagina a si próprio.
A teoria de Jules
Gaultier é um aspecto fundamental para entender parte da crítica de Lima
Barreto, mas não a única. Isso porque a análise do autor é bem ampla, não
atacando somente uma classe ou um tipo nacional. Assim, a leitura do Brasil
feita por Barreto desdobra-se, também, em outros temas, e se arma de outras
críticas.
Um exemplo disso é
quando o autor faz uma rápida análise da música brasileira, em que afirma: “A
música, na Bruzundanga, é, em geral, a arte das mulheres. É raro aparecer no
país uma obra musical” (BARRETO, 1998, p. 195). Ou seja, nessa análise não há
uma classe social específica sendo descrita, mas uma abrangente produção
cultural onde sendo que quem a produz são sujeitos que podem estar inclusos
tanto nas classes altas como nas baixas.
Pode-se facilmente
trazer a crítica de Barreto para a atualidade. Pois é notório no Brasil que
existam alguns gêneros musicais que valorizam mais a sensualidade da mulher do
que a música em si. Basta pensar no gênero Funk
Carioca, em que os movimentos da dança com conotação sexual ganham mais
importância do que a letra ou o ritmo musical, Caso semelhante é o do gênero Axé, que seguindo a mesma lógica do Funk Carioca, dá mais importância ao
erótico, utilizando sempre coreografias que simulam o ato de copular.
Frisa-se que tal
análise não faz juízo de valor do que é bom ou ruim na música brasileira, mas
sim faz um paralelo entre a crítica barretiana quando este lança um olhar
crítico à música como “a arte das mulheres” e os gêneros musicais da cultura de
massa nas últimas décadas.
Outra crítica rápida
e curiosa contida em Os bruzundangas é quando o autor fala a respeito
de religião. A religião que teria mais
adeptos seria:
[...] a católica apostólica romana; entretando, é de admirar
que, sendo assim, a sua população, atualmente já considerável, não seja capaz
de fornecer os sacerdotes, quer regulares, quer seculares, exigidos pelas
necessidades de seu culto. (BARRETO, 1998, p. 153).
Lima Barreto supõe
que nenhum nacional estava no alto clero da Igreja Católica: “[..] em geral,
são estrangeiros” (Barreto, 1998, p. 153). No entanto, essa afirmação mostra
que mesmo a Igreja Católica estando bastante associada à colonização do Brasil
(como se vê na presença dos Jesuítas que vieram da Europa) isso não significou
que a o alto clero do catolicismo tentou inserir a sociedade brasileira em
alguns dos seus setores.
Esses dois exemplos
acima, mostram como para analisar a obra de Barreto apenas sob apenas um viés
teórico, como o Bovarismo, é
insuficiente para a obra aqui estudada. Ou seja, como citado em algumas partes
deste estudo a amplitude crítica do autor atravessa vários conceitos teóricos,
sendo eles da época ou posteriores.
Para finalizar este
estudo sobre caráter nacional, analisaremos o o capítulo do livro Os Bruzundangas intitulado “A sociedade”, em que o autor faz uma espécie de
síntese do que é o “Brasil”, analisando como ele próprio via a nação, construindo um retrato do caráter dos brasileiros.
“Pode ser definida a
feição geral da sociedade da Bruzundanga com a palavra – medíocre” (BARRETO,
1998, p.124).
Nota-se com esse
trecho, o resumo da interpretação do autor a respeito de tal país fictício. Indo
além de tudo em que ele analisa, a mediocridade faria parte do caráter geral
dessa sociedade.
Se em Retrato do Brasil, escrito por Paulo
Prado, o autor faz um tripé em que divide e caracteriza nossa sociedade em
luxúria, cobiça e tristeza, Lima Barreto conclui em Os Bruzundangas, satiricamente, que, acima de tudo, o comportamento
que destacava na época seria a insignificância.
Explicando:
Uma tão vulgar preocupação pauta toda a vida intelectual da
sociedade bruzundanguense, de modo que, nas salas, nos salões, nas festas, o
tema geral dos comensais é a política; são as combinações de senatoriais, de
governanças, de províncias e quejandos. (BARRETO, 1998, p.124)
Assim, Lima Barreto
explana que a preocupação dos bruzundanguenses com o que acontecia no plano político do país,
nada mais era do que um interesse mesquinho de um comportamento visando apenas
benefício próprio.
O resultado desse
comportamento seria que “[...] todas as manifestações de cultura dessa
sociedade são inferiores” (BARRETO, 1998, p. 124).
Para Lima Barreto a
cultura dominante produzida por uma minoria sempre apresentou traços dissimulados,
e longe de querer traçar uma cultura genuína brasileira, o autor reivindicava
uma arte que apresentasse características que representassem o país como ele
era realmente.
O comportamento, criticado
pelo autor, era fruto de mecenas que desejavam uma atividade cultural que os
satisfizesse, mesmo que para isso o dinheiro usado fosse de origem pública,
confirmando a posição do autor: “Sabem o que faz? Influi para que ele receba um
pagamento indevido do Tesouro ou promove uma fantástica comissão para o indivíduo”
(BARRETO, 1998, p. 126).
E se trouxer a
crítica acima para a atualidade, consegue-se fazer um paralelo, como exemplo,
com a extinta Embrafilme, empresa estatal que fornecia recursos públicos para o
cinema, sendo extinta sob o governo do presidente Fernando Collor de Mello, em
1990, e voltando onze anos depois, com o nome de Ancine, no governo de Fernando
Henrique Cardoso. Ou seja, a prática de o governo financiar obras de arte,
mesmo existindo uma maneira atualmente mais democrática de investir o dinheiro,
gera polêmicas na sociedade. Como, por exemplo, a reportagem publicada no
jornal Folha de São Paulo, em 2003,
sob o título de Para presidente da Ancine
“uso de dinheiro no cinema é irracional, escrito pela jornalista Silvana
Arantes”.
A irracionalidade,
conforme a reportagem estaria no fato de que os financiamentos de filmes
brasileiros não visam um retorno comercial, ou seja, produções desinteressadas
em gerar um público que pagasse a obra financiada. Isso cria uma grande
discrepância entre investimento público e resultados satisfatórios do dinheiro
investido. A afirmação do presidente da Ancine na época, Gustavo Dahl, relata ainda
que o problema estaria relacionado à falta de visibilidade do filme. Assim,
investe-se demasiadamente na produção, mas não em sua distribuição e criação de
cópias do filme, essenciais para um retorno condizente com o dinheiro gasto.
Enfim essa política
ineficaz de fomento à cultura nacional, que não consegue atingir suas metas,
vem de décadas, e atravessa não só o cinema nacional. O teatro no Brasil também
vive de situação semelhante, precisando sempre de um amplo apoio do governo e
de instituições que promovem festivais para mantê-lo. Já no começo do século
passado Barreto percebia este cenário artístico brasileiro: “Um dos toques da
mediocridade da sociedade da Bruzundanga é a sua incapacidade para manter um
teatro nacional” (BARRETO, 1998, p.127).
Um outro fenômeno
interessante caracterizado pelo autor, é a avaliação do gosto estético da
classe dominante do país. O texto da crônica descreve desde seus túmulos que
para ele: “são outra manifestação da sua pobreza mental” (BARRETO, 1998,
p.126), até seus gostos pela escultura que seriam: “os ornatos, as estátuas,
toda a concepção deles, enfim, é de uma grande indigência artística”. (BARRETO,
1998, p.126).
Nas crônicas de Lima
Barreto o autor sempre busca deixar claro que não era sua intenção defender uma
cultura em detrimento de outra, mas sim atacar o modismo, a arte efêmera,
indiferente de onde ela estivesse e que classe a produzisse.
Conforme Barreto:
Poderia ainda falar suas festas íntimas, nos seus casamentos,
nos seus batizados, nas suas datas familiares; mas, por hoje, basta o que vai
dito, é o bastante para mostrar de que maneira a aristocracia da Bruzundanga é
incapaz de representar o papel normal das aristocracias: criar o gosto, afinar
a civilização, suscitar e amparar grandes obras.
Se falei aqui em aristocracia, foi abusando da retórica. O
meu intento é designar com tão altissonante palavra. Não uma classe estável que detenha o domínio da sociedade da
Bruzundanga, e a represente constantemente; mas os efêmeros que, por instantes, representam esse papel naquele
interessante país. (BARRETO, 1998, p. 127, grifo nosso).
Por outro lado, o
autor reconhecia que produzir arte, qualquer que fosse, em um país provinciano,
recém independente, era muito difícil e quase nunca gerava reconhecimento:
Houve até, pintor de mérito, que se fez fabricante de
tabuletas, para poder viver; os mais, quando perdida a força de entusiasmo da
mocidade, se entregam a narcóticos, especialmente a uma espécie da nossa
cachaça, chamada lá sodka, para esquecer os sonhos de arte e glória dos seus
primeiros anos.
Dá-se o mesmo com os poetas, principalmente os poucos
audazes, aos quais os jornais nem notícia dão dos livros. (BARRETO, 1998,
p.207).
O trecho acima contém
traços de biografia, pois é o artista-escritor falando da arte de seu país.
Barreto cita a cachaça, sua companheira de vida, infere o motivo de ingeri-la,
“para esquecer os sonhos de arte”, e descreve um país sem interesse pela
cultura produzida. Se em Os Bruzundangas o que vai permear o livro é a sátira,
no entanto, o autor também, retrata a sua própria realidade mais uma vez,
projeta um caráter seu e do país em que vivia.
“Ah! A literatura ou
me mata ou me dá o que eu peço dela” (BARRETO, 1993, p. 154). Essa é uma das
anotações, feita quando o autor passava por mais uma temporada em um hospício,
revelando o quão importante era a literatura para o autor. Mostra também um
autor que desenvolveu um interesse profundo pela cultura e pela sociedade do
seu país.
Suas análises a
respeito do Brasil são desconstruções e construções de hábitos que insistiram
em atravessar os anos e ainda incidem no atual cenário brasileiro.
E assim o autor
conclui: “Estas notas foram escritas ao correr da pena; mas, entretanto,
poderei desenvolvê-las se os interessados me provocarem. Escrevo em dia
oportuno.” (BARRETO, 1998, p. 210).
4. CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Narrar o passado para
que possamos refletir sobre o futuro. É nesse caminho que podemos atingir uma
sociedade mais igualitária.
A índole brasileira
retratada por Lima Barreto à época, pode fornecer várias pistas de um caráter
que atravessou anos e um século. Desta forma, analisar sua obra sob essa
perspectiva é parte essencial para que possamos compreender nossos hábitos e de
onde eles surgiram.
Se Sérgio Buarque de
Hollanda dizia em seu livro, Raízes do
Brasil, que não conseguiríamos
separar o privado do público. Lima Barreto dá exemplos, anteriormente a
publicação da obra de Hollanda, de como esse caráter se materializava em nossa
sociedade, como era danosa, como favorecia poucos e prejudicava muitos.
Na década de 20, nos
Estados Unidos da América, um jornalista com a mesma acidez do nosso mulato
brasileiro fazia sucesso entre o público. Henry Mencken agiu de maneira
semelhante a Lima Barreto, denunciou, satirizou, foi até aos tribunais defender
suas ideias. No entanto, Mencken
conheceu a glória do seu trabalho em vida, e até hoje seu nome é ovacionado
pela crítica mundial. Suas crônicas foram traduzidas para vários países, e seu
conjunto, foi publicado no Brasil sob o título de O Livro dos insultos.
Nosso autor teve
reconhecimento bem mais modesto. Em vida não viu um livro seu agradar à grande
maioria. Morreu arrebentado fisicamente, inchado de tanto ingerir sua cachaça
preferida – Paraty, delirando e cansado.
No entanto, a
história nacional mostrou que o autor tinha razão. Hoje, Lima Barreto figura
entre os grandes literatos de nosso país. Suas histórias ganharam centenas de
edições. Versões cinematográficas foram realizadas bem como peças teatrais. A
academia o aceitou e o estudou.
O grito teimoso do
escritor tímido ecoou sob o tempo e finalmente a literatura barretiana deu para
o autor o que ele tanto quis em vida. Infelizmente isso aconteceu tardiamente.
Se em Macunaíma, de Mário de Andrade, o autor respondeu à questão do caráter do
brasileiro de maneira única, em que se podiam fechar as questões, o tema
continua em voga, tanto no debate acadêmico como na mídia de massa, como no que
é apresentado no corpo deste estudo.
Se a temática de
caráter, cultura e identidade ainda mostram vigor em discussões, pode-se
inferir que dificilmente essas questões terão conclusões satisfatórias, ou
terão fim algum dia. Provavelmente esses debates se estenderão durante anos, ou
quem sabe, séculos. Assim, torna-se necessário trazer à mesa de debate as mais
variadas opiniões e análises que trataram e tratam do assunto. Com isso,
poderemos chegar mais perto das indagações do que somos, porque somos e para
onde vamos.
Lima Barreto
mostra-se importante voz para estar incluso nos debates sobre o Brasil, não só
o debate sobre o caráter. Sua escrita cria quadros bastante verossímeis de
certo período, conturbado, diga-se de passagem, já que era uma fase de
transição política no país, o início da República no Brasil.
Os Bruzundangas são os
retratos recortados de um país que ainda está em formação e apresenta vários
problemas do início do século passado. A cidadania, a saúde, a política, a
educação, etc, são questões que ou se resolve ou continuaremos numa marcha
fúnebre como a retratada por Lima Barreto.
Se o autor retrata
muitas vezes nosso caráter destacando nele em uma espécie de xenofilia, ou
seja, uma admiração efusiva por tudo que vem de fora desvalorizando o que é
produzido no Brasil, isso mostra que devemos repensar nossos hábitos. Ainda
mais hoje, em que vivemos num mundo globalizado, apresentando características
favoráveis como o acesso, nunca visto antes, a outras culturas, mas também
apresentando características desfavoráveis, exibindo uma massificação
destruidora das culturas de minorias.
Lima Barreto também é
um exemplo de que a lucidez em analisar o país não é algo restrito a intelectuais
institucionalizados. Distante disso, o autor passa, com sua vida, a imagem de
que conhecer a cultura da mãe pátria é um aspecto fundamental para conhecermos a
nós próprio.
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Como é caracterizado o livro ?
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