José Rocha Filho
É
possível resumir a vida profissional do artista austríaco Otto Mühl -nascido em
Grodnau, em 1925- como uma sucessão interminável de escândalos. Censura,
polêmicas, perseguição judicial intermitente e, finalmente, cumprimento de pena
de reclusão por sete anos -num processo altamente politizado, que envolvia a
acusação de abuso de menores de idade e até hoje suscita debates acalorados no
mundo germânico. Eventos dessa natureza acompanham esse que é um dos mais
importantes nomes do movimento acionista vienense desde o início de sua
carreira, no início dos anos 60.
Graças
à internet, agora é possível assistir, de maneira irrestrita e gratuita, filmes
importantes e vídeos raros de Mühl, tais como “Kardinal” (“Cardeal”) (1967) ,
“Psychotic-party” (“Festa psicótica”) (1970) e “Sodoma” (1970). Tudo, graças à
iniciativa do site independente norte-americano “Ubu” (veja link no final deste
artigo). Os trabalhos, geralmente restritos a circuitos de galerias e
cinematecas, quando não simplesmente banidos por causa de seu conteúdo
geralmente bombástico ou contestatório, eram até agora de acesso
ultra-restrito.
Nos
filmes, em geral decorrentes das “ações acionistas”, é possível travar contato
com várias parafilias, com um anticlericarismo radical e com ataques diversos
ao establishment, entre outros itens de um cardápio variado de reflexões
fortemente subversivas sobre questões do pós-guerra, realizadas no ambiente
ultraconservador da Áustria dos anos 60.
Foi
somente após a liberação da prisão, em 1997, que Otto Mühl começou a receber
homenagens de peso, como a exposição individual no Museu do Louvre (2004) e uma
leitura de suas obras no Burgtheater de Viena, bem como exposições coletivas no
MoMA de New York (2006) e no K-W Instituto de arte contemporânea de Berlim
(2006).
Acionismo
contra o establishment
Otto
Mühl completou os estudos de alemão e história na Universidade de Viena, em
1952, e em 1953 entrou para a Academia de Belas Artes austríaca. 1960 é o ano
em que inicia a chamada “action painting” com pinturas materiais. Também desse
período são as esculturas de dejeto e sucata, parcialmente coloridas e
desenvolvidas tendo como elementos-base materiais naturais (areia, madeira e
pedra, por exemplo).
Em
1962 dá-se o encontro histórico de Mühl com Hermann Nitsch e Adolf Frohner, no
Perinetkeller, em Viena. O encontro mudaria o rumo das artes na Áustria e, em
seguida, transformaria o Acionismo vienense num movimento de caráter
internacional. Já em 1963 acontecem as primeiras performances (ou ações
públicas) do grupo, descritas como “a celebração de um naturalismo psicofísico”,
no que foi o primeiro ato público do Acionismo vienense.
A
ação constituía em um armário de cozinha abarrotado de geléia e farinha, jogado
numa rua, enquanto um corpo feminino era literalmente bezuntado com a mistura
dos componentes que estavam dentro do móvel. O ato foi prontamente interrompido
pela polícia, por distúrbio da ordem pública, e acabou por levar Mühl e Nitsch
a passarem por uma temporada de duas semanas de detenção. Foi a primeira de uma
seqüência de prisões e problemas judiciais na vida de Otto Mühl.
Até
essa época, as ações eram basicamente trabalhadas por meio do método chamado
“Objektcollage”, que envolvia pouco ou quase nenhum contato direto com o corpo
humano (quando havia, geralmente acontecia de maneira periférica, como no caso
da ação de 1963). A partir de 1966 começa uma cooperação estreita entre Mühl e
o acionista Günther Brus. O corpo humano passa a ser entendido não só como
material pertinente às ações, mas também como parte essencial dessas. Desde
então, é possível acompanhar o nascimento das chamadas “ações totais”.
Na
ação “Arte e Revolução”, de 1968, que aconteceu no auditório principal da
Universidade de Viena, Mühl acabou detido e condenado a dois meses de prisão em
decorrência do trato indecoroso com símbolos nacionais da Áustria, além de
perturbação da ordem pública. Durante essa ação, Mühl, juntamente com Peter
Weibel e Oswald Wiener, se lambuzavam com seus próprios excrementos, enquanto
se masturbavam e cantavam o hino nacional da Áustria.
Em
setembro de 1968, Mühl se envolve em novo escândalo, dessa vez tendo feito uma
ação que envolvia a urina como elemento principal. A chamada “Pissaktion”
aconteceu em Munique e também despertou imediatamente o interesse da polícia
local.
A
essa altura, o teor e o alcance das ações já haviam ultrapassado as fronteiras
da Áustria, e o nome Otto Mühl, bem como a sua arte, já estavam ligados de
maneira permanente a temas que eram desconfortáveis às sociedades capitalistas
pós-industriais. Essas nações, comprometidas desde os anos 50, acima de tudo,
com a implantação e a difusão do Estado de Bem-Estar Social, precisavam evitar
a todo custo qualquer ato que questionasse essa ordem.
No
final de 1969, Mühl promoveu um outro escândalo. Na ação “Stille Nacht” (Noite
feliz), um porco foi dilacerado, e seu sangue, bem como outros materiais (urina
e excrementos), eram atirados ao corpo de uma mulher nua, enquanto canções
tradicionais de Natal eram entoadas num sistema de som.
Reações
críticas e políticas
Já
em 1969, é possível relacionar as ações de Mühl e do grupo acionista com o
recém-criado RAF (Rote Armee Fraktion), na Alemanha, depois conhecido como
Baader-Meinhof. É claro que o grupo alemão propunha ações violentas contra o
establishment, à base de confrontação explosiva e explícita (que envolviam
técnicas de guerrilha urbana baseadas no “Pequeno Manual do Guerrilheiro” de
autoria do brasileiro Carlos Marighella). Apesar de atuarem em planos distintos
da arte e da política, o acionismo vienense e as atividades de Ulrike Meinhof e
Andreas Baader tinham em comum uma forte oposição à ordem estabelecida e um
desejo explícito de mudanças imediatas.
Não
era incomum esse tipo de radicalismo artístico/político no final dos anos 60 e
início dos 70. O diálogo entre os dois grupos (o de ativistas políticos e o de
artistas politizados ao extremo) não era, no entanto, fácil. A animosidade
entre eles era grande. Como observa Jen Kastner, “em 1971, Henryk M. Broder,
por exemplo, afirmava que Mühl não era um esquerdista, mas um anal-fascista”. O
artista também foi duramente criticado pela mentalidade burguesa de todos os
revolucionários que calçam suas pantufas depois que concluem suas pequenas
revoluções, conforme disse Gerald Raunig.
A
controvérsia envolvendo Mühl e os demais autores do Acionismo vienense ficaram
acaloradas por conta da cena artística em geral da Áustria ter uma certa
dominância dentro dos círculos de poder, mesmo no ano de 1968, o que estava
geralmente marcado, de acordo com Robert Foltin, por “uma ausência de teoria e
um nível baixíssimo de militância política”1.
Filmes
e parcerias
Andrew
Grossman analisa o cinema acionista de Otto Mühl: “A maioria das ações mais
famosas de Mühl realizadas durante os anos 60 foram documentadas pelo diretor
experimental Kurt Kren, famoso pela patenteada técnica de ‘flash-editing’, que
fraciona matematicamente imagens em cortes múltiplos por segundo, criando um
efeito estroboscópico onde o número de cortes de cada sequência é dertermina
pelo número de cortes da sequência imediatamente anterior. Estamos então
confrontado com o paradoxo das performances materialistas e em tempo real de
Otto Mühl sendo editadas discontinuamente em ‘flash-editing’ e temporariamente
reconstituídas pela maquinação anti-realista da vanguarda kreniana. O efeito
estroboscópico da edição de Kren é ao mesmo tempo futurista e primitivamente
daguerreotípica. (…) Esse paradoxo de uma performance em tempo real apresentada
dentro de sequências fortemente reestruturadas nos lembra firmemente das limitações
da representação temporal e a necessidade eventual de partir da arte
representativa ao império de ações-análises de Mühl, ou auto-representações ao
vivo”2.
A
colaboração dos dois acionistas –Mühl e Kren- se dava em vários níveis. Em
alguns filmes de Kren, Mühl aparecia como ator, e vice-versa. Geralmente era
Kren quem editava os filmes de Mühl, bem como era responsável pela fotografia e
câmera.
A
parceria foi longa e frutífera, mas Kren não era o único parceiro de Mühl.
Também Günter Brus vai aparecer como câmera, na ação “Penis in Pappteller und
Rose” (Pênis em prato de papel e rosa, 1965) ou é Ernst Schmidt Jr. quem assume
a câmera em “Silberarsch” (Cu de prata, 1965). Muitas vezes o próprio Mühl não
só dirigia, mas era também o câmera, como em “Penisaktion mit Teesieb” (Ação de
pênis com peneira de chá, 1965). Ingomar Lorenz, Peter Weibel, Ludwig
Hoffenreich, Hans Sohm, Helmut Kronberger e Teddy Podgorsky figuram na longa
lista de colaboradores dos filmes-ações.
Como
o próprio Mühl reforça em seu “Manifesto de Ação Material”, de 1964, “os
trabalhos de ação material trabalham com símbolos (a sua diferença básica do
teatro), em que eles mesmos constituem uma linha roteirística, uma série
consecutiva e amalgamada de símbolos como realidades auto-suficientes (…). Eles
não esperam explicar nada, eles são o que eles aparentam ser”3.
Como
lembra Grossman4, uma característica clara do cinema de Mühl é a negação de
efeitos alegóricos. Outros filmes acionistas são muito mais transparentemente
alegóricos do que o trabalho de Mühl. Um exemplo é “10/65”, de Gunter Brus,
filmado por Kurt Kren, que recria o clima de remoção de arcadas dentárias nos
campos de concentração. Dentes dourados em “tableaux vivants” de estátuas
humanas, gritando silenciosamente, enquanto bocas são violentadas com agulhas e
tesouras -um dos trabalhos mais politizados dos acionistas, no sentido de
retomar questões relacionadas ao nazismo.
Poucos
filmes representam melhor esse transcendente literal do que os escatofágicos
“Scheisskerl” (Cara de merda, 1969) e “Sodoma” (1969). As imagens em
“flash-editing” de enemas, urofilia e coprofagia -algumas vezes em extremo
slow-motion- não são simplesmente uma afronta à negação das realidades
corporais, como reflete Grossman5. Talvez sejam um desejo de radicalizar ao
máximo as experiências iniciadas no começo da década de 60 ou, paradoxalmente,
trabalhar de forma pioneira e não comercial com o que viria logo em seguida -no
mercado bilionário de pornografia hardcore- a ser um dos filões mais lucrativos:
o das parafilias.
De
qualquer maneira, os filmes são documentos históricos e conseguem de fato ainda
suscitarem discussões sobre as fronteiras e diálogos entre arte, pornografia,
comércio e engajamento político e merecem de toda forma serem vistos.
Comunas
experimentais
Como
os seus colegas do RAF em relação à política, Mühl chegou ao ponto em que
pensou que a arte seria uma plataforma restrita. Ele precisava de algo maior e
que abordasse aspectos gerais da vida -ou seja, plataformas mais amplas. Para ele,
o Acionismo por si só se tornara muito pouco. Sua última ação pública foi em
1973. O objetivo principal do artista a partir dos anos 70 foi literalmente
cair fora do sistema e criar uma forma de vida alternativa.
Em
1970 ele formou então a comuna Praterstrasse e, em 1972, tal empreendimento
desenvolveu-se para o que seria um projeto utópico socio-sexual: a comuna
Friedrichshof, num castelo no interior da Áustria. A comuna durou até 1990. As
suas estruturas essenciais eram a sexualidade livre, a propriedade coletiva, a
educação de crianças sem relações de autoridade com pais e mestres e a promoção
de uma formação criativa. Em 1991, a corte suprema austríaca condenou Mühl a
sete anos de reclusão por atos contra a moral pública.
Ele
admitiu que havia limitações em seu pragmatismo: “Eu estava enganado quando
imaginei que um grupo tratado como um experimento social e sexual poderia vir a
ser um tipo de remédio para pessoas com grandes dificuldades. Eu refleti
erroneamente sobre esse experimento, onde estética, sociologia, biofísica e
psicologia se sobrepunham, onde arte não era só entendida como uma
representação, mas como a vida, como uma auto-representação que não fosse
regulada nem por instâncias de comércio, tampouco pelo Estado”6. Essa
declaração é apenas uma nota patética, diante do legado que deixou esse
importante e radical artista do século 20.
link-se
website
oficial de Otto Mühl - http://www.archivesmuehl.org/
Filmes
e vídeos de Mühl na UbuWEB - http://www.ubu.com/film/muehl.html
Bibliografia
Foltin, Robert: Und wir bewegen uns doch. Soziale
Bewegungen in Österreich, Vienna, 2004
Gilcher-Holtey, Ingrid: Die 68er Bewegung. Deutschland
– Westeuropa – USA, Munique (Editora C. H. Beck), 2003.
1 - Kastner, Jen. “Artistic Internationalism and
Institutional Critique” - http://eipcp.net/transversal/0106/kastner/en
(21/07/07).
2 - Grossman, Andrew. “An Actionist Begins to Sing”
-http://www.brightlightsfilm.com/38/muhl1.htm (21/07/07).
3 - Green, Malcolm 1999: “Brus, Muehl, Nitsch,
Schwarzkogler: Writings of the Vienna Actionists”. Londres: Atlas Press, págs.
122-123.
4 - Id., ibid.
5 - Id., ibid.
6 - Grossman, Andrew. “An Interview with Otto Mühl”.
2002 - http://www.brightlightsfilm.com/38/muhl2.htm (20/07/07).
Godfrey, Tony: Konzeptuelle Kunst, Berlim (Editora
Phaidon), 2005.
Raunig, Gerald: Kunst und Revolution. Künstlerischer
Aktivismus im langen 20. Jahrhundert, Viena (Editora Turia + Kant), 2005.
Raunig, Gerald: "Instituent Practices. Fleeing,
Instituting, Transforming" in: Transversal multilingual webjournal: do you
remember institutional critique?, 1/2006 -
http://transform.eipcp.net/transversal/0106/raunig/en (05.07.2007).
Rancière, Jacques: "Die Politik der Kunst und
ihre Paradoxien", in: ibid.: Die Aufteilung des Sinnlichen. Die
Politik der Kunst und ihre Paradoxien, editado por Maria Muhle, Berlim
(b_books/Polypen), 2006, pp. 75–100.
Tscherkassky Peter: “Kurt Kren: Lord of the Frames” -
http://www.hi-beam.net/mkr/kk/kk-bio.html (17.07.07)
Nenhum comentário:
Postar um comentário