quinta-feira, 16 de agosto de 2012

OS BRUZUNDANGAS E O CARÁTER NACIONAL:os costumes à margem de um país chamado Brasil


1  Introdução



 “Que nada menino. O que prejudica os nossos literatos não é cachaça. É a burrice” (BARRETO, 1942, apud BARBOSA, 1964, p. 312).

 O autor dessa frase desferida em um dos seus lugares prediletos, o boteco, respondendo a um colega de bebida, seria um dos mais controversos escritores da literatura brasileira. O autor percorreu uma trajetória que foi, de pobre posto à margem diversas vezes por sua teimosia em ser sincero e atacar os problemas sociais que seus olhos viam, até o respeito por sua obra, hoje, utilizada em vestibulares e absorvida no meio acadêmico.
Lima Barreto, nascido em 13 de maio de 1881, fruto de uma mãe criada por uma família abastada e um pai com desejo de ascensão social, desde cedo conheceu as limitações financeiras que iriam permear toda a sua vida, tendo contato com a dura realidade de alguém nascido no Brasil.
Autor de dezenas de crônicas, romances, contos, entre outros. Lima Barreto se consagraria na literatura Brasileira com o romance Triste fim de Policarpo Quaresma, livro que rendeu dívidas para o autor por anos, pois foi custeada pelo próprio Barreto. A obra barretiana está inserida no que se convencionou chamar de pré-modernismo – início do século 20. Para Alfredo Bosi (1972, p.343) “Pode-se chamar pré-modernista (no sentido forte de premonição dos temas vivos em 22) tudo o que. nas primeiras décadas do século, problematiza a nossa realidade social e cultural.”.
Toda a obra de Barreto está incluída nesse momento histórico literário, pois sua obra é marcada por incendiárias críticas sociais, sejam elas contos, romances ou crônicas.
Conforme Sevcenko:

O temário de sua obra inclui: movimentos históricos, relações sociais e raciais, transformações sociais, políticas, econômicas e culturais; ideais sociais, políticos e econômicos; crítica social, moral e cultural; discussões filosóficas e científicas, referências ao presente imediato, recente e ao futuro próximo; ao cotidiano urbano e suburbano à política nacional e internacional, à burocracia, dados biográficos, realidade do sertão, descrições geológicas e geográficas (fragmentos) análises históricas. (SEVCENKO, 1999, p. 162)


Percebe-se, claramente, o quão diversos foram os alvos que Lima Barreto mirou. Essa ampla plataforma de temas é um fato interessante para perceber que por mais que existam estudos e teses sobre a obra barretiana ela é uma grande fonte de descobertas.
Para desenvolver esse mosaico temático o autor se valeria de um arcabouço enorme de personagens reconhecidamente nacionais. De ex-escravos e loucos até burocratas e presidentes – a realidade humana abordada por Barreto é tão diversa quanto os temas explorados em diferentes gêneros utilizados para construir sua obra literária. Suas figuras literárias são gente que provavelmente o autor encontrava em suas andanças pela cidade do Rio de Janeiro.  É interessante notar que Lima Barreto não é só um espírito da época, mas também anteviu, por meio de sua reflexão, um futuro obscuro conseqüente das políticas públicas tomadas pelos burocratas e seguidas na nação.
Seu nome é associado, em livros de história da literatura brasileira, aos de Euclides da Cunha, Graça Aranha e Monteiro Lobato. Esse grupo de certa forma antecipará o que explodiria em 1922, a semana da arte moderna, um divisor de águas da literatura brasileira, intitulado modernismo, e caracterizado pela busca de inovação, já que os movimentos literários anteriores estavam demasiadamente explorados e com pouca vitalidade criativa.
Notam-se, contudo, quando se lê sua biografia, várias controvérsias em relação ao modernismo, pois o autor cultivava mágoas, mesmo tendo contato com alguns mentores da criação da semana da arte moderna. Um exemplo é sua sinceridade em expor sua opinião sobre os criadores da revista Klaxon, elaborada por modernistas paulistas.
De acordo com Barbosa:

[..]esses moços tão estimáveis - pergunta o romancista – pensam mesmo que nós não sabíamos disso de futurismo? Há vinte anos, ou mais, que se fala nisto e não há quem leia a mais ordinária revista francesa ou o pasquim mais ordinário da Itália que não conheça as cabotinagens de ‘Il Marinetti. (BARBOSA, 1964, p. 310).
                      
            Lima Barreto, também, criticou os movimentos feministas e a luta pela ascensão social da mulher – comparando-o a outros movimentos masculinos. Vociferou contra a modernização do Rio de Janeiro- pois dizia que isso exterminaria os morros, uma característica da paisagem carioca. Mostrou desprezo pelo futebol – que afirmava ser uma prática burguesa e causadora de desunião entre as pessoas. E defendeu a monarquia em detrimento da república, pois a primeira possuía ao menos mais honestidade.
Entretanto, segundo Bosi, estas contradições, de um declarado anarquista: “[...] já foram aclaradas: Lima Barreto viera da pequena classe média suburbana, e como suburbano reagia em termos de conservantismo sentimental” (BOSI, 1977, p. 356).
            Outro fator importante para a reflexão da obra barretiana, é o fato de Lima Barreto ser negro. Sabe-se que no Brasil, país ex-escravocrata, o negro raramente conseguiu ascensão social. Barreto sofreu as marcas do mito da democracia racial.
            Não só o escritor sofreu as máculas de um país racista, basta lembramos outros autores negros como Cruz e Souza, Domingos Caldas Barbosa, Solano Trindade, entre outros.
            Com efeito, no Brasil, o racismo vai mostrar significância, sendo visto como flagelo nacional somente nas últimas décadas, pois é na Constituição de 1988 que a questão ganha o mérito de ser julgada como crime sujeito a reclusão. Antes, o sujeito racista era responsabilizado somente por um ato delituoso.
            Até hoje o debate sobre relações raciais gera tensões sociais no país. Alguns autores afirmam que nossa sociedade não seria estruturalmente racista. Um exemplo é o editor de jornalismo do canal de televisão rede Globo, Ali Kamel, que lançou o livro Não somos Racistas a fim de atacar as políticas afirmativas de cotas raciais, pois para o autor essas políticas geram ressentimento racial, e a desigualdade é fruto da pobreza e não da cor da pele. Porém, outros estudos relatam uma opinião diferente da apresentada pelo jornalista.
Conforme, estudo de caso de Ciconello:

O mito da democracia racial, ainda presente no imaginário da população brasileira, foi um avanço sociológico na época de sua criação, nos anos de 1930, quando se consolidava um “racismo científico” e com características eugênicas. Contudo, ao mesmo tempo em que incorpora a presença da contribuição negra na formação nacional, naturaliza os espaços subordinados que negros e negras ocupam na sociedade e invisibiliza as relações de poder entre as populações negra e branca. O resultado é uma sociedade em que o racismo e as desigualdades sociais dele resultante não se revelam, não se debatem, parecem não existir. O problema, dizem, não é o racismo, é a pobreza; as desigualdades não são raciais, são sociais. (CICONELLO, 2008, p.02)


Esses debates explicam, no mínimo, que mesmo o negro livre, sua situação pouco ou nada mudou, e nos dias atuais ainda são necessárias intervenções do Estado para reparar essa desigualdade. Lima Barreto viveu na pele a condição de ser negro num país que vai tomar políticas tardias contra o racismo, assim, igual seria forçoso afirmar que sua exclusão também é originária de um racismo velado.
Outro motivo de exclusão sofrida pelo autor é pelo fato, além de negro e alcoólatra, Barreto ter passado por internamentos psiquiátricos. Para conhecer as reflexões sobre essas experiências recomenda-se ler seu livro Cemitério dos Vivos, um misto de autobiografia com romance.
Entretanto, o foco central deste estudo é supor a obra Os bruzundangas como importante fonte Histórica que mantém diálogo com os estudos de explicação do Brasil, mais especificamente na questão do caráter nacional. Cogitaremos sobre como a obra antecedeu e dialogou com estudos sobre o mesmo tema.
Octavio Ianni, em seu Pensamento Social no Brasil divide em três épocas os estudos sobre interpretações do Brasil, a saber: precursores, clássicos e novos.
            “Dentre os “precursores”, colocam-se Euclides da Cunha, Alberto Torres, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Silvio Romero, José Veríssimo, Machado de Assis e Lima Barreto [...]” (IANNI, 2004, p. 60). A temática desses autores gira em torno de questões como: “[...] raça, povo e nação, centralismo e federalismo, oligarquia e liberalismo, escravatura e monarquia, europeização e americanização” (IANNI, 2004, p.61).
            Os clássicos seriam: “[...] Jackson de Figueiredo, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Roberto C. Simonsen, Caio Prado Junior e Eugênio Gudin.” (IANNI, 2004. P. 61). Seus estudos girariam em torno da questão nacional defendendo a tese de que o Brasil era predominamente agrário e extrativista (Ianni, 2004).
            E os novos: “Mário de Andrade, Florestan Fernandes, Raymundo Faoro, Clóvis Moura, Jacob Gorender, Celso Furtado, Antonio Cândido, Mario Pedrosa, Alfredo Bosi, Cândido Portinari, Graciliano Ramos e Oscar Niemeyer” (IANNI, 2004, p. 61). Esses autores buscam acompanhar a modernização do Brasil e os vastos desafios impostos.
            Percebe-se, e Octavio Ianni menciona, que esta divisão não tem fronteiras bem delimitadas, pois os autores sendo eles precursores, clássicos ou novos, vão dialogar entre si, formando uma grande painel de interpretações sobre a nação.
            As crônicas de Os bruzundangas, que virariam livro em 1923, após a morte do autor, começaram a ser publicadas em 1917, no semanário ABC. Com dívidas contraídas pela publicação de seu Triste Fim de Policarpo Quaresma, vendeu os direitos de Os bruzundangas ao editor Jacinto Ribeiro dos Santos: “Quando publicar estas notas em volume, que está a aparecer em edição de Jacinto Ribeiro dos Santos, meu bom amigo e camarada.” (BARRETO, 1998, p. 210).
            No livro, por meio da sátira, Lima Barreto retrata os costumes nacionais que sempre incomodaram o país ou foram deixadas de lado. O Brasil foi fruto de uma cultura transplantada, consequência de ter sido um país colonizado, ou seja, sua formação cultural vem dos colonizadores, e a ele é atualmente associada uma imagem de um país com um povo alegre, pacífico, com belas praias, natureza exótica, entre tantos outros adjetivos, muitas vezes distorcidos. Distante dessas assertivas, Lima Barreto, criando um país fictício, constrói um país distópico e descreve sobre sua cultura, política e economia, criticando principalmente a pseudo-erudição que angariava títulos para quem a professasse. As crônicas do livro mostram, também, as máculas desse país, como o preconceito de raça e uma elite preocupada em valorar objetivos frívolos e sem sentidos, criadas pela oligarquia, mesmo essa chafurdando na ignorância.  É interessante como várias das crônicas contidas no livro do autor possuem o mesmo teor cáustico do escritor irlandês Jonathan Swift, quando esse, por meio de seus romances, atacava a sociedade de sua época, denunciando, também pela sátira, o discurso dominante. Um exemplo disso é o livro As Viagens de Gulliver, onde Swift destila um humor maligno contra o “pensamento científico”, as relações fúteis num âmbito geral e a ojeriza contra todo tipo de injustiça encontrada nas viagens do personagem principal. Esse método de crítica voraz tem uma ligação bastante íntima com o escritor brasileiro.
            Conforme Barreto :

Em nome da religião têm-se praticado muitos crimes; em nome da arte têm-se justificado muitas sem-vergonhices; mas, atualmente, é a ciência que justifica crimes e também assaltos aos minguados orçamentos do país.( BARRETO, 2004, p. 386).

            Isso talvez não seja coincidência já que Lima Barreto conhecia as Línguas francesa e inglesa acompanhando o que se produzia em outros países.          
            É recorrente no país a indagação sobre o que é ser brasileiro e o significante que isso acarreta. São numerosos os estudos interessados no comportamento nacional. Desde um viés antropológico, indagando e analisando nossa história como grupo étnico, passando pela psicologia social buscando compreender nossas idiossincrasias, artigos de revistas e jornais relatando como pensa o brasileiro, até conversas do cotidiano produzindo uma auto-projeção do que os povos do Brasil foram, o que são, e o que poderão ser.
            Em Os bruzundangas, Lima Barreto narra uma variedade dos nossos comportamentos em diversas esferas sociais. Com isso, infere-se o merecimento de estudar sua obra sob uma perspectiva do texto literário como documento histórico, ou seja, tratando sua obra, aqui estudada, como contributo para a historiografia.
            Podemos, assim, com mais acuidade, entender que contribuição é essa, focalizando nas crônicas contidas em Os bruzundangas a visão do autor a respeito do caráter nacional.
            Na literatura brasileira tanto literária e não literária encontramos estudos que retratam a população brasileira. Oliveira Vianna, considerava nossa sociedade como não solidária sendo isso uma característica notória do brasileiro, conforme afirma artigo intitulado O caráter individualista e pouco solidário do brasileiro, autoria de Dejalma Cremonese.
            Mário de Andrade, no romance Macunaíma, publicado em 1928, trata o Brasil como resultado da mistura de povos, gerando um tipo sem caráter algum, porém, festivo e malandro. Paulo Prado contrapondo-se a isso, em Retrato do Brasil, lançado no mesmo ano, analisa o comportamento nacional e afirma que somos um povo melancólico e triste.
            Sérgio Buarque de Hollanda escreve em Raízes do Brasil, publicado em 1936, no capítulo intitulado Homem Cordial, que somos uma sociedade que resolve tudo no “jeitinho brasileiro”, fugindo da formalidade para resolver nossas vidas e que vingaríamos como uma sociedade cordial.
            Em Urupês, impresso em 1918, autoria de Monteiro Lobato, o autor descreve um sujeito nacional que ele chama de caboclo. No conto, Lobato descreve cheio de emoção e ferocidade o que intitula um conjunto de hábitos que ele vai chamar de “caboclismo”, fruto da miscigenação gerando um homem com fraqueza, preguiça e incivilizado, vivendo de forma inconsciente politicamente, representando a parte atrasada do Brasil. Essa visão se contrapõe à da literatura romântica de José de Alencar que em seus romances demonstrava o contrário por meio das ações em que a “mistura” entre a raça indígena e europeia formava uma raça forte constituindo o “caráter da pátria”
Outro livro que aborda o tema, tornando-se obra canônica, é Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre. Nele o autor faz um extenso estudo do que ele chama família brasileira.  No prefácio da 48° edição, o autor escreve: “Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a nossa continuidade social” (Freyre, p. 45, 2003). Refletindo sobre o caráter brasileiro, Freyre vai descrever o comportamento sexual das famílias, a vida privada, a influência da cultura indígena, portuguesa e dos escravos que para cá foram trazidos, e quais as conseqüências desta cultura híbrida para a formação do Brasil.
Todas essas obras supracitadas a respeito dos estudos de interpretação do Brasil são apenas uma parcela do que se produziu com o objetivo de compreender a nação, pois trabalhos que objetivam analisar, compreender e até sugerir caminhos para a nação sempre foram amplos e ainda continuam a ser produzidos.
Com a produção literária de Lima Barreto não foi diferente, apesar de não estar situado na mesma seara de todos os autores supracitados (lembremos que a obra de Barreto é considerada literária). Toda sua obra é marcada por ácidas críticas ao comportamento nacional.
Adiante vamos discutir o conceito de caráter e discorrer sobre sua origem e expor como alguns autores a conceituaram e como esta problematização persiste nos dias atuais.

2.  CARÁTER


Existe realmente uma índole genuinamente brasileira, determinando o que é o brasileiro, onde qualquer estrangeiro percebesse que tais hábitos são somente nossos?
Somos um povo sofredor? Somos obrigados a enfrentar diariamente cargas de trabalho excessivas com um salário mínimo que não nos sustenta, ou passar horas no trânsito, conseqüência de uma mobilidade urbana ineficiente. Somos trabalhadores? Enfrentando, às vezes, mais de oito horas diárias num ofício e ainda desenvolvendo outras tarefas, como cuidar da família ou melhorar nossa formação curricular. Somos alegres? Ao longo do ano, participamos de várias festividades, sendo a mais emblemática o carnaval. Somos conformados? Aceitamos a corrupção exibida nos meios de comunicação por parte dos políticos. Somos violentos? Colocamo-nos como o terceiro país no ranking da América Latina em homicídios, morrendo mais de 43 mil brasileiros por ano. Ou somos malandros? Tentamos driblar a burocracia e as leis em benefício próprio, adeptos da Lei de Gerson. 
Todos esses, e outros mais, adjetivos imputados aos brasileiros podem ser um non sequitur, ou seja, premissas que levam a conclusões falsas. Ou esconder as causas de um país de várias facetas que apresentam uma grande complexidade social e cultural.
No século 19, escrito por Manuel Antônio de Almeida, surgiria um romance com características que posteriormente seriam bastante exploradas no contexto brasileiro. Memórias de um sargento das Milícias publicado em 1854, narra estória de Leonardo Pataca, um estabanado português quem vem para o Brasil e vai sofrer as desventuras do amor e se meter em diversos mal-entendidos. O livro caracteriza de forma convincente, usando o cômico e a linguagem popular, as relações sociais no país por meio da malandragem e a opção por uma vida fácil. Encontramos isso tanto na figura do pai, Leonardo Pataca, quanto do filho Leonardo, esse, demonstrando desinteresse por qualquer ofício, sempre optando pela vida livre de obrigações, recheada de lazeres. O livro pode ser considerado na literatura nacional como obra que inicia um tipo nacional, o malandro.
Algumas décadas depois, surgiria o personagem Macunaíma no livro de mesmo nome, escrito por Mário de Andrade. Macunaíma é fruto da mestiçagem brasileira, dado à preguiça e a malandragem, que entre muiraquitãs e “famintos” estrangeiros constrói um “caráter próprio”, ou talvez, caráter nenhum, pois na falta de um caráter assimila, a seu modo, um caráter provisório a fim de estar adaptado ao ambiente. Andrade mistura lendas indígenas com relações urbanas que primam pelo individualismo. Outro caráter explorado é a falta de vontade, bastando lembrar a célebre frase do personagem principal que se repete durante o romance: “Ai que preguiça”. Mario de Andrade celebra o mestiço como elemento fundador da nação e longe de querer inferir que no brasileiro a falta de caráter nos levaria a um mau-caráter, o autor nos leva a entender que no Brasil ainda não existia um caráter que nos definisse como brasileiros, ou que nossa identidade estava em formação.
Em meados da década de 40, o mundo conheceria um personagem criado por Walt Disney. Seu nome, Jose Carioca, para os brasileiros Zé Carioca, um papagaio preguiçoso, bon vivant, malandro, bom de papo que vivia apenas de trabalho informal. O personagem foi antes publicado em tirinhas e em 1943 seria exibido no desenho animado Alô, Amigos. A animação foi dividida em quatro partes, cada uma explorando uma parte da América do Sul. Na última, intitulada Aquarela do Brasil, Zé Carioca convida Pato Donald, numa explícita imagem criada do Brasil, para tomar aguardente e aprender samba.
Nota-se, com estes exemplos, que a imagem do brasileiro malandro foi uma característica bem explorada e incutida no imaginário do Brasil. Várias outras características seriam adicionadas a esse perfil, fazendo do brasileiro um ser complexo em que, numa reflexão da sua própria imagem, nos levaria a vários paradoxos.
Exemplo disso, é mais recentemente, a Revista Época, comemorando a 700º edição, publicada em 17 de outubro de 2011, destaca na capa o artigo “O otimismo geral da nação”. Nele, é apresentada nova pesquisa estatística em relação à pesquisa realizada em 1998, ano de surgimento da revista. Na pesquisa do ano atual são apresentadas opiniões de alguns brasileiros, infográficos de uma pesquisa encomendada e reflexões de alguns pensadores de como pensa o brasileiro e as mudanças de suas perspectivas a respeito do país.
Época inicia seu artigo, de autoria do jornalista Ricardo Mendonça, mostrando uma pesquisa realizada pelo Gallup World Poll em 2009, que mediu o grau de satisfação do brasileiro em relação a outros 144 países. O resultado colocou o Brasil em 17º lugar no ranking em relação ao contentamento de sua vida. Quando perguntado ao mesmo entrevistado sobre o futuro, mais especificamente uma projeção para 2014, colocava-nos na primeira posição do ranking como nação otimista. Entre os 144 países, anteriormente éramos um país “moderadamente otimista” preocupado com o desemprego.
   A revista, encomendando pesquisa exclusiva realizada pelo Instituto MCI, busca mostrar atualmente como pensa o brasileiro, apresentando o resultado de que nosso caráter otimista aumentou consideravelmente.
   Fato interessante é quando o artigo cita o sociólogo e jornalista Muniz Sodré, citando seu livro A comunicação do grotesco: introdução a cultura de massa no Brasil, quando esse afirma que o otimismo está relacionado à psicologia do brasileiro e a políticas sociais que começaram a fazer parte do que é ser brasileiro.  Na reportagem, essas afirmativas vão fazer coro com o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Hollanda, pois, segundo a revista, Sodré ainda assinala que somos uma sociedade caracterizada pelo “espírito de conciliação”, “gosto pelo verbalismo” e uma sociedade com “transigência nas relações raciais”, colocando atenção especial em nosso “otimismo generalizado”. (MENDONÇA, 2011, p.80-86).
A tendência ao otimismo teria se iniciado com o governo do Presidente Getúlio Vargas que no imaginário nacional teria incutido um tipo de ufanismo, propalando mudanças profundas nos país e valorizando a classe desfavorecida, sendo até hoje seu governo conhecido como “pai dos pobres”.
A revista, a fim de dar base científico-argumentativa, consulta Marcus Figueiredo, pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Política da UERJ bem como Odair Figueiredo, psicólogo da PUC de São Paulo, esse defendo a ideia, com base nos dados obtidos pela publicação, de que nosso otimismo é oriundo de políticas econômicas que visam uma distribuição de renda mais igualitária como consequência melhorando a autoestima do brasileiro. Já para Figueiredo, a hipótese é que o Brasil deu um salto econômico muito grande nos últimos anos.
A publicação apresenta gráficos para corroborar a afirmação de que somos um povo otimista. Em um deles, mostra resultado indicando que melhoramos em relação aos nossos pais na vida de 44% em 1998 para 73% em 2011, ou seja, ocorre uma inversão de perspectiva. A revista assinala que mesmo esse otimismo não apagou da memória coletiva dos brasileiros, a consciência que vivemos num país desigual, com criminalidade alta e com vários outros problemas sociais preocupantes. Para isso, Época, apresenta resultados da pesquisa relacionada às grandes preocupações dos brasileiros, onde figura em primeiro lugar a saúde, em detrimento de 1998, onde a primeira grande preocupação seria a criminalidade.
O autor do artigo finaliza concluindo que essas mudanças geram novos desafios e necessitam novas maneiras de pensar o Brasil. 
Perante esses diagnósticos mutáveis, tanto da revista como os apresentados no corpo deste trabalho, muitas das interpretações do Brasil tomaram um viés racista e autoritário. Ontem e hoje, muito do que se tem divulgado pode ser considerado mero “achismo” com bases pseudocientíficas ou apenas erros interpretativos, como, por exemplo, alguns pensadores que vão tentar definir o caráter nacional pelo viés racial, tais quais o diplomata francês Conde de Gobineaux e o psicólogo Gustave Le Bon que são exemplos dos que escreveram teorias raciais com a intenção de explicar a formação da nação brasileira.
Atualmente, alguns formadores de opinião, continuam com uma perspectiva pessimista, defendendo que o caráter do brasileiro é arruinado, como é o caso de Olavo de Carvalho que publica em sua Home Page (www.olavodecarcarvalho.org) uma série de artigos atacando as políticas e comportamentos do país e, também, com seu livro polêmico intitulado O imbecil coletivo. Na mesma linha segue Janer Cristaldo que escreve crônicas diárias, em seu blog (http://cristaldo.blogspot.com/), sob um viés conservador, criticando a intelectualidade brasileira e Diogo Mainardi, formador de opinião, que lançou dois livros expondo, implicitamente, porque o Brasil não cresce como nação, sendo eles: Contra o Brasil e Arquipélago, duas ficções em gênero de paródia do que já se pensou e fez do Brasil.
Para tentar compreender essas diversas discrepâncias e como o caráter nacional foi formado, este estudo utiliza como matriz investigativa a obra de Dante Moreira Leite, nascida de uma tese de doutorado defendida em 1954.
Em O caráter nacional Brasileiro, em sua 4º edição publicada em 1983, o autor faz um extenso estudo sobre o tema, investigando desde premissas que dão sua origem até obras brasileiras que abordaram a temática, vinculando ideologias que deram forma ao conceito de caráter nacional como é concebido nos dias atuais, até a construção de um caráter brasileiro.
Para Leite, no uso atual do termo, a ideia tem sua construção no romantismo, e seu grande responsável seria Herder. Pois é no movimento Sturm und Drang que nasceriam várias teses, indo a princípio contra o racionalismo iluminista dando mais valor a intuição e ao sentimento.  Entretanto: “Mais importante ainda, fracciona-se a unidade fundamental da humanidade, que passa a ser vista, não apenas na sequência histórica – o que já era feito pelo Iluminismo – mas nas suas peculiaridades regionais, nacionais e individuais” (LEITE, 1983, p. 21).
Em Herder, explica o autor, é lançado um olhar sobre o progresso particular das nações.  Nota-se que estas ideias andariam lado a lado com os sentimentos nacionalistas. Buscando valorizar as culturas populares dos países, vincula-se, mesmo que implicitamente, à idéia de que uma nação desenvolver-se-ia por meio de características nacionais – um contraponto aos ideais iluministas que negavam tal afirmação.
Enfim, enquanto os românticos defendem a diversidade das nações, e nelas surgiriam ideias individuais e originais – ideais mais ou menos vinculadas ao ufanismo. Para os racionalistas a história, indiferente da nação, busca um objetivo único.
No caráter nacional atribui-se um desenvolvimento de uma nação por seus caracteres próprios. Nesse conceito são atribuídos valores psicológicos, raciais e desvincula-se, por exemplo, questões sociais e históricas.
Assim, a ideia de caráter nacional, vai ser abandonada por algum tempo, retomada, fundida com outras teses e bastante criticada em algum momento e depois receberia contribuições de vários campos científicos como a antropologia, a sociologia, a psicologia e a genética.
Conforme Oliveira:

Nos estudos de caráter nacional podemos observar um princípio muitas vezes aparente no trabalho intelectual: a uma fase de entusiasmo sucedeu um período de crítica e ceticismo, onde o conceito de caráter nacional foi inteiramente abandonado; depois, através de novos pressupostos, o conceito foi retomado [...] (OLIVEIRA, 1983, p. 39).

Na antropologia o conceito foi esquecido, pois em tal campo científico encontraram-se múltiplas dificuldades em gerir uma classificação racial e associar raça com características de determinado povo.
A ideia volta ao debate de forma bastante tímida com Ruth Benedict quando essa vai pesquisar a cultura global. Ainda que prudente segundo Dante de Oliveira, a antropóloga não expõe dúvidas em considerar a ideia de uma cultura orgânica sob vistas do global. Para ela, os antropólogos não teriam assimilado as especificidades, fruto de serem estudiosos de mesa. “Por isso supõe que os trabalhos de Malinowski – com sua análise funcionalista de determinada sociedade – sejam dos primeiros a atingir essa apreensão global” (OLIVEIRA, 1983, p. 40).
Estes estudos geram consequentemente um fator importante, estudando a diversidade cultural. Benedict observa que os indivíduos aceitam os padrões impostos pela cultura de sua sociedade. Desta forma, o caráter estaria ligado ao fato de valores culturais que estimulam tais comportamentos, ou seja, “[...] a partir do comportamento das pessoas, constrói um padrão cultural e depois, afirma que a personalidade apresenta tais ou quais comportamentos porque a cultura os impõe [...] (OLIVEIRA, 1983, p 40).
Essas suposições geraram problemas, pois, por exemplo, precisaria aos estudiosos à época, levar em conta a homogeneidade de personalidades e culturas, como, por exemplo, nos estudos de Benedict que a explicação dos sujeitos desajustados nas sociedades não ganhou explicações convincentes. Com isso percebiam-se lacunas que teorias psicológicas conseguiriam preencher, conectando padrões culturais a padrões de personalidades.
Na psicologia, Freud seria o precursor dos estudos sobre a personalidade das pessoas na sociedade. O autor vai contribuir, entre outras suposições, com sua teoria do Complexo de Édipo, em que faz uma analogia entre a constituição evolutiva individual da pessoa com o desenvolvimento da sociedade onde este estava incluso, as duas formações estariam vinculadas em suas origens, uma e outra eram frutos de repressões. Freud chega a fazer uma diferenciação entre classes sociais e como essas se comportavam no meio em que viviam. Enquanto acreditava que as classes trabalhadoras tinham uma tendência a levar uma vida mais alegre por não ser tímida sexualmente, essa, também seria incapaz de possuir forças para a produção intelectual. Obviamente esta problemática vai se perder no caminho dos estudos sobre apreensão das personalidades pelo seu viés extremamente cheio de conceitos subjetivos.
Para Oliveira:

A contribuição de Freud para a renovação dos estudos de caráter nacional foi indireta e decorreu da parte de sua teoria que pareceria menos significativa para esse campo de estudos: a universalidade do complexo de Édipo. Este princípio foi discutido por Malinowski e essa discussão abriu novo caminho à pesquisa da formação da personalidade. (OLIVEIRA, 1983, p.43)

Dante de Oliveira descreve que após Freud novos estudos mais amplos surgiriam fazendo uma conectividade entre estudos psicanalíticos e culturais. O autor discorre sobre as ideias de Kardiner, Erich Fromm e David Riesman.
Frisa-se, também, que epistemologicamente a palavra caráter nacional, tem muitas vezes como sinônimo os conceitos de identidade nacional e cultura nacional, porém existem diferenças dependendo do autor que as aborde.
Para Calderoni:
Quando se fala em “caráter nacional” está se aludindo à índole, a características internas ou mentais que um povo teria e assumindo uma visão de homem e de ciência nas quais as pessoas agiriam orientadas por inclinações internas e estas seriam as responsáveis por sua condição social e material. A noção de “caráter nacional” predominou nas (então chamadas) Ciências Sociais até aproximadamente a década de 1930-1940. (CALDERONI, 20--?, p. 11)

   Assim, o conceito se diferencia sutilmente de identidade, esse mais amplo e atualmente mais em voga no debates contemporâneos. Prova disso é a freqüência com que os estudos de Stuart Hall são referenciados e a importância que esse autor tem para o meio acadêmico, ganhando mais notoriedade com os Estudos Culturais e reflexões sobre a pós-modernidade. Levando isso em consideração, acredita-se ser relevante, mencionar como Hall conceitualiza a questão.
No livro, A identidade cultural na pós-modernidade, Stuart Hall inicia a obra explicando resumidamente como a identidade foi concebida em três épocas. Num primeiro momento haveria o sujeito no Iluminismo, quando esse estava “baseado numa concepção de pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação [..]” (HALL, 2001, p. 10). Inserido neste meio, o sujeito é quase inalterável em sua identidade, valorizando bastante o eu individual de cada um.
Após, o advento da modernidade, as grandes mudanças são geradas ao redor do mundo e, como consequência, as relações sociais tornam-se complicadas de serem traduzidas, percebe-se que “[...] este núcleo interior do sujeito não era autonômo e auto-suficiente, mas era formado na relação com “outras pessoas importantes para ele” [...]” (HALL, 2001, p. 11). A identidade e o eu entram num diálogo e sob este olhar gera o “[...] que se tornou a concepção sociológica da questão, a identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade.” (HALL, 2001, p 11). Desta forma, o sujeito constrói sua identidade a partir do contato com o mundo em que vive, ligando sua subjetividade à objetividade dos lugares em que habita. 
Em um terceiro momento, estaria a sociedade contemporânea, esta caracteristicamente fragmentária, de alta complexidade, efêmera, contraditória, de maneira que o sujeito absorve uma identidade com as mesmas características dessa sociedade, ou seja, rompem-se as identidades contínuas/sólidas para não apenas uma identidade, mas sim várias, nem todas bem delineadas.  
Segundo Hall, “O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático” (HALL, 2001, p. 12). Tem-se, consequentemente, o sujeito pós-moderno “[...] como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente.” (HALL, 2001, p. 12).  No resultado dessa mutabilidade já não existe mais características de um sujeito coeso diante do mundo, existe, sim, uma identificação por meio do contexto histórico, adaptativa. Diferente, por exemplo, das sociedades tradicionais onde a questão biológica estava em cena.  A narrativa pessoal já não mais existe ou se existe é entrecortada. A nossa estória é por vários momentos confrontada com a ampliação dos símbolos culturais nos levando a assimilá-los, mesmo que temporariamente. “A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2001, p 13).
Ademais, a identidade já não tem mais uma fixidez, é relativizada, marcada por símbolos, e se dá por meio da exclusão. Ou seja, para o sujeito identificar-se no seu meio é necessário, antes de tudo, excluir o que é “de fora”, o “estranho”, o eu se constrói num jogo social binário de tal forma que para afirmar sua identidade excluem-se outras identidades e vice-versa.
Contrapondo essas identidades líquidas contemporizadas onde não existem delimitações definidas com o objetivo de distinguirem-se plenamente uma das outras, no Brasil, algumas décadas atrás, e até mais recentemente, tentou-se por meio de propagandas, do ensino, da cultura e de políticas governamentais vincular um caráter que fosse realmente nacional. Perpetrado pela elite e vários intelectuais, buscou-se instruir o “povo” a fim de constituir uma consciência nacional única. Assim, o ensino de história, por exemplo, vai ser um dos mecanismos para incutir tal ideologia.
De acordo com Abud:

Os programas de ensino de História continham elementos fundamentais para a formação que se pretendia dar ao educando, no sentido de levá-lo a compreender a continuidade histórica do povo brasileiro, compreensão esta que seria a base do patriotismo. Nessa perspectiva, o ensino de História seria um instrumento poderoso na construção do Estado Nacional, pois traria à luz o passado de todos os brasileiros [...] (ABUD, 1998)

Não só com a educação, como já referenciado no corpo deste trabalho, mas também com a literatura, o movimento modernista levou o debate à exaustão, produzindo várias obras e manifestos. Como exemplo anterior, a Liga da Defesa Nacional, organização surgida em 1916, fundada pelo poeta Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac e em funcionamento até os dias atuais, defendendo os “sagrados” valores da pátria. Têm-se também, posteriormente, a Associação Brasileira de Anunciantes – ABA, que em 2004, lançando a campanha “O melhor do Brasil é o Brasileiro”, objetivando combater uma suposta baixa estima da população. E a outra campanha iniciada no governo Lula em que se usa o slogan, “Sou brasileiro e não desisto nunca”, com a finalidade de mostrar que mesmo que vivamos num país desigual, somos um povo forte, trabalhador e renitente quanto aos nossos sonhos e objetivos. Ironicamente, no início deste ano, o governo federal sob gestão da presidente Dilma Roussef, desistiu de manter a campanha, após 6 anos desde o seu lançamento, alegando outras prioridades.
Conclui-se que não só estas campanhas buscaram moldar características no povo brasileiro, mas tiveram efeitos psicologizantes em que se pode obter resultados positivos de uma elite sob a “massa”, ou esconder as discrepâncias sociais como a desigualdade de renda, miséria, corrupção, fome, violência e desemprego. Problemas sociais ainda vistos em abundância no cotidiano de qualquer habitante, ou seja, um otimismo, ou a imposição de um, que mascara o conformismo de muitos favorecendo poucos.

3.  OS BRUZUNDANGAS


Segundo Barreto a: “bruzundanga” fornece matéria de sobra para livrar-nos, a nós do Brasil, de piores males, pois possui maiores e mais completos. Sua missão é, portanto, como a dos “maiores” da Arte, livrar-nos dos outros, naturalmente menores”. (BARRETO, 1998, p. 27).
As crônicas contidas no livro supracitado fazem parte do que podemos chamar de fase madura de Lima Barreto, pois é no final da vida do autor que elas ganham vida. Percebe-se, lendo-as, que são frutos de uma crítica social aprofundada, não escondendo grandes doses de revolta nas linhas que as constituem. Mostram, também, um homem com dissabores de uma vida cheia de impropérios em várias esferas, que o levam a conclusão, em seu diário: “Quando chegar à minha idade, depois de lutas e desgostos de toda ordem, verá como tenho razão” (BARRETO, 1993, p. 288).
Lima Barreto, nessas crônicas, retratando um país fictício, reflete a respeito da cena literária, dos burocratas despreparados ocupando cargos públicos, da elite, que ele chama de nobreza, da política republicana e dos políticos que a governam, do ensino oferecido para a classe favorecida, das relações diplomáticas, como as leis que a regem, das suas relações de poder, das forças armadas, e seus supostos heróis, da sociedade, das eleições, do sistema de saúde e da religião. Todo esse temário é descrito ironicamente. Com isso Barreto constitui um país nos seus aspectos fundamentais, pintando-o à sua maneira, fazendo assim, uma paródia de um país chamado Brasil.
O autor escreve sem temor ou preocupação sobre o que pensariam os vários intelectuais da época. Um exemplo disso é a discussão em torno das eleições presidenciais em que Rui Barbosa disputava o cargo. O autor tinha asco da escrita de Barbosa, imputando-lhe o mimo de “João das regras” (MORAIS, 1983, p.50).  O resultado desse comportamento subversivo é ser taxado de cínico.
Conforme assinala Morais:

Muita gente há de ter considerado Lima Barreto um cínico, desses sujeitos que só querem rir dos outros, desde o cerne do seu fundo despeito. Mas o escritor anotava nas páginas das suas Impressões de leitura: “A ironia vem da dor”. Sua obra é a expressão de uma perplexidade dolorida ante um tempo de vícios legitimados e injustiças estruturais da sociedade. (MORAIS, 1983, p. 57)

Deduz-se, que muitos dos adjetivos que o autor recebeu de seus críticos à época, (como o exemplo acima) e também de ser ignorado e tratado como suburbano, sem estilo, demasiadamente biográfico entre outros, apontados quando se lê estudos sobre o autor - são mais para desmerecer o trabalho criativo de Lima Barreto do que uma crítica ao conteúdo de sua obra. Basta pensarmos na crítica que o autor não possuía estilo, ou seja, sem as pomposas expressões de literariedade; No entanto, muito do que parecia fruto de uma literatura mal escrita, produzida sem preocupação com normas gramaticais, era na verdade uma intenção consciente do autor, uma forma de combater as frivolidades da literatura, já que: “Para ele, o papel do literato era o de instruir o leitor e não de entretê-lo simplesmente. Por isso, é que a idéia da literatura "decorativa" para deleite de uma elite corrupta tanto lhe desagradava” (MATIAS & GOMES, 20--?, p. 04).
Para sua literatura militante, Barreto se apropria de um mecanismo que acreditava ser uma importante arma de combate – a ironia. “É o viés irônico o caminho escolhido por Lima Barreto para “dizer a cidade”, “dizer o Brasil”.” (PESAVENTO, 1997, p. 42).
O autor acreditava que mais demolidor do que ações diretas contra as injustiças, a exposição dessas injustiças ao ridículo causaria mais danos. Ou seja, a ironia como arma dos “fracos”. 
A obra é também a tentativa de representação do real. O autor, militante usando a linguagem como uma prática social, vai com a obra, interagir com o meio social, atacando ferozmente tudo aquilo que ele considera medíocre. Barreto  se vale do simbólico para fundir o real e o imaginário. Sob esse olhar, percebe-se, a importância de tentar apreender a obra e buscar explicitar os momentos com que o autor constrói ou descreve o caráter nacional, a índole que guiava aquele momento, e que reverbera até os dias atuais.
Na crônica “Os samoiedas”, parte importante do livro, Lima Barreto trata da literatura da Bruzundanga, “literatos importantes, solenes, respeitados, nunca consegui entender[..]” (BARRETO, 1998, p. 31).
Sua crítica vai ancorar-se em denunciar uma linguagem prolixa, mimética do que se produziu na Europa: “Quanto mais incompreensível é ela, mais admirado é o escritor que a escreve, por todos que não lhe entenderam o escrito” (BARRETO, 1998, p.31). Com interesses mais no status quo do que propriamente em uma literatura, que Barreto acreditava ser maior.
O autor demonstrava como os literatos privilegiavam a futilidade e suas obras se sustentavam por elogios midiáticos.  Ou seja, uma literatura mascarada, sem sinceridade, enviesada, onde qualquer opinião destoante era posta de lado.
Os literatos teriam o caráter subserviente ao que se produzia fora do país, exibiam uma aversão ao nacional e até tentavam imitar os costumes destes países.
No entanto, nesse capítulo, Lima Barreto escreve um trecho revelador para narrar um conto popular chamado “O general e o diabo” ou “O padre e o diabo, segundo ele próprio, inferindo que a cultura rica estava com os populares.
   Conforme Barreto:

Nela há a literatura oral e popular que me foi narrado com todo o sabor da ingenuidade e dos modismos peculiares ao povo, posso reproduzir aqui, embora a reprodução não guarde mais aquele encanto de frase simples e imagens familiares das anônimas narrações das coletividades humanas (BARRETO, 1998, p. 32).

Demonstra-se, que o autor tinha apego à cultural popular, às modinhas de violão produzidas nas ruas, aos contos transmitidos oralmente, fora dos eixos institucionais como a academia ou redações de grandes jornais. Em Triste fim de Policarpo Quaresma esse apego também aparece, são vários os momentos em que o autor insere a cultura popular no romance.
Sua visão amarga é concebida com ataques usando um discurso teimoso e monolítico, onde o autor mostra bastante sarcasmo quando descreve os seguidores da escola dos samoiedas. Essa escola seria o ninho de produção literária do país, onde seus frequentadores tinham o hábito de utilizar citações para defender argumentos falsos, buscar esquemas prontos para produzir suas obras poéticas e teriam como grande preocupação apenas manter o status de artista, mesmo sendo ignaros e completamente sem talentos.
Assim, Barreto conclui:

Poderia mais esclarecer semelhante escola, os seus processos, as suas regras, as suas superstições; mas não convém fazer semelhante cousa, porque bem podia acontecer que alguns dos meus compatriotas a quiserem seguir.
Já temos muitas bobagens e são bastantes.
Fico nisto. (BARRETO, 1998, p. 47).

Na visão do autor, a produção cultural do país era caracterizada por uma supervalorização do banal e sua função social era nula. Se as letras tinham o papel de modificar o meio, este papel não só não era cumprido como era ignorado. 
Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, entra em consonância com a crítica à escola dos samoiedas de Lima Barreto, no capítulo intitulado Novos Tempos, o estudioso afirma:

Ainda quando se punham a legiferar ou a cuidar de organização e coisas práticas, os nossos homens de ideias eram, em geral, puros homens de palavras e livros; não saíam de si mesmos, de seus sonhos e imaginações. Tudo assim conspirava para a fabricação de uma realidade artificiosa e livresca, onde nossa vida verdadeira morria asfixiada. (HOLANDA, p. 63, 1995)

O trecho de Hollanda também amplia a crítica de Barreto, explanando que não só os literatos apresentavam uma formação de fachada, sendo inábeis para por em prática qualquer ideia. Essa característica desdobra-se também para a classe política.
Em outro momento do livro Os bruzundangas há o retrato da política do país fictício. Ela, semelhante à organização do Brasil, possui, segundo o autor, uma superstição chamada eleições.

Dentre as muitas superstições políticas do nosso tempo uma das mais curiosas é sem dúvida a das eleições. Admissíveis quando se trata de pequenas cidades, para a escolha de autoridades verdadeiramente locais, quase municipais, como eram na Antiguidade, elas tomam um aspecto de sortilégio, de adivinhação, ao serem transplantadas para os nossos imensos estados modernos. (BARRETO, 1998, p. 128)

Compreende-se que para o autor o problema das eleições seriam os grandes conglomerados urbanos, já que nas pequenas cidades, as eleições seriam legítimas. Nota-se, com isso, que Barreto com um avançado pensamento libertário para a época, acreditava numa sociedade descentralizada, ou seja, é nas pequenas cidades que o fluxo verdadeiramente democrático ocorreria melhor.
Numa sociedade avessa ao ideário do autor, ele, com um azedume idiossincrático, caracteriza os mecanismos do sufrágio universal.
Conforme Barreto:
  
Um deputado eleito por nossos imensos distritos eleitorais, com nossas dificuldades de comunicação, quer materiais, quer intelectuais, sai das urnas como um manipanso a quem se vão emprestar virtudes e poderes que ele quase não tem. Os seus eleitores  não sabem quem ele é, quais são os seus talentos, as suas ideias políticas , as suas vidas sociais, o grau de interesse que  que ele pode  ter pela causa pública; é um puro nome sem nada atrás ou dentro dele. (BARRETO, 1998, p. 130).
    
Sendo assim, numa sociedade fragmentada, a pior situação seria uma eleição em que o eleito não representa as variadas necessidades de seus eleitores. Porém, mesmo assim o eleito se gaba de seu novo cargo, e defende veementemente os interesses de seus pares.
Barreto prossegue sua crítica ao caráter da política narrando uma história particular. Nela, um eleitor preocupado com os interesses pessoais de um amigo em eleger um político favorável aos pobres, para não morrer de fome, decide averiguar estes mecanismos “democráticos”. O resultado é “uma porção de pauladas e quatro facadas” (BARRETO, 1998, p. 134).
O absurdo da situação caracteriza uma realidade que vem até a contemporaneidade, tendo sido necessário criar mecanismos como a urna eletrônica para evitar fraudes dos que queriam chegar ao poder.
Lima Barreto fecha o capítulo, desferindo: “Os meus leitores poderão verificar que, no ponto de vista eleitoral, a Bruzundanga nada tem que invejar da nossa cara pátria”. (BARRETO, 1998, p. 134).
A busca em escrever de forma sincera, sem uma retórica falseada, mostra como a obra de Lima Barreto, com certo tom jornalístico, sempre buscou a representação do real. A ficção se mistura ao real quando o autor quer mostrar exemplos que corroborem com sua linha de raciocínio. Assim, os “causos” seriam uma estratégia para o autor expor uma realidade de um país dividido entre uma realidade acachapante e uma utopia de nação sorridente em que a infelicidade reinava por dentro. O cômico em Barreto não é para rir com a sociedade, e sim rir dela. Diante disso, entre outros variados aspectos, a obra de Lima Barreto constitui um realismo crítico. 
O autor sempre se preocupou em fazer uma leitura aproximada da realidade brasileira, são muitas as afirmações em que autor diz buscar entendê-la. Conforme trecho do livro Cemitério dos Vivos:

Sou levado incoercivelmente para o estudo da sociedade, para os seus mistérios, para os motivos dos seus choques para a contemplação e análise de todos os sentimentos. As formas das coisas que a cercam, e as suas criações, e os seus ridículos, me interessam e dão-me vontade de reproduzi-los no papel e descrever-lhe a sua alma, e particularidades. (BARRETO, 1956, p. 82 apud LIMA, 2001, p. 18).

   Essa reprodução da realidade barretiana que permearia todos os gêneros em que publicou, é um diálogo áspero com a sociedade do seu tempo. O autor denuncia com sua sinceridade as lacunas que história contada pela visão dominante evitava a todo custo mostrar.
   Os vários estudiosos sobre o Brasil, quase sempre construíram uma crítica de que no país não existiria uma cultura originalmente brasileira. O que faz sentido, haja vista que o país foi uma colônia de Portugal e o processo imigratório foi bastante acentuado de povos europeus que de lá trouxeram o seu caldo cultural, como também, os escravos da África trazidos para cá.
   Podemos ser fruto de uma cultura oriunda do outro lado do oceano, mas Lima Barreto em um capítulo da obra sob o título de “A organização do entusiasmo” faz um contraponto quando se trata de um dos costumes da população da Bruzundanga:

 A curiosa república de que me venho ocupando é acusada pelos seus filósofos de não ter costumes originais. É um erro de que participam quase todos os seus naturais – erro muito naturalmente explicável, pois mergulhados na sua vida, não possuem pontos de referência para aquilatar da originalidade das usanças especiais da sua terra. (BARRETO, 1998, p. 143).

   No capítulo, o autor dispara contra a falsidade com que eram organizados saraus, piqueniques, banquetes, entre outros, a fim de homenagear algum sujeito que muitas vezes era um charlatão, “[..] foi de segundo tenente da Marinha a contra-almirante, em cinco anos, sem nunca ter comandado uma falua” (BARRETO, 1998, p. 144). Isso gerava efusivos entusiasmos no elogiado.
   Entretanto, nessa prática idiotizante, surgiam alguns contratempos:

Acontecia em certas ocasiões que um grupo gritava – Viva o doutor Clarindo! – o outro exclamava: - Viva o doutor Carlindo! – e um terceiro exclavama – Viva o doutor Arlindo! – quando o verdadeiro nome do doutor era – Gracindo! (BARRETO, 1998, p. 144).

   O sarcasmo inexorável que permeia toda a obra, como se pode ver nos trechos usados no corpus deste estudo, escondem um pano de fundo de costumes insensatos. Além disso, não só uma marcha estúpida guiava a nação, Barreto indica pistas do caráter do povo, apresentando-o como ingênuo e sem poder de reflexão, sendo guiado por uma classe doutoral incipiente.  Esse singular costume satirizado na obra, mantém conexões com a identidade brasileira. Esses costumes artificializados poderiam ser frutos de uma cultura oriunda de fora trazida para o Brasil, numa tentativa de criar caracteres do Brasil, e, aqui, numa prática mimética, distorcem-se produzindo essas singularidades. 
   Desde os primórdios do período da independência do Brasil, vem-se tentando incutir uma identidade, um caráter e uma cultura nacionais. Nesta tentativa ocorreria o que se assinala abaixo:

Roberto Schwarz observou em “Nacional por subtração” que o caráter imitativo e inautêntico de nossa vida cultural configurou-se como um dado formador de nossa reflexão crítica, desde os tempos da independência. A partir daí várias “cruzadas nacionalistas” em prol de nossa cultura e identidade autênticas tornaram-se uma constante. (LIMA, 2001, p 34).
    
   Nesta busca incessante por uma identidade própria, cria-se um sintoma psicológico conhecido como Bovarismo.
   O bovarismo tem sua definição a partir do que se lê na obra canônica de Flaubert - Madame Bovary. Levada para o campo da psicologia por Jules Gaultier em 1892 na obra Le Bovarysme. La psychologie dans l’oeuvre de Flaubert, de acordo com o E-dicionário de termos literários.
   Segundo a teoria de Gaultier, o Bovarismo se constituíria de uma [...]  capacidade dos indíviduos de constrúirem imagens de si próprios diferentes daquilo que são na realidade.(PESAVENTO, 1997, p. 30-31).
   De igual modo, o autor sendo um provável leitor de Flaubert, afirmava que tendo lido a obra do psicólogo francês encontrou “vistas do que já tinha sentido também” [..]”. (PESAVENTO, 1997, p. 32), Com isso, o autor, utiliza a teoria aplicando-a no contexto brasileiro, a fim de mostrar como o caráter nacional tinha um paralelo com a essa teoria.
   Percebe-se que um dos suportes de análise do Brasil feita pelo autor foi utilizar o Bovarismo, e assim, apontar como em vários setores da sociedade este sintoma estava presente.
   Como é demonstrado nos trechos supracitados, o teor da crítica barretiana sempre foi buscar mostrar a desonestidade de uma elite de que ele não fazia parte, mas que estava presente na sua vida, por meio das suas relações e contatos pessoais.  
   Essa desonestidade, sob um viés do Bovarismo, pode ser interpretada de forma ambígua, podendo ser vista como uma atitude consciente de quem a pratica com o objetivo de ascensão social ou como uma ato inconsciente em que o portador do sintoma imaginando aquilo que não é começa a se comportar como ele imagina a si próprio.
   A teoria de Jules Gaultier é um aspecto fundamental para entender parte da crítica de Lima Barreto, mas não a única. Isso porque a análise do autor é bem ampla, não atacando somente uma classe ou um tipo nacional. Assim, a leitura do Brasil feita por Barreto desdobra-se, também, em outros temas, e se arma de outras críticas.
   Um exemplo disso é quando o autor faz uma rápida análise da música brasileira, em que afirma: “A música, na Bruzundanga, é, em geral, a arte das mulheres. É raro aparecer no país uma obra musical” (BARRETO, 1998, p. 195). Ou seja, nessa análise não há uma classe social específica sendo descrita, mas uma abrangente produção cultural onde sendo que quem a produz são sujeitos que podem estar inclusos tanto nas classes altas como nas baixas.
   Pode-se facilmente trazer a crítica de Barreto para a atualidade. Pois é notório no Brasil que existam alguns gêneros musicais que valorizam mais a sensualidade da mulher do que a música em si. Basta pensar no gênero Funk Carioca, em que os movimentos da dança com conotação sexual ganham mais importância do que a letra ou o ritmo musical, Caso semelhante é o do gênero Axé, que seguindo a mesma lógica do Funk Carioca, dá mais importância ao erótico, utilizando sempre coreografias que simulam o ato de copular.
   Frisa-se que tal análise não faz juízo de valor do que é bom ou ruim na música brasileira, mas sim faz um paralelo entre a crítica barretiana quando este lança um olhar crítico à música como “a arte das mulheres” e os gêneros musicais da cultura de massa nas últimas décadas.
   Outra crítica rápida e curiosa contida em Os bruzundangas é quando o autor fala a respeito de religião.  A religião que teria mais adeptos seria:

[...] a católica apostólica romana; entretando, é de admirar que, sendo assim, a sua população, atualmente já considerável, não seja capaz de fornecer os sacerdotes, quer regulares, quer seculares, exigidos pelas necessidades de seu culto. (BARRETO, 1998, p. 153).


   Lima Barreto supõe que nenhum nacional estava no alto clero da Igreja Católica: “[..] em geral, são estrangeiros” (Barreto, 1998, p. 153). No entanto, essa afirmação mostra que mesmo a Igreja Católica estando bastante associada à colonização do Brasil (como se vê na presença dos Jesuítas que vieram da Europa) isso não significou que a o alto clero do catolicismo tentou inserir a sociedade brasileira em alguns dos seus setores.
   Esses dois exemplos acima, mostram como para analisar a obra de Barreto apenas sob apenas um viés teórico, como o Bovarismo, é insuficiente para a obra aqui estudada. Ou seja, como citado em algumas partes deste estudo a amplitude crítica do autor atravessa vários conceitos teóricos, sendo eles da época ou posteriores.
   Para finalizar este estudo sobre caráter nacional, analisaremos o o capítulo do livro Os Bruzundangas intitulado “A sociedade”, em que o autor faz uma espécie de síntese do que é o “Brasil”, analisando como ele próprio via a nação, construindo  um retrato do caráter dos brasileiros.
   “Pode ser definida a feição geral da sociedade da Bruzundanga com a palavra – medíocre” (BARRETO, 1998, p.124).
   Nota-se com esse trecho, o resumo da interpretação do autor a respeito de tal país fictício. Indo além de tudo em que ele analisa, a mediocridade faria parte do caráter geral dessa sociedade.
   Se em Retrato do Brasil, escrito por Paulo Prado, o autor faz um tripé em que divide e caracteriza nossa sociedade em luxúria, cobiça e tristeza, Lima Barreto conclui em Os Bruzundangas, satiricamente, que, acima de tudo, o comportamento que destacava na época seria a insignificância.
    Explicando:

Uma tão vulgar preocupação pauta toda a vida intelectual da sociedade bruzundanguense, de modo que, nas salas, nos salões, nas festas, o tema geral dos comensais é a política; são as combinações de senatoriais, de governanças, de províncias e quejandos. (BARRETO, 1998, p.124)

   Assim, Lima Barreto explana que a preocupação dos bruzundanguenses  com o que acontecia no plano político do país, nada mais era do que um interesse mesquinho de um comportamento visando apenas benefício próprio.
   O resultado desse comportamento seria que “[...] todas as manifestações de cultura dessa sociedade são inferiores” (BARRETO, 1998, p. 124).
   Para Lima Barreto a cultura dominante produzida por uma minoria sempre apresentou traços dissimulados, e longe de querer traçar uma cultura genuína brasileira, o autor reivindicava uma arte que apresentasse características que representassem o país como ele era realmente.
   O comportamento, criticado pelo autor, era fruto de mecenas que desejavam uma atividade cultural que os satisfizesse, mesmo que para isso o dinheiro usado fosse de origem pública, confirmando a posição do autor: “Sabem o que faz? Influi para que ele receba um pagamento indevido do Tesouro ou promove uma fantástica comissão para o indivíduo” (BARRETO, 1998, p. 126).
   E se trouxer a crítica acima para a atualidade, consegue-se fazer um paralelo, como exemplo, com a extinta Embrafilme, empresa estatal que fornecia recursos públicos para o cinema, sendo extinta sob o governo do presidente Fernando Collor de Mello, em 1990, e voltando onze anos depois, com o nome de Ancine, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Ou seja, a prática de o governo financiar obras de arte, mesmo existindo uma maneira atualmente mais democrática de investir o dinheiro, gera polêmicas na sociedade. Como, por exemplo, a reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo, em 2003, sob o título de Para presidente da Ancine “uso de dinheiro no cinema é irracional, escrito pela jornalista Silvana Arantes”. 
   A irracionalidade, conforme a reportagem estaria no fato de que os financiamentos de filmes brasileiros não visam um retorno comercial, ou seja, produções desinteressadas em gerar um público que pagasse a obra financiada. Isso cria uma grande discrepância entre investimento público e resultados satisfatórios do dinheiro investido. A afirmação do presidente da Ancine na época, Gustavo Dahl, relata ainda que o problema estaria relacionado à falta de visibilidade do filme. Assim, investe-se demasiadamente na produção, mas não em sua distribuição e criação de cópias do filme, essenciais para um retorno condizente com o dinheiro gasto.
   Enfim essa política ineficaz de fomento à cultura nacional, que não consegue atingir suas metas, vem de décadas, e atravessa não só o cinema nacional. O teatro no Brasil também vive de situação semelhante, precisando sempre de um amplo apoio do governo e de instituições que promovem festivais para mantê-lo. Já no começo do século passado Barreto percebia este cenário artístico brasileiro: “Um dos toques da mediocridade da sociedade da Bruzundanga é a sua incapacidade para manter um teatro nacional” (BARRETO, 1998, p.127).
   Um outro fenômeno interessante caracterizado pelo autor, é a avaliação do gosto estético da classe dominante do país. O texto da crônica descreve desde seus túmulos que para ele: “são outra manifestação da sua pobreza mental” (BARRETO, 1998, p.126), até seus gostos pela escultura que seriam: “os ornatos, as estátuas, toda a concepção deles, enfim, é de uma grande indigência artística”. (BARRETO, 1998, p.126).
   Nas crônicas de Lima Barreto o autor sempre busca deixar claro que não era sua intenção defender uma cultura em detrimento de outra, mas sim atacar o modismo, a arte efêmera, indiferente de onde ela estivesse e que classe a produzisse.
   Conforme Barreto:

Poderia ainda falar suas festas íntimas, nos seus casamentos, nos seus batizados, nas suas datas familiares; mas, por hoje, basta o que vai dito, é o bastante para mostrar de que maneira a aristocracia da Bruzundanga é incapaz de representar o papel normal das aristocracias: criar o gosto, afinar a civilização, suscitar e amparar grandes obras.
Se falei aqui em aristocracia, foi abusando da retórica. O meu intento é designar com tão altissonante palavra. Não uma classe estável que detenha o domínio da sociedade da Bruzundanga, e a represente constantemente; mas os efêmeros que, por instantes, representam esse papel naquele interessante país. (BARRETO, 1998, p. 127, grifo nosso).

   Por outro lado, o autor reconhecia que produzir arte, qualquer que fosse, em um país provinciano, recém independente, era muito difícil e quase nunca gerava reconhecimento:

Houve até, pintor de mérito, que se fez fabricante de tabuletas, para poder viver; os mais, quando perdida a força de entusiasmo da mocidade, se entregam a narcóticos, especialmente a uma espécie da nossa cachaça, chamada lá sodka, para esquecer os sonhos de arte e glória dos seus primeiros anos.
Dá-se o mesmo com os poetas, principalmente os poucos audazes, aos quais os jornais nem notícia dão dos livros. (BARRETO, 1998, p.207).

   O trecho acima contém traços de biografia, pois é o artista-escritor falando da arte de seu país. Barreto cita a cachaça, sua companheira de vida, infere o motivo de ingeri-la, “para esquecer os sonhos de arte”, e descreve um país sem interesse pela cultura produzida. Se em Os Bruzundangas o que vai permear o livro é a sátira, no entanto, o autor também, retrata a sua própria realidade mais uma vez, projeta um caráter seu e do país em que vivia.
   “Ah! A literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela” (BARRETO, 1993, p. 154). Essa é uma das anotações, feita quando o autor passava por mais uma temporada em um hospício, revelando o quão importante era a literatura para o autor. Mostra também um autor que desenvolveu um interesse profundo pela cultura e pela sociedade do seu país.
   Suas análises a respeito do Brasil são desconstruções e construções de hábitos que insistiram em atravessar os anos e ainda incidem no atual cenário brasileiro.
   E assim o autor conclui: “Estas notas foram escritas ao correr da pena; mas, entretanto, poderei desenvolvê-las se os interessados me provocarem. Escrevo em dia oportuno.” (BARRETO, 1998, p. 210).



4. CONSIDERAÇÕES FINAIS


   Narrar o passado para que possamos refletir sobre o futuro. É nesse caminho que podemos atingir uma sociedade mais igualitária.
   A índole brasileira retratada por Lima Barreto à época, pode fornecer várias pistas de um caráter que atravessou anos e um século. Desta forma, analisar sua obra sob essa perspectiva é parte essencial para que possamos compreender nossos hábitos e de onde eles surgiram.
   Se Sérgio Buarque de Hollanda dizia em seu livro, Raízes do Brasil, que não conseguiríamos separar o privado do público. Lima Barreto dá exemplos, anteriormente a publicação da obra de Hollanda, de como esse caráter se materializava em nossa sociedade, como era danosa, como favorecia poucos e prejudicava muitos.
   Na década de 20, nos Estados Unidos da América, um jornalista com a mesma acidez do nosso mulato brasileiro fazia sucesso entre o público. Henry Mencken agiu de maneira semelhante a Lima Barreto, denunciou, satirizou, foi até aos tribunais defender suas ideias.  No entanto, Mencken conheceu a glória do seu trabalho em vida, e até hoje seu nome é ovacionado pela crítica mundial. Suas crônicas foram traduzidas para vários países, e seu conjunto, foi publicado no Brasil sob o título de O Livro dos insultos.
   Nosso autor teve reconhecimento bem mais modesto. Em vida não viu um livro seu agradar à grande maioria. Morreu arrebentado fisicamente, inchado de tanto ingerir sua cachaça preferida – Paraty, delirando e cansado.
   No entanto, a história nacional mostrou que o autor tinha razão. Hoje, Lima Barreto figura entre os grandes literatos de nosso país. Suas histórias ganharam centenas de edições. Versões cinematográficas foram realizadas bem como peças teatrais. A academia o aceitou e o estudou.   
   O grito teimoso do escritor tímido ecoou sob o tempo e finalmente a literatura barretiana deu para o autor o que ele tanto quis em vida. Infelizmente isso aconteceu tardiamente.
   Se em Macunaíma, de Mário de Andrade, o autor respondeu à questão do caráter do brasileiro de maneira única, em que se podiam fechar as questões, o tema continua em voga, tanto no debate acadêmico como na mídia de massa, como no que é apresentado no corpo deste estudo.
   Se a temática de caráter, cultura e identidade ainda mostram vigor em discussões, pode-se inferir que dificilmente essas questões terão conclusões satisfatórias, ou terão fim algum dia. Provavelmente esses debates se estenderão durante anos, ou quem sabe, séculos. Assim, torna-se necessário trazer à mesa de debate as mais variadas opiniões e análises que trataram e tratam do assunto. Com isso, poderemos chegar mais perto das indagações do que somos, porque somos e para onde vamos.
   Lima Barreto mostra-se importante voz para estar incluso nos debates sobre o Brasil, não só o debate sobre o caráter. Sua escrita cria quadros bastante verossímeis de certo período, conturbado, diga-se de passagem, já que era uma fase de transição política no país, o início da República no Brasil.
   Os Bruzundangas são os retratos recortados de um país que ainda está em formação e apresenta vários problemas do início do século passado. A cidadania, a saúde, a política, a educação, etc, são questões que ou se resolve ou continuaremos numa marcha fúnebre como a retratada por Lima Barreto.
   Se o autor retrata muitas vezes nosso caráter destacando nele em uma espécie de xenofilia, ou seja, uma admiração efusiva por tudo que vem de fora desvalorizando o que é produzido no Brasil, isso mostra que devemos repensar nossos hábitos. Ainda mais hoje, em que vivemos num mundo globalizado, apresentando características favoráveis como o acesso, nunca visto antes, a outras culturas, mas também apresentando características desfavoráveis, exibindo uma massificação destruidora das culturas de minorias. 
   Lima Barreto também é um exemplo de que a lucidez em analisar o país não é algo restrito a intelectuais institucionalizados. Distante disso, o autor passa, com sua vida, a imagem de que conhecer a cultura da mãe pátria é um aspecto fundamental para conhecermos a nós próprio.
  

  
REFERÊNCIAS

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