sexta-feira, 12 de abril de 2019

As raízes do pensamento de Olavo de Carvalho – uma análise de toda sua obra





Ele é o guru da nova direita brasileira. Durante anos foi o principal crítico da intelectualidade de esquerda e do projeto de poder do PT. Sempre implacável nos embates, comprou brigas com boa parte do establishment cultural do país. Seus admiradores o classificam como “nosso maior filósofo e educador”. Seus detratores o relegam à categoria de “astrólogo”.
Eis Olavo de Carvalho, o autonomeado “filósofo”, que foi militante do PCB nos Anos de Chumbo e duas décadas mais tarde transmutou-se no mais temível inimigo do “marxismo cultural”. Ele mesmo explica as razões dessa chrysopoeia filosofal:
“Os senhores não têm a menor ideia de como é bom, para um sujeito que ajudou a construir uma mentira na juventude, poder desmontá-la na maturidade, tijolo a tijolo, com a meticulosidade sádica do demolidor.”
Por um quarto de século, o autor de O imbecil coletivo (1996) e O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota (2013) tem-se empenhado em dar novos contornos à práxis nietzschiana da filosofia a marretadas. Sempre enérgico na denúncia do comunismo, dedicou-se a expor a articulação continental dos partidos e agremiações de esquerda, que caracterizou como o Foro de São Paulo:
“Um dos instrumentos mais engenhosos utilizados para isso foi a duplicação das vias de ação partidária, uma nacional e ostensiva, denominada oficialmente PT ou ‘governo’, a outra internacional e discretíssima chamada ‘Foro de São Paulo’, o mais importante e poderoso órgão político latino-americano.”

Cedo também condenou o sistema político da Nova República, apontando a suposta repartição do poder entre a esquerda moderada e a esquerda radical:
“O PT e o PSDB foram essencialmente criações de um mesmo grupo de intelectuais esquerdistas empenhados em aplicar no Brasil o que Lênin chamava de ‘estratégia das tesouras’: a partilha do espaço político entre dois partidos de esquerda, um moderado, outro radical, de modo a eliminar toda resistência conservadora ao avanço da hegemonia esquerdista.”
Outras obsessões de Olavo de Carvalho têm sido o “globalismo”, que ele acredita ser o projeto de governo mundial, conduzido por elites transnacionais de inspiração maçônica; e as “técnicas de manipulação das massas”, desenvolvidas pela psicologia moderna e por filósofos de esquerda como Antonio Gramsci e os integrantes da Escola de Frankfurt:
“Os acontecimentos mais básicos dos últimos 50 anos são: primeiro, a ascensão de elites globalistas, desligadas de qualquer interesse nacional identificável e empenhadas na construção não somente de um Estado mundial, mas de uma pseudocivilização planetária unificada, inteiramente artificial, concebida não como expressão da sociedade, mas como instrumento de controle da sociedade pelo Estado; segundo, os progressos fabulosos das ciências humanas, que depositam nas mãos dessas elites meios de dominação social jamais sonhados pelos tiranos de outras épocas.”
Conhecido por seus amores inventados e paixões cruéis desenfreadas, Olavo recusa o rótulo de “exagerado”. Assim ele justifica seu proverbial destempero vocabular:

“É verdade que Olavo de Carvalho usa às vezes palavras duras, deprimentes, humilhantes. Mas jamais elevou a voz em público para condenar qualquer conduta privada, por abominável que lhe parecesse.”
A realidade se mostra um tanto distinta. A saraivada de insultos e impropérios saídos de sua metralhadora giratória já atingiu nomes como Gilberto Gil, Chico Buarque, Dorival Caymmi, Dias Gomes, Janete Clair, José Américo Pessanha, Gerd Bornheim, Leandro Konder, José Arthur Giannotti, Wilson Martins e Reinaldo Azevedo, entre outros. Isso sem contar os inúmeros golpes abaixo da cintura que desfere diariamente contra os próceres do esquerdismo moreno. Vejamos o que disse do sempre lúcido e ponderado Fernando Gabeira:
“É uma vergonha nacional que um sujeito obviamente desqualificado, tolo, descoordenado de cabeça, seja aceito como intelectual por conta de antigos feitos de armas que um analfabeto poderia realizar com iguais méritos, e que, aliás, por mais autênticos que tenham sido, mal o habilitariam ao título de sargento honorário do exército de libertação da Zâmbia. O prestígio de Gabeira como ‘pensador’ é exemplo típico do nosso provincianismo cultural, onde popularidade é sinônimo de elevação intelectual.”
Mas Olavo não se restringe ao pessoal. Ele, com frequência, desfere ataques ainda mais ferozes contra seus inimigos coletivos:
“Não conheço um só líder esquerdista, petista, gayzista, africanista ou feminista que não corresponda ponto por ponto a essa descrição, que corresponde por sua vez ao quadro clássico da histeria. (...) A presença de um grande número de histéricos nos altos postos de uma sociedade é garantia de deterioração de todas as relações humanas, de proliferação incontrolável da mentira, da desonestidade e do crime.”

Seu instinto de criar polêmicas ao estilo do “velho da montanha” se mostra especialmente virulento no combate às ambições políticas ou culturais de algumas minorias:
“Alguém tem de dizer aos negros a verdade: a verdade é que todos os ritos iorubás não valem uma página de Jalal ad-Din Rumi e a história inteira do samba não vale três compassos de Bach.”
“Não se encontrará nas fileiras gays um único santo, místico ou homem espiritual de elevada estatura. Iguais aos outros no mal, os gays têm escassa folha de serviços na prática do bem.”
Tão compassivo ativismo filosófico custou a Olavo de Carvalho não poucos desafetos. Talvez por isso ele tenha decidido mudar-se, em 2003, para os Estados Unidos. Estabelecido em Richmond, na Virgínia, surfou com destreza a onda da internet, tornando-se um pioneiro youtuber. A despeito de seu imenso sucesso de público, ou talvez por causa dele, passou a lamentar o estado da cultura brasileira:
“Desde que me distanciei do Brasil, tenho visto a inteligência dos meus compatriotas cair para níveis que às vezes ameaçam raiar o sub-humano.”
Aos poucos, Olavo construiu uma verdadeira legião de seguidores on-line. Em seu Seminário de Filosofia, formou toda uma nova geração de políticos, ativistas e burocratas de direita. Termos como “engenharia social”, “ideologia de gênero” e “marxismo cultural” entraram para o léxico político brasileiro. E sua refinada mensagem ecoou pelo país:

“Há quatro décadas a tropa de choque acantonada nas escolas programa esses meninos para ler e raciocinar como cães que salivam ou rosnam ante meros signos. (...) Um deles ouve, por exemplo, a palavra ‘virtude’. Pouco importa o contexto. Instantaneamente produz-se em sua rede neuronal a cadeia associativa: virtude-moral-catolicismo-conservadorismo-repressão-ditadura-racismo-genocídio. E o bicho já sai gritando: É a direita! (...) De maneira oposta e complementar, se ouve a palavra ‘social’, começa a salivar de gozo, arrastado pelo atrativo mágico das imagens: social-socialismo-justiça-igualdade-liberdade-sexo-e-cocaína-de-graça-oba!”
Após quase três décadas de incessantes combates, Olavo de Carvalho chegou enfim ao topo do mundo. Ungido sacerdote, profeta e conselheiro-mor do novo governo, sente-se autorizado a indicar ministros de Estado, passar pitos em deputados federais, desafiar juízes do Supremo, confrontar generais de quatro estrelas e espinafrar publicamente o vice-presidente da República:
Logo após a vitória eleitoral, Olavo recomendou ao presidente eleito “quebrar as pernas de seus inimigos, impiedosamente”. Desferiu também críticas aos servidores públicos de inclinação weberiana, vistos como simpatizantes do “marxismo cultural” e membros do “deep state”. Transcendendo o mero papel de intelectual engajado, almeja converter-se em ideólogo do novo governo:
“Se esbarrasse na rua com algum dos nossos políticos ditos ‘de direita’, eu lhe perguntaria o seguinte: ‘Você quer destruir a esquerda, destruí-la politicamente, socialmente, culturalmente, de modo que nunca mais se levante e que ser esquerdista se torne uma vergonha que ninguém ouse confessar em público?’.”
Olavo imagina-se, acima de tudo, uma espécie de salvador espiritual da nação:
“Se me perguntarem quais são os problemas essenciais do Brasil, responderei sem a menor dificuldade: (...) A destruição completa da alta cultura, num estado catastrófico de favelização intelectual onde a função de respiradouro para a grande circulação de ideias do mundo, que caberia à classe acadêmica como um todo, é exercida praticamente por um único indivíduo, um último sobrevivente.”
Ele mesmo, obviamente. Mas o conceito que o mago de Richmond nos apresenta de “alta cultura” tem suas sutilezas. Como herdeiro da augusta tradição do pensamento metafísico, Olavo não perde uma oportunidade de demonstrar ao mundo a elegância de sua dialética:
“Combater o consumo de drogas por meio da liberação é tão inteligente quanto defender-se da tentação do adultério comendo a mulher do vizinho três vezes por semana, no intuito de tornar-se imune aos encantos das demais esposas dos arredores. Pode-se também suprimir o homossexualismo dando o traseiro por aí até que ele se torne insensível.”
O trecho acima não é um caso isolado. É antes um traço essencial, um cacoete ontológico, um jeito de ser nascido da própria natureza do autor de A nova era e a revolução cultural (1994):
“Aí é que entra a missão providencial dos intelectuais. Sua função é precisamente pôr um fim a essa suruba ideológica. (...) São lições de Antônio Só-a-Cabecinha Gramsci.”
A incompatibilidade desse modo de ser com o ideal cristão é patente. Mas o “filósofo” de O jardim das aflições (1995) não compreende os ensinamentos daquele que agonizou no Getsêmani:

“Quando reagem aos ataques cada vez mais virulentos que a religião sofre da parte de gayzistas, abortistas, feministas enragées, neocomunistas, iluministas deslumbrados etc., certos católicos e protestantes invertem a ordem das prioridades: colocam menos empenho em vencer o adversário do que em evitar, por todos os meios, ‘combatê-los à maneira do Olavo de Carvalho’. O que querem dizer com isso é que Olavo de Carvalho é violento, cruel e impiedoso, humilhando o inimigo até fazê-lo fugir com o rabo entre as pernas, ao passo que elas, as almas cristianíssimas, piedosíssimas, boníssimas, preferem ‘odiar o pecado, jamais o pecador’.”
Exatamente. Ser cristão requer esse tipo de discernimento. Mas, para explicar ao leitor a recusa de Olavo de Carvalho em compreender seu próprio insight, será preciso recuar no tempo e demonstrar de onde veio e em que consiste o pensamento desse vitriólico filósofo das multidões.
I – Olavo e a Escola Perenialista
Olavo de Carvalho é um produto da contracultura. No final dos anos 60, sem ter sequer o primeiro grau completo, começou a ganhar a vida como jornalista. Após breve envolvimento com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), optou pelo “desbunde”, entregando-se de corpo e alma ao esoterismo.
“O esoterismo é a ciência universal por excelência, é o conhecimento e a realização da unidade.”
No final dos anos 70 e início dos anos 80, Olavo foi colaborador da revista Planeta, principal órgão de divulgação do espiritismo, da astrologia, alquimia, do hermetismo, tarô, da ufologia e de outros baratos. Esse mergulho na quinta dimensão levou-o à escola “tradicionalista”, ou “perenialista”, inaugurada por René Guénon (1886-1951), um ocultista francês com ambições filosóficas, que mais tarde se converteu ao islã.
Com base nos ensinamentos de Guénon e seus seguidores, Olavo publicou uma série de artigos sobre o perenialismo na revista Planeta, além de seis livros sobre astrologia e esoterismo: A imagem do homem na astrologia (1980), Questões de simbolismo astrológico (1983), Astros e símbolos (1985), Astrologia e religião (1986), Fronteiras da tradição (1986) e O caráter como forma pura da personalidade: elementos para uma astrocaracterologia (1992). Sobre essa fase, ele explica:
“Os livros que escrevi sobre Astrologia foram redigidos para um grupo de pessoas que estavam metidas até a goela no esoterismo islâmico. Para entender-se o que está escrito, é preciso saber para quem foi escrito.”
Nos anos 80, por influência do perenialista Frithjof Schuon (1907-1998), Olavo passou a viver em uma comunidade mística islâmica (tariqa), em São Paulo. Nesse período, praticou o poliamor, tiranizou a família e aprofundou-se no estudo da gnose sufi. Os episódios foram relatados por sua filha mais velha, Heloísa de Carvalho, em entrevista à revista Carta Capital e em carta aberta ao pai, publicada nas redes sociais. Embora um autor não deva ser criticado por seus erros passados, o incidente nos remete à passagem de A nova era e a revolução cultural em que Olavo especula:
“O que Gramsci fez com a própria filha, por que não o faria com os filhos dos outros?”
Para entendermos a viagem de Olavo de Carvalho às profundezas do “islamismo cultural”, é preciso conhecer um pouco mais do perenialismo. René Guénon, fundador dessa vertente do esoterismo, mudou-se, jovem ainda, para Paris, onde se tornou discípulo do famoso Papus, criador da linhagem martinista do ocultismo. Insatisfeito com a demora em ser iniciado nos “mistérios superiores”, tomou rumo próprio. Aos 24 anos, foi enfim iniciado, durante rito funesto, no qual invocou o espírito de Jacques de Molay, o último grão-mestre dos templários, morto na fogueira, em 1314. O episódio é comentado pelo estudioso do perenialismo Mark Sedgwick, em seu bem documentado livro Against the modern world: traditionalism and the secret intellectual history of the 20th century:
“As instruções de Jacques de Molay, comunicadas a Guénon durante sessão em 1908, foram de restabelecer a Ordem do Templo. Guénon prosseguiu com a criação da Ordem Renovada do Templo, com a ajuda de cinco outros martinistas.”
A partir de então, Guénon deu início a intensa atividade intelectual. Em seus artigos e livros, empenhou-se em criticar maçons, kardecistas e teosofistas, denunciando-os como adeptos de vertentes contrainiciáticas do esoterismo, corrompidas pelo evolucionismo darwinista e por ideias socialistas. Nesse embate, desenvolveu uma lendária paranoia, passando a ver conspirações por toda parte:
“A Inglaterra é chamada a ditar suas leis para o mundo inteiro (...). Esta será a realização dos ‘Estados Unidos do Mundo’, mas sob a égide da ‘nação dirigente’ e para seu exclusivo benefício; assim o internacionalismo dos chefes do teosofismo se revela no imperialismo britânico levado ao seu grau mais extremo.”
Nem sequer os protestantes escapavam às críticas de René Guénon:
“A propósito das relações entre o teosofismo e o protestantismo, uma questão se coloca: se estimamos que o teosofismo é anticristão em princípio (...) teremos então de concluir que o protestantismo, tão logo suas tendências sejam levadas ao extremo, há de chegar logicamente ao anticristianismo? Por paradoxal que tal conclusão pareça à primeira vista (sobretudo quando nos lembramos que muitas seitas protestantes gostam de se dizer ‘cristãs’ sem epíteto, ou ainda ‘evangélicas’), existem fatos que são ao menos suscetíveis de dar verossimilhança a semelhante conclusão.”
Em sua busca espiritual, Guénon elaborou uma nova síntese ocultista, supostamente “metafísica” e influenciada por elementos vindos de doutrinas orientais e da gnose clássica. Imbuído de fortíssimo idealismo romântico e de igual dose de revisionismo histórico, passou a fundir todos os caminhos espirituais em uma única e secreta “filosofia perene”, que tudo engloba e nada explica.
“Por Gnose aqui se deve entender o Conhecimento tradicional que constitui o fundo comum de todas as iniciações, cujas doutrinas e símbolos foram transmitidos, desde a mais remota antiguidade até nossos dias, através de todas as Confraternidades secretas, cuja longa corrente jamais foi interrompida.”
O pensamento de René Guénon chegou à maturidade com A crise do mundo moderno (1927). Nesse volume, ele mescla sua crença em uma “sabedoria perene” com o pessimismo histórico e o ideário antidemocrático de Oswald Spengler, autor da obra em dois tomos O declínio do Ocidente (1918 e 1923), que serviu de inspiração para o nazifascismo. Ao debruçar-se sobre o mal-estar da cultura moderna, Guénon centra sua crítica na perda de contato do Ocidente com a base espiritual tradicional:
“O moderno Ocidente é dito cristão, mas isso não é verdade: a visão moderna é anticristã, porque é essencialmente antirreligiosa; e é antirreligiosa porque, de modo ainda mais geral, é antitradicional.”

Valendo-se de conceitos da mística hinduísta, Guénon propõe uma visão cíclica da história. Nesse arcabouço, a cultura ocidental, dominante no planeta, estaria às portas de um colapso civilizacional:
“De acordo com todas as indicações fornecidas por doutrinas tradicionais, entramos de fato na última fase do Kali-Yuga, o mais escuro período da atual ‘idade das trevas’, o estado de dissolução do qual é impossível emergir senão mediante um cataclisma, pois não é apenas de um mero reajustamento que necessitamos neste estágio, mas de uma completa renovação. (...) Não chegamos acaso à terrível era anunciada nos Livros Sagrados da Índia, em que ‘as castas irão misturar-se, e em que mesmo a família deixará de existir’? Basta olhar em torno para convencer-se de que este é o estado do mundo de hoje, e para notar em todos os lados a profunda degeneração.”
O trecho citado revela o caráter essencialmente antidemocrático do perenialismo. No entender de Guénon e seus seguidores, as sociedades são divididas em “castas”. Nas culturas tradicionais, haveria um sólido pacto de solidariedade entre a casta sacerdotal e a casta guerreira — e desse pacto derivariam a vitalidade e a estabilidade dessas sociedades. As sociedades modernas, contudo, estariam sujeitas à “lei de regressão das castas”. Quem nos explica o conceito é o mitógrafo italiano Julius Evola (1898-1974), sem dúvida o mais relevante parceiro de René Guénon na formulação do perenialismo. Eis um trecho de Revolta contra o mundo moderno (1934), obra na qual Julius Evola aprofunda os aspectos políticos do pensamento de Guénon:
“Uma progressiva mudança de poder e de tipo de civilização produziu-se de uma casta para a outra, desde os tempos pré-históricos (dos líderes sagrados para a aristocracia guerreira, para os comerciantes, e finalmente para os servos); estas castas correspondiam, em civilizações tradicionais, à diferenciação qualitativa das principais possibilidades humanas. Em face desse movimento geral, tudo o que diz respeito aos vários conflitos entre os povos, a vida das nações e outros acidentes históricos desempenha um papel apenas secundário e contingente.”
Comparemos os textos acima com aquilo que Olavo de Carvalho nos ensina em seu principal livro, O jardim das aflições, uma obra perenialista de cabo a rabo:
“Acima das religiões, acima das consciências individuais, é ao Estado — casta dirigente ou aristocrática — que cabe, sob as bênçãos da intelectualidade — casta sacerdotal — dirigir o processo de modernização, e portanto, determinar o sentido da vida coletiva, os valores e critérios morais, o certo e o errado, o verdadeiro e o falso.” “Essa ideologia (...) não podendo eliminar as castas governantes, ocultou-as, aumentando assim o seu poderio. E, quando elas ressurgem sob nomes como ‘burocracia estatal’ e intelligentsia, ninguém as reconhece, pois todos creem que castas só existem na Índia ou no passado medieval.”
Segundo os teóricos do perenialismo, as grandes culturas tradicionais começam a decair no momento em que as castas inferiores de mercadores e servos assumem o poder político, ocasionando o progressivo declínio dos valores sociais. Diz René Guénon:
“O mais decisivo argumento contra a democracia pode ser resumido em poucas palavras: o superior não pode proceder do inferior, porque o maior não pode proceder no menor; esta é uma absoluta certeza matemática que nada pode questionar. (...) O povo não pode conferir um poder que ele mesmo não possui; o verdadeiro poder somente pode vir de cima, e é por isso que ele apenas pode ser legitimado por algo pairando acima da ordem social, ou seja, por uma autoridade espiritual.”

Diante de tão reacionário credo, não surpreende que René Guénon tenha colaborado com 25 artigos para a revista Il Regime Fascista, editada por Julius Evola, entre 1934 e 1942. A tentativa de alguns dos seguidores de Guénon de ocultar a natureza antidemocrática de seu pensamento chega a ser risível, especialmente quando se analisa o conteúdo de suas obras da maturidade. Em O reino da quantidade e os sinais dos tempos (1945), a fantasia tradicionalista resulta em uma ruptura completa com a modernidade. Guénon investe contra a sociedade de consumo, a ciência moderna, o darwinismo, a psicanálise e a filosofia ocidental, aproveitando o ensejo para denunciar os “sábios do Sião”:
“Por que será que os principais representantes das novas tendências, como Einstein na física, Bergson na filosofia, Freud na psicologia, e muitos outros de menor importância, são quase todos judeus de origem, senão pelo fato de que há algo envolvido que está intimamente ligado ao aspecto ‘maléfico’ e corrosivo do nomadismo quanto ele é desviado, e porque esse aspecto deve inevitavelmente predominar em judeus desgarrados de sua tradição?”
Note-se que o texto foi publicado em 1945, já com a Segunda Guerra Mundial terminada, os nazistas vencidos e o Holocausto perpetrado. Sem dúvida, um autor sintonizado com os sinais dos tempos. Em Metafísica da guerra, uma coletânea de artigos escritos entre 1935 e 1950, Julius Evola explica o horror que os membros da escola perenialista sentem das ideologias revolucionárias:
“A civilização de tipo puramente heróico-sacral somente pode ser encontrada no período mais ou menos pré-histórico da tradição ariana. Ela foi sucedida por civilizações no topo das quais já não estava a autoridade dos líderes espirituais, mas de expoentes da nobreza guerreira — e esta foi a era das monarquias históricas, que se estendeu até o período das revoluções. Com as revoluções francesa e americana, o Terceiro Estado tornou-se o mais importante, determinando o ciclo das civilizações burguesas. Finalmente, o marxismo e o bolchevismo parecem levar à queda final, com a passagem do poder e da autoridade às mãos da última das castas na antiga hierarquia ariana.”
Diante dessa ameaça à harmonia hierática das sociedades, Julius Evola não hesita em propor:
“O Fascismo se nos mostra como uma revolução reconstrutiva, dado que afirma um conceito aristocrático e espiritual da nação, oposto tanto ao coletivismo socialista e internacionalista quanto à noção democrática e demagógica da nação.”
A opção da maior parte dos perenialistas pelo islã deriva sobretudo da incompatibilidade de suas ideias com a ortodoxia cristã. Sendo gnósticos e ocultistas, os perenialistas enxergam uma antinomia incontornável entre a religião oficial, com seus ritos formais e sua moral rígida (modalidade exotérica), e a espiritualidade superior, marcada pela iluminação intelectual, pelos ritos iniciáticos e pela teurgia (modalidade esotérica). Eis o que nos diz Frithjof Schuon, em Gnose: sabedoria divina (1959):
“A distinção exotérica entre ‘religião verdadeira’ e ‘falsas religiões’ é substituída para o gnóstico pela distinção entre ‘gnose’ e ‘crença’ ou entre ‘essência’ e ‘formas’. Somente a perspectiva sapiencial é um esoterismo no sentido absoluto; em outras palavras, somente ela é necessária e integralmente esotérica, pois somente ela se projeta além de todo relativismo.”
No entender dos “homens espirituais” — assim os perenialistas chamam a si mesmos —, a religião oficial seria uma forma superficial da vivência espiritual, concebida em benefício dos homens inferiores, incapazes de acessar o conhecimento superior. A philosophia perennis, em contraste, seria a essência gnóstica da espiritualidade universal. Disse Olavo de Carvalho, em artigo na revista Planeta:
“Já o esoterismo, ao contrário, sendo um único em sua essência (ele é a Philosophia Perennis, a verdade metafísica una, eterna, supraformal e transcendente), varia, entretanto, nas distintas formas históricas que o expressam, havendo, portanto, um esoterismo cristão, um islâmico, um judaico, etc.”
Engana-se Olavo. Enquanto o cristianismo real (seja ele católico, ortodoxo ou protestante) se funda na humildade, na igualdade entre todos e no amor ao próximo, a gnose conduz a uma espiritualidade elitista e arrogante, que divide os seres humanos em diferentes categorias e que advoga a superioridade dos homens “espirituais” sobre os homens “psíquicos” e “carnais”. Mais importante ainda, a visão gnóstica da espiritualidade é incompatível com os mistérios da Encarnação e da Trindade, conforme demonstrou Irineu de Lyon, em Adversus haereses (c. 180 d.C.).
No cristianismo real, os aspectos exotéricos e esotéricos, imanentes e transcendentes, formais e místicos da espiritualidade estão reunidos em Cristo e sua Igreja. Não existe um deus espiritual que se contraponha ao demiurgo do mundo material nem qualquer conhecimento oculto que permita ao iniciado acessar magicamente os planos superiores da existência. Há, em contraste, uma Trindade de amor na própria essência da Divindade. E existe um projeto de redenção do homem, centrado no sacrifício, na morte e ressurreição de Jesus Cristo. Assim nos diz o apóstolo São Paulo:
“Nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus.” (1 Coríntios 1: 23, 24)

O perenialismo de Guénon, Evola e Schuon, por mais que se esforce em demonstrar a unidade das grandes tradições, fundindo teísmo e panteísmo em um mesmo amálgama inconsistente, tende inexoravelmente a aderir ao esoterismo islâmico como única vertente universal da gnose. Para os cristãos, a gnose é anátema. Para israelitas, hindus e chineses, ela não é universalizável. Daí a opção de René Guénon pelo esoterismo sufi. Em 1930, ele se muda para o Cairo e converte-se ao islã:
“Devemos outra vez recordar que o significado adequado da palavra islã é ‘submissão à Vontade Divina’; portanto, diz-se, em certos ensinamentos esotéricos, que todo ser é muçulmano, no sentido de que claramente ninguém pode escapar a essa Vontade; e, desse modo, cada um necessariamente ocupa o lugar que lhe cabe no Universo como um todo.”
A adesão de Guénon ao islã não representa, contudo, a opção por um exclusivismo maometano. Desde suas origens, no primeiro século da era cristã, a gnose tem o vício de atuar como uma espiritualidade parasitária, que vive à sombra de grandes religiões. Ela se apropria dos símbolos, conceitos, práticas e textos sagrados formulados pela ortodoxia originária, transmutando-os em uma religiosidade completamente distinta. Sendo uma perspectiva pseudofilosófica, ligada à magia e aos cultos de mistérios, a gnose usa as grandes tradições religiosas para esconder-se. O gnóstico é, antes de tudo, um mago dissimulado, cuja suposta espiritualidade não passa de pura egolatria. Eis um trecho sintomático de Olavo de Carvalho:
“Note-se que essa possibilidade de transitar livremente de uma Tradição a outra é, hoje como sempre, apanágio exclusivo dos grandes mestres espirituais.”

Ao envolver-se com o esoterismo perenialista, Olavo de Carvalho converteu-se ao islã. Foi uma conversão meia-sola, aberta a todo tipo de influência “metafísica”, mas foi uma conversão. Esse período rendeu-lhe, além de diversos livros sobre astrologia, um volume sobre o profeta Maomé:
“Meu livro O profeta da paz: estudos sobre a interpretação simbólica da vida do profeta Mohammed (Maomé), ainda inédito nove anos após ter recebido um prêmio do governo da Arábia Saudita, é um estudo sobre a significação da profecia na História, ilustrado pelo caso do único profeta de cujos atos e palavras restou para o historiador moderno uma documentação abundante. Foi esse estudo que me persuadiu, de uma vez para sempre, de que o fenômeno da profecia é o gonzo sobre o qual gira o portal da compreensão histórica, e de que a história reduzida às dimensões natural e civil (...) é apenas uma crônica provinciana, sem qualquer poder de elucidar os fatores decisivos, os retornos cíclicos, as ascensões e quedas dos impérios e das doutrinas.”
No cristianismo real, a profecia não se confunde com vidência política ou determinismo histórico. A profecia, na perspectiva cristã, fala do Cristo e de seu Reino. Os perenialistas nada entendem do tema. Mas Olavo de Carvalho, eterno discípulo do mago francês, pensa de modo distinto. Assim ele explica, em O jardim das aflições:
“O grande reformador maçônico do século XX, René Guénon, encontrou a organização num estado de vácuo doutrinal. (...) Guénon preenche esse vácuo com a mais densa metafísica. (...) A polêmica católica contra René Guénon continua impressionando pela sua incapacidade de enfrentá-lo no terreno propriamente metafísico. As célebres objeções de Mons. Daniélou quanto ao simbolismo da cruz mostram apenas uma inferioridade de QI. Assim como Daniélou, Paul Sérant e outros adversários católicos de Guénon fogem para o terreno teológico e moral, onde se sentem abrigados sob pressupostos de fé que, no entanto, não são metafisicamente válidos.”

Ou seja, segundo Olavo de Carvalho, a cristologia e o mistério da Trindade não são temas válidos. Metafísico, para ele, é o “islamismo cultural” de René Guénon. Em O simbolismo da cruz (1931), livro escrito após sua conversão, o bruxo francês tece incontáveis loas aos elementos místicos do taoismo, do hinduísmo e do islamismo, enquanto projeta sobre essas tradições religiosas os conceitos unificantes inventados por ele mesmo. Quanto ao cristianismo, busca diluí-lo nessa geleia geral, relegando a figura ímpar do Cristo a uma única menção em todo o volume:
“A cruz é um símbolo que, em suas várias formas, pode ser encontrado praticamente por toda parte, e desde o mais remoto tempo; está, portanto, longe de pertencer de modo particular ou exclusivo à tradição cristã como alguns podem ser tentados a acreditar. (…) Em particular, se Cristo morreu na cruz, pode-se dizer que isso ocorreu em razão do valor simbólico que a cruz possui em si mesma, o qual foi sempre reconhecido por todas as tradições.”
Em suma, temos em René Guénon a trajetória exemplar de um herege gnóstico em upgrade para a classe de apóstata. Sua opção recorda aquelas de Sabbatai Zevi, mestre cabalista e falso messias, convertido ao islã em 1666; e de seu seguidor Jacob Frank, nominalmente convertido ao catolicismo em 1759. Conforme demonstrou o estudioso Gershom Scholem em seu livro Major trends in Jewish mysticism, ambos os místicos se converteram por mero cálculo político, mantendo suas práticas gnóstico-cabalistas de modo oculto, enquanto professavam uma fé pública que lhes era conveniente. Os perenialistas agem exatamente assim.
Alguém poderá perguntar: e quem se importa com isso? Qual o problema de uma falsa conversão, de uma religiosidade apenas de fachada? O problema está nas consequências lógicas da fraude. Uma espiritualidade enganosa e dissimulada gera, necessariamente, maus frutos. O próprio Cristo nos ensina:

“Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos ferozes. Pelos seus frutos os conhecereis.” (Mateus 7: 15,16).
Para o filósofo esotérico italiano Julius Evola (1898-1974), o fascismo era o melhor caminho para reafirmar o caráter
O critério evangélico fica evidente no caso dos principais expoentes do perenialismo. René Guénon desenvolveu uma paranoia patológica, que deu origem a toda uma tradição de teóricos da conspiração, além de flertar com ideias antidemocráticas e antissemitas. Julius Evola uniu o fermento dos fariseus ao fermento de Herodes, para tornar-se um entusiasta de Mussolini, um colaborador da SS nazista e o principal teórico do neofascismo europeu no pós-guerra. Frithjof Schuon, por sua vez, elevou à máxima potência o charlatanismo intelectualizado da escola perenialista.
Em 1991, um dos discípulos de Schuon deixou a comunidade que ele havia criado nos EUA, em Bloomington, Indiana. Em seguida, levou o “filósofo” aos tribunais, acusando-o de haver abusado de três adolescentes, nas cirandas místicas ou “encontros primordiais” que promovia. A acusação acabou sendo retirada, após acordo amigável. Mas diversos testemunhos corroboraram a informação de que havia contatos íntimos entre o mestre e as jovens durante esses eventos. O escândalo destruiu a reputação de Schuon e amargurou o restante de sua vida.
Igualmente reveladoras eram as supostas visões místicas do mestre de Olavo de Carvalho. Schuon afirmava que a “Virgem Maria” lhe aparecera, por diversas vezes, inteiramente nua, ocasiões nas quais o envolvia em dança inebriante. Em Against the modern world, Mark Sedgwick conta sobre as fotos que lhe foram enviadas logo ao início de sua pesquisa. O choque provocado pelas revelações fez com que o estudioso abandonasse a ideia de escrever apenas um artigo acadêmico e passasse à tarefa mais exaustiva de um livro sobre a escola perenialista:
“Numa certa manhã, encontrei em minha caixa de correio um robusto envelope enviado por Rawlinson, contendo cópias de algumas fotografias. Sentei-me em minha escrivaninha e pus-me a, alternadamente, enterrar as fotografias debaixo de outros papéis e tirá-las dali novamente, entre fascinado e horrorizado. Lá estava Schuon vestido como chefe de uma tribo de índios americanos, cercado de jovens mulheres em biquínis. Havia também Schuon completamente nu, exceto pelo que parecia ser um capacete viking. E havia ainda uma pintura feita por Schuon da Virgem Maria, igualmente nua, com a genitália claramente exposta.”
Tais revelações, além de repugnantes em si, nos mostram bem em que consiste a síntese perenialista. O quadro a que se refere Mark Sedgwick nos mostra não a Virgem Maria real, mas o conceito que Frithjof Schuon tem de uma Grande Deusa, sensual e devoradora. Ela se mostra sexualizada ao iniciado precisamente porque vai com ele operar uma hierogamia mística — que o levará a ascender a planos superiores do conhecimento. Assim atua o misticismo gnóstico: deturpando a simbologia de todas as religiões, apropriando-se indevidamente e corrompendo o que elas têm de mais sagrado, apenas para projetar nesse furto “metafísico” os conceitos inerentes a seu pretenso saber oculto.
Foi nesse meio extremamente problemático que Olavo de Carvalho se formou. E são ainda hoje os preconceitos perenialistas que moldam seu pensamento e sua visão de mundo. Em especial, foram as obsessões guenonianas que informaram sua principal obra, O jardim das aflições:
“Quando examinada do ponto de vista de suas consequências psicológicas, culturais e espirituais, a ascensão do Império mundial é, como vimos ao longo dos últimos capítulos deste livro, uma ameaça tenebrosa. (...) O que está em jogo no mundo não é, portanto, um mero conflito entre ideologias, mas sim a possibilidade de sobrevivência espiritual da humanidade num mundo onde todas as opções ideológicas díspares e antagônicas se uniram num pacto entre inimigos para varrer da face da Terra o legado das antigas religiões.”
A filiação perenialista de Olavo de Carvalho foi examinada à exaustão pelo professor Orlando Fedeli, historiador competente e tomista de mão-cheia, em seu devastador artigo “A gnose ‘tradicionalista’ de René Guénon e Olavo de Carvalho”, publicado em 2001:
“A doutrina de Guénon, como a de Olavo, não tem apenas alguns pontos gnósticos isolados, mas os princípios gnósticos que eles adotam formam um sistema coerente, que exige chamá-los de gnósticos, ainda que eles não explicitem alguns pontos próprios da Gnose completa. Essa falta de explicitação de alguns pontos da totalidade do sistema gnóstico se nota especialmente em Olavo, que tem uma Gnose menos elaborada pela sua inferioridade em relação a Guénon, quer quanto à inteligência, quer quanto à cultura, quer ainda quanto ao valor de seus livros.”
Engana-se quem acredita ser Olavo de Carvalho um filósofo católico, de linhagem aristotélica. Criado à sombra de René Guénon, Julius Evola e Frithjof Schuon, o alegado fervor cristão do mago de Richmond se revela mera pantomima. Por detrás de suas teorias conspiratórias, de seu desconforto com a modernidade, de seu anticomunismo ferrenho e de sua agressividade verbal reside a gnose obscura da escola perenialista. Basta notar que sua obra não evoca qualquer das virtudes cristãs, mas antes aponta para o inverso delas: em lugar da humildade, a soberba; ao invés da compaixão, o rancor; não havendo mansidão, a violência; na ausência da caridade, a pura vontade de poder. Assim é Olavo, o demolidor.
No início dos anos 90, Olavo de Carvalho passou por uma surpreendente metamorfose. Deixando para trás a persona do jornalista esotérico e astrólogo intelectualizado, resolveu estudar filosofia no Conjunto de Pesquisa Filosófica (Conpefil) da PUC-Rio, sob a direção do padre Stanislavs Ladusãns. Após três anos de estudos, cansado da disciplina acadêmica, abandonou o curso. Mesmo sem diploma universitário, começou a dar aulas de filosofia, valendo-se de seus contatos no meio cultural. A quem o acusava de não ter qualificação para isso, ele retrucava:
 “Filósofo, por definição, é quem filosofa, é quem elabora, bem ou mal, uma resposta pessoal a questões filosóficas, ou pelo menos uma interpretação original de filosofias antigas”.
Com base nas aulas que vinha proferindo na Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio de Janeiro, elaborou um breve estudo sobre a teoria aristotélica do discurso, cujo manuscrito foi recusado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O incidente deu início a um titânico embate entre o “filósofo” autodidata e o establishment acadêmico brasileiro.
“Há décadas nossa intelligentsia vive de ficções que alimentam seus ódios e rancores e a impedem de enxergar a realidade.”
Assim nascem os grandes conflitos. O parecer da SBPC sobre essa primeira incursão de Olavo de Carvalho no terreno da filosofia dizia:
“O autor parece ignorar a imensa produção sobre Aristóteles publicada nos últimos anos, seja em revistas especializadas, nos anais de congressos, em teses e livros (...) não tem acompanhado os debates que se desenvolvem em inúmeros centros de pesquisa”.
Furioso com o parecer, Olavo publicou a obra por conta própria, com o título de Uma filosofia aristotélica da cultura (1994). E partiu para o contra-ataque, divulgando textos em que ridicularizava a SBPC e acusava seus pareceristas de desconhecerem a filosofia clássica.
“Para mim, o homem que sabia javanês infiltrado nas universidades e nas instituições culturais em geral é tão escandaloso, tão daninho para o país quanto um João Alves ou um PC Farias.”
A verdade sobre esta teratologia talvez possa ser encontrada na “justa medida” aristotélica. O parecer da SBPC assinalava um ponto importante: Olavo de Carvalho não é um filósofo de cátedra nem contribui para o avanço da filosofia como disciplina acadêmica. No entanto, também o autor esnobado tinha sua dose de razão: homens como Sócrates, Sêneca, Agostinho, Boécio, Montaigne, Pascal e Camus tampouco estiveram circunscritos a um meio acadêmico formal. A produção do pensamento sempre tenderá a transcender o meio universitário.
Como então classificar o mago de Richmond? Como o faríamos com Voltaire e Diderot, descontado o talento dos franceses. Olavo de Carvalho é um philosophe à brasileira: um livre-pensador, no salon littéraire do Cordão do Bola Preta. Ele ama a polêmica e exerce fascínio sobre muitos de seus ouvintes, porém mistura elementos caóticos em tudo que diz, sem muita preocupação com a coerência de seus argumentos ou a civilidade de sua retórica. Garante Olavo, sobre si mesmo:
“Não sou filósofo, não, apenas um escritor de livros que, por mera coincidência, tratam de filosofia, professor em cursos privados que, dada minha carência de outros conhecimentos, tratam também de filosofia, e proprietário de um cérebro que, por absoluta falta de outros interesses, se ocupa de filosofia obsessivamente e em tempo integral”.
Essa autoimagem do autor de O imbecil coletivo (1996) é pura lábia de cigano das letras. O ofício de Olavo é a polêmica, não o pensamento. Importa-lhe antes nocautear o adversário do que respeitar os fatos e ater-se à boa lógica. Por mais que alardeie ser um defensor da filosofia clássica, ele há três décadas comporta-se como o mais censurável dos sofistas:
“A noção mesma de ‘intelectual’ no sentido moderno é sobretudo um retórico — um agitador de ideias, que nada descobre ou cria por si, mas faz um barulho imenso e põe em movimento a máquina da História”.
Eis um retrato preciso do que Olavo faz. Igualmente importante é ter em conta que o autor de O jardim das aflições (1995) formou-se como intelectual na escola perenialista de René Guénon, Julius Evola e Frithjof Schuon. Nenhum desses proponentes da “sabedoria perene” era propriamente um scholar. Demasiado irrequietos para suportar os rigores da vida universitária, simplesmente publicaram suas obras, criando uma nova linhagem no campo do esoterismo ocultista. Tinham por hábito chamar a si mesmos de “metafísicos”, mas sabiam estar a meio caminho entre o guru letrado e o ensaísta delirante. Diz Olavo sobre eles, pensando talvez no próprio caso:

“As antigas tradições e mitologias estão repletas de histórias de magos, sacerdotes e profetas que nomeiam reis e depois sofrem as maiores ingratidões de seus protegidos. A coisa parece ser uma constante da história humana. Segundo René Guénon, é mesmo. (...) Não deixa de ser interessante que a disputa de prioridade espiritual entre as castas sacerdotal e real se reproduza, na escala discreta que convém ao caso, entre os dois maiores escritores esotéricos do século XX: René Guénon e Julius Evola”.
Após sua breve incursão na seara aristotélica, Olavo de Carvalho passou a dar aulas de filosofia e publicar com sofreguidão. Em um par de anos, firmou-se no debate nacional como um polemista assombroso. Seus artigos e ensaios não eram propriamente obras de filosofia, mas peças de crítica cultural, com forte inclinação para a opinião política. Desde o começo mostrou-se implacável nas críticas à esquerda, cujos métodos e debilidades conhecia por experiência própria. Seus textos, contudo, sempre primaram por mesclar o comentário pertinente às mais extravagantes teorias conspiratórias:
“Há 60 anos nossos escritores e artistas produzem uma cultura de idealização da malandragem, do vício e do crime. (...) A imagem do crime na nossa cultura compõe-se em última análise de um conjunto de cacoetes e lugares-comuns cuja origem primeira está na instrução transmitida pelo Comintern, em 24 de abril de 1933, ao Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro”.
Olavo notabilizou-se também por seu frequente recurso ao comentário chulo...
“Mao Tsé-tung, como se revelou há pouco, comia até os guardinhas do Palácio — entrando, literalmente, para os anais da Revolução.”

...e ao insulto despropositado:

“E logo em seguida um cantorzinho como qualquer outro (referindo-se a Gilberto Gil), cuja máxima originalidade era ter posado de collant ao lado de Roberta Close e respectivo maridão no baile gay do Scala, era consagrado por um cargo ministerial como epítome da ‘cultura nacional’ — seja isso lá o que for”.
Nada disso edifica ou conduz à sabedoria. Pelo contrário, produz no leitor um aviltamento da alma, um entorpecimento do intelecto. São características típicas de quem se formou na gnose obscura da escola perenialista, com seu revisionismo delirante da história, sua nostalgia pelo sistema de castas e seu desprezo pelos povos africanos e seus descendentes:
“Alguns supostos amigos do movimento negro parecem empenhados em transformar a luta antirracista numa cruzada contra a inteligência. (...) Não existe povo bom: e vocês, se foram escravos por três séculos após terem sido senhores de escravos por mais de um milênio, devem agradecer a Deus pela clemência do seu destino”.
Vem também do perenialismo a desenvoltura de Olavo no exercício do preconceito:
“O direito à preferência (sexual gay) é insensato se não acompanhado pelo concomitante direito à repugnância; e o direito à expressão de um vem com o direito à expressão de outra”.
Em qualquer país mais atento às regras do convívio civilizado, textos dessa natureza levariam ao encerramento da carreira intelectual do autor. Aqui no Patropi, terra de Macunaíma e Dercy Gonçalves, a escatologia “filosófica” de Olavo de Carvalho foi seu cartão de visita.
Em meados dos anos 90, Olavo publicou três livros que o lançaram para a fama nacional: A Nova Era e a revolução cultural (1994), O jardim das aflições e O imbecil coletivo . O primeiro desses volumes começa com uma apreciação crítica do pensamento de Fritjof Capra, um físico teórico em ponto de mutação para a lucrativa profissão de guru californiano. Olavo vê nas propostas edulcoradas de Capra — e demais teóricos da nova era — uma estratégia sutil de dominação psicológica das grandes massas, destinada a prepará-las para o advento da Nova Ordem Mundial:
“Ao prometeanismo revolucionário, ela (a ideologia da nova era) opõe a ‘integração da natureza”; à aceleração da história, o equilíbrio ecológico da Nova Ordem Mundial; e ao historicismo absoluto, o fim da História. Capra é inconcebível sem Fukuyama. (...) Todo o vistoso ‘esoterismo’ da Nova Era, com suas iniciações secretas, seus gurus, seus magos e seus ritos, não constitui senão o exoterismo, o aparato externo e social, cujo interior, cujo ‘sentido esotérico’ é na verdade uma ciência bem moderna, racional e profana: o planejamento estratégico”.
No entender de Olavo, junto ao capitalismo lisérgico da nova era, outra ameaça para a civilização ocidental seria o pensamento do marxista italiano Antonio Gramsci:
“Gramsci estabeleceu uma distinção das mais importantes entre ‘poder’ e ‘hegemonia’. O poder é o domínio sobre o aparelho de Estado, sobre a administração, o exército e a polícia. A hegemonia é o domínio psicológico sobre a multidão. (...) Não é preciso dizer que o poder, fundado numa hegemonia prévia, é poder absoluto e incontestável: domina ao mesmo tempo pela força bruta e pelo consentimento popular”.

Ele então explica a estratégia gradual de dominação da “revolução cultural gramsciana”:
“O gramscianismo transforma em propaganda tudo o que toca, contamina de objetivos propagandísticos todas as atividades culturais, inclusive as mais inócuas em aparência. (...) O objetivo primeiro do gramscianismo é muito amplo e geral em seu escopo: nada de política, nada de pregação revolucionária, apenas operar um giro de 180 graus na cosmovisão do senso comum, mudar os sentimentos morais, as reações de base e o senso de proporções, sem o confronto ideológico direto que só faria excitar prematuramente antagonismos indesejáveis”.
Segundo Olavo, as ameaças à civilização ocidental viriam de duas vertentes. A primeira, de inspiração maçônica, teria como características o Estado laico e a promoção de uma cultura individualista e decadente. A segunda, de inclinação marxista, estaria marcada pela inovação gramsciana, em que a proposta de revolução armada é substituída pelo gradualismo da revolução cultural:
“Dessas semelhanças (entre as duas vertentes), a mais significativa é a negação do conhecimento objetivo e a consequente redução da atividade intelectual à propaganda e à manipulação das consciências. (...) A função da intelectualidade é, portanto, gerar essas ilusões e ‘inculcá-las gradualmente’ na cabeça do povo. Eles divergem somente quanto à identidade do intelectual: para (o filósofo Richard) Rorty, ele se constitui da comunidade acadêmica; para Gramsci, é o Partido ou ‘intelectual coletivo’”.
Essa ideia de uma dupla ameaça — vinda, de um lado, do liberalismo capitalista; de outro, do socialismo marxista — reproduz, com pequenas modificações, uma tese central da escola perenialista. Eis o que diz o mitógrafo e ocultista Julius Evola, em Revolta contra o mundo moderno (1934):
“A Rússia e a América são como as duas pontas de um mesmo par de tenazes, que se estão fechando, pelo Oriente e pelo Ocidente, sobre o núcleo da Antiga Europa, demasiado debilitado em suas energias e em seus homens para opor-lhes efetiva resistência. Os conflitos externos, as novas crises e as novas destruições serão apenas os meios para abrir definitivamente o caminho às variedades do mundo do Quarto Estado (do proletariado)”.
O raciocínio é levado adiante por Julius Evola, em artigo da antologia Metafísica da guerra, originalmente publicado em 1937, na revista italiana Il Regime Fascista , da qual ele era o editor:
“Se as duas fases mais recentes do processo involucionário que levou ao declínio moderno foram, primeiramente, a ascensão da burguesia, e, em seguida, a coletivização não apenas da ideia de Estado, mas também de todos os valores e da própria concepção de ética, então, a superação de tudo isso e a reafirmação da visão ‘guerreira’ da vida, no pleno sentido que anteriormente mencionamos, deve constituir uma precondição de qualquer reconstrução: que o mundo das massas e das classes médias materialistas e sentimentais dê lugar a um mundo de ‘guerreiros’; então a principal mudança terá sido alcançada, o que tornará possível o advento de uma ordem ainda mais elevada, aquela da espiritualidade tradicional”.
Os resultados dessa pomposa reação ao “mundo das massas e das classes médias materialistas e sentimentais” — representado pelo “par de tenazes” da Rússia e da América — foram o nazifascismo e o Holocausto. O pensamento de Olavo de Carvalho vem dessa mesma linhagem teórica e sobre ela aplica modificações meramente cosméticas. Eis um trecho de O jardim das aflições :

“A crença no Sentido da História é comum aos comunistas e aos democratas Ocidentais. Estes não creem no esquema marxista, na revolução ou no advento da utopia proletária, mas creem no progresso das instituições, no aperfeiçoamento gradual das leis, na redução progressiva da miséria, na educação universal, na extensão a todos os homens dos benefícios da economia e da cultura modernas. (...) Divergem apenas nos meios e no tipo de sociedade a que aspiram, mas, tanto quanto os comunistas, não concebem que a vida possa ter algum sentido fora ou acima da História. (...) Socialismo e Capitalismo são, assim, as duas seitas em que se cindiu uma mesma religião”.
Examinadas com maior atenção, as ideias de Olavo de Carvalho revelam-se meros derivativos do “fascismo cultural” de René Guénon e Julius Evola. Em linha com seus mestres, ele se insurge contra tudo que caracteriza a modernidade: a democracia liberal, as ideologias igualitaristas, a laicidade do Estado e a própria ciência moderna. Nesse último caso, seu principal inimigo é o evolucionismo:
“O darwinismo é uma ideia escorregadia e proteiforme, com a qual não se pode discutir seriamente. (...) Puramente farsesco, no entanto, é o esforço geral para camuflar a ideologia genocida que está embutida na própria lógica da teoria da evolução”.
Mas ele também investe contra o heliocentrismo e a ciência pós-aristotélica:
“O dogma da sua própria honestidade intelectual intrínseca parece impedir os físicos de perguntar se não há algo de errado no que estão fazendo. Mas um fundo de charlatanismo parece ter sido introduzido na física por Galileu. (...) Galileu não contestou a física antiga, apenas inventou um modo melhor de provar que ela tinha razão. (...) Foi este episódio que inaugurou a mania dos cientistas modernos de tomarem simples mudanças de métodos como se fossem ‘provas’ de uma nova constituição da realidade”.
Em lugar do método científico, da observação empírica, do teste rigoroso das hipóteses e da autonomia da pesquisa, Olavo de Carvalho nos oferece o obscurantismo perenialista:
“(...) as duas censuras básicas e dificilmente respondíveis que o maior crítico da modernidade, René Guénon, fez à ciência pós-renascentista: a confusão entre infinito e indefinido, cujas consequências letais se propagam até hoje, e a perda do sentido fluido e ambíguo da manifestação cósmica”.
Segundo Olavo, todas as vertentes filosóficas, políticas e culturais da modernidade podem ser agrupadas no binômio: revolução americana — burguesa — ou revolução russa — proletária. Do racionalismo de Descartes e Espinoza até a nova era, passando por Hobbes, Locke, Hume, Kant, o iluminismo, o utilitarismo, o positivismo e o pragmatismo americano, tudo que não é propriamente socialista entra no escaninho “maçônico” das revoluções burguesas.
Por sua vez, tudo que cheira vagamente a socialismo entra na gaveta do “marxismo cultural”, seja isso originário do pensamento de Marx e Engels, da interpretação leninista, da revisão gramsciana, da Escola de Frankfurt, do existencialismo, do estruturalismo, do desconstrutivismo, do pós-modernismo, do feminismo ou de qualquer outra proposta de ativismo político-social.
Alguns intelectuais (Hegel, Nietzsche, Freud, Bertrand Russell) e causas políticas (defesa da ecologia, promoção dos direitos humanos) podem ser classificados ora em um grupo, ora em outro, dependendo dos humores de Olavo de Carvalho. Quando ele está enfezado, vira tudo uma coisa só: “marxismo cultural”. E o pai disso tudo é Gramsci, não o Antonio Gramsci verdadeiro, mas um Gramsci com esteroides, vitaminado, dono de uma inteligência diabólica, capaz de alterar os rumos da história:
“Em poucas décadas, o marxismo cultural tornou-se a influência predominante nas universidades, na mídia, no show business e nos meios editoriais do Ocidente. Seus dogmas macabros, vindo sem o rótulo de ‘marxismo’, são imbecilmente aceitos como valores culturais supraideológicos pelas classes empresariais e eclesiásticas (...). Dificilmente se encontrará hoje um romance, um filme, uma peça de teatro, um livro didático onde as crenças do marxismo cultural, no mais das vezes não reconhecidas como tais, não estejam presentes com toda a virulência do seu conteúdo calunioso e perverso”.
Em O imbecil coletivo, a preocupação de Olavo em denunciar a intelligentsia de esquerda, os “intelocratas” da indústria cultural, os militantes progressistas e toda a agenda de transformação social desabrochou em um conjunto eclético de artigos, em que o gosto pela polêmica se fez como eixo central:
“O imbecil coletivo não é, de fato, a mera soma de certo número de imbecis individuais. É, ao contrário, uma coletividade de pessoas de inteligência normal ou mesmo superior que se reúnem movidas pelo desejo comum de imbecilizar-se umas às outras. (...) É claro que estabeleço uma distinção entre os homens letrados em geral e, como foi dito acima, a intelligentsia em especial, atribuindo exclusivamente a esta última a jurisdição do imbecil coletivo”.
Nessa denúncia, Olavo foi especialmente crítico do que ocorria no Brasil:
“Basta uma geração de ‘intelectuais coletivos’ dominar o mundo para que se perca a individualização da consciência, prêmio de um esforço evolutivo milenar. (...) O Brasil é a terra prometida do ‘intelectual coletivo’”.

Apresentando-se ao país como um conservador ilustrado — na linha de José Guilherme Merquior, Paulo Francis e Roberto Campos —, Olavo de Carvalho enganou a muitos. Ao leitor atento, contudo, seus textos sempre evocaram o pensamento vivo de Carlos Imperial:
“Identifique logo a minoria discriminada a que pertence — pois todo mundo pertence a alguma — e exiba-a como um cartão de ingresso: ela dá direito a ser bem recebido nesses círculos (das pessoas maravilhosas). Não venha com essa de que não tem nenhuma. Se você não é preto, nem gay, nem judeu, nem baixinho, nem gordo, nem índio, deve pelo menos ter o peru pequeno”.
Embora teime em fantasiar-se de defensor da alta cultura, Olavo de Carvalho pouco entende do assunto. Vejamos sua opinião sobre o artigo 216 da Constituição Federal, que versa sobre a promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro:
“Os constituintes, tendo incorporado em sessão de macumba o espírito de Margaret Mead, deram vitória aos grafiteiros, atentando que o Brasil não quer educar-se, nem elevar-se moral e espiritualmente, nem mesmo refinar-se esteticamente: quer apenas documentar-se, mostrar-se tal como está e, mandando às favas todo ideal superior, bater no peito como Popeye, num paroxismo de autossatisfação com seu estado presente: I am what I am what I am what I am. Ou, traduzindo em baianês, Eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim: Gabriééla!”.
Olavo parece desconhecer por completo a diferença entre produção cultural efetiva e preservação do patrimônio histórico e artístico, seja ele material ou imaterial. Há que imaginar o desalento, lá no Céu, dos três idealizadores da salvaguarda do patrimônio brasileiro: Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade. Nosso país já produziu gênios desse quilate. Hoje vive à sombra dos carvalhos de Olavo — um intelectual versado na gnose perenialista, mas pouco afeito à salutar interação entre a cultura erudita e a cultura popular:
“Na vertical, porém, Guimarães (Rosa) alcança altitudes e profundidades que estão fora do mundo de (Dorival) Caymmi, e se torna, por isso, universal; qualquer homem, de qualquer nacionalidade, pode ler Guimarães para conhecer-se a si mesmo e não só para conhecer o Brasil; ao passo que em Caymmi a referência local é também o extremo limite de sua significação intelectual”.
Olavo não entende que é tolice separar as duas coisas. Guimarães Rosa nunca teria existido sem o linguajar criativo de Manuelão e a vastíssima cultura do sertão. Do mesmo modo, não teríamos um Villa-Lobos sem o choro carioca ou as modinhas caipiras. Ambos foram universais por saber mergulhar no que havia de melhor na cultura nacional. O que emprestaram de complexidade ao substrato popular merece ser visto como a justa contrapartida pelo que dele receberam em força telúrica. Diz Riobaldo:
“Sou só um sertanejo, nessas ideias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração”.
Olavo também não entende que, em sua disciplina artística, Caymmi chegou ao mais alto nível que se possa imaginar. Foi um gênio da canção popular, como poucas vezes se viu neste planeta Terra. Quanto a sua significação para o mundo, o legado do autor de “O que é que a baiana tem”, “É doce morrer no mar”, “Só louco”, “Saudades de Itapoã”, “Doralice” e “Modinha para Gabriela” nada fica a dever ao de Guimarães Rosa. A obra do mestre baiano é puro espírito e voo existencial. Se Olavo prestasse mais atenção a Caymmi, talvez pudesse reconhecer-se a si mesmo:

“O samba da minha terra deixa a gente mole/Quando se canta, todo mundo bole/Quando se canta, todo mundo bole/Quem não gosta de samba bom sujeito não é/É ruim da cabeça ou é doente do pé”.
Ruim da cabeça ou doente do pé. Assim estava Olavo de Carvalho ao escrever O jardim das aflições. Trata-se de sua “obra-prima”: seu livro de maior fôlego e aquele que melhor sintetiza seu pensamento. Mas é também um volume malsão, uma obra ao negro, de pura alquimia perenialista. Fingindo-se de cristão conservador, Olavo vende ao leitor uma reflexão esotérica sobre a modernidade, com elevado teor de obscurantismo.
“Há uma grande diferença entre o doutrinador que mete simplesmente na cabeça das pessoas uma ideia errada e o feiticeiro que as adoece, debilitando suas inteligências para que nunca mais atinem com a ideia certa.”
A obra começa com um ataque ao filósofo José Américo Motta Pessanha, de virulência jamais vista na história da inteligência brasileira. O pecado de Pessanha era ter feito uma palestra sobre o filósofo grego Epicuro, no ciclo de conferências que a Secretaria Municipal de Cultura, então chefiada por Marilena Chauí, promovera no Museu de Arte de São Paulo, em 1990:
“As frases de Pessanha eram um entorpecente, que entrava pelos ouvidos da plateia, envenenava os cérebros, movia o eixo dos globos oculares, fazendo ver tudo diferente do que era, num giro louco da tela do mundo. Um público de quinhentas pessoas submetera-se à intoxicação com sonsa alegria, numa deliquescência mórbida, como crianças a seguirem um novo flautista de Hamelin”.

Nada do que Olavo diz sobre Pessanha retrata com fidelidade as propostas do filósofo carioca, principal responsável pela série Os pensadores , um marco na história cultural do país. E nada do que diz sobre Epicuro traduz, com precisão, o pensamento deste defensor da vida pacata, na companhia dos amigos e longe dos tumultos do mundo. A filosofia epicurista inspirou o poeta romano Lucrécio, autor do clássico De rerum natura. Vinte séculos mais tarde, deu-nos a canção “Casa no campo”, de Zé Rodrix e Tavito, uma das maiores joias da MPB:
“Eu quero uma casa no campo/Onde eu possa compor muitos rocks rurais/E tenha somente a certeza/Dos amigos do peito e nada mais/Eu quero uma casa no campo/Onde eu possa ficar do tamanho da paz/E tenha somente a certeza/Dos limites do corpo e nada mais”.
É uma proposta materialista, sem dúvida. Ela nos oferece a busca imediata da felicidade terrena. No entanto, esse pacato escapismo, centrado na amizade (philia) e no desapego às glórias do mundo, pode ser também visto como um primeiro passo rumo à proposta cristã de uma vida mais profunda, centrada na caridade (ágape). Acontece que Olavo não busca o diálogo com os epicuristas, e sim um confronto de vida ou morte com seus supostos descendentes: o positivismo cientificista, a esquerda marxista e o relativismo pós-moderno. Ele nunca faz justiça ao que o outro pensa. Seu mais comum estratagema é distorcer as ideias alheias, para depois derrotar o espantalho:
“As ideias, para certas pessoas, não são imagens da realidade: são poções mágicas, de que se servem para enfeitiçar o público e colocá-lo a serviço de fins com que, lúcido e informado, ele não se prestaria a colaborar de maneira alguma. E um feitiço não se discute no plano teórico: um feitiço desfaz-se, mediante a exibição dos chumaços de cabelos e dos retalhos de roupas da vítima, que o feiticeiro, em furtiva incursão, escondeu entre restos de cadáveres”.

Esse é o vodu de Olavo de Carvalho contra seus adversários. Um estratagema especialmente infesto, tendo em vista que Pessanha falecera dois anos antes de O jardim das aflições ser publicado. Olavo tem especial predileção pelo jogo sujo. Acusa os epicuristas de haverem, com seus ataques, forçado Aristóteles a buscar o exílio, sendo que Epicuro era um rapaz de 19 anos quando o Estagirita foi expulso de Atenas, em 323 a.C. Afirma também que Pessanha “já vinha, como editor da série Os pensadores, preparando o terreno para a transformação da filosofia em arma política a serviço de determinados fins”. O disparate é complementado por informações errôneas sobre os 52 volumes da coleção original. Mas nada supera, em vocação para o absurdo, o comentário a seguir:
“A coleção incluía obras que só exerceram influência em círculos bem delimitados, como por exemplo as de (Ludwig) Wittgenstein e Adorno, e omitia outras que produziram verdadeiras revoluções, como as de (Carl Gustav) Jung e René Guénon, que arrombaram as portas do Ocidente para a invasão das ideias orientais. (...) Sem falar, é claro, de Lênin ou (George) Gurdjieff”.
Olavo deve ter confundido a coleção Os pensadores com sua contemporânea, a Biblioteca planeta . Acontece que René Guénon e Gurdjieff nem nos 20 volumes dos clássicos do esoterismo conseguiram entrada: foram considerados bruxos de segunda classe. Desconsolado, o autor de O jardim das aflições coloca toda a culpa no esquerdista falecido:
“José Américo Motta Pessanha mergulhou até o fundo do erro, bebeu até o fim a taça da falsidade universal, com uma espécie de heroísmo do autoengano. Isto fez dele o emblema das dores e da insânia de uma época”.
Finda a diatribe contra os arautos do materialismo epicurista, Olavo dedica-se a vender seu peixe: a gnose perenialista. Seguem-se 90 páginas de uma mistura enjoativa de hermetismo, I Ching, cabala e sufismo, fazendo-se passar por autêntica mística cristã. Tudo isso embalado por um pastiche de história da Igreja Católica, repleto de equívocos, e uma releitura irracionalista da filosofia moderna. Nesse exercício, Olavo apresenta uma distinção enganosa entre gnose (saber esotérico genuíno) e gnosticismo (suposta nostalgia anticristã da religião cósmica), que apenas repete o estratagema de Guénon em O teosofismo: história de uma pseudo-religião (1921), ao propor uma diferenciação artificial entre o esoterismo correto (teosofia) e o esoterismo corrompido pelo evolucionismo (teosofismo).
Uma das marcas de O jardim das aflições está nas paráfrases de textos clássicos do perenialismo. Em especial, Olavo retira seus argumentos de dois livros de René Guénon: O simbolismo da cruz (1931) e A grande tríade (1946). No primeiro, Guénon investe contra o mistério da Encarnação; no segundo, contra o dogma da Trindade. São os dois passos indispensáveis a sua opção pelo esoterismo islâmico. Vejamos este trecho da “obra-prima” de Olavo de Carvalho:
“Para me fazer entender, devo recorrer a um diagrama, onde a vertical simboliza a eternidade e a horizontal a temporalidade, como aliás todo o simbolismo universal da cruz. Na simbologia chinesa, a vertical corresponde a khouen, a ‘perfeição ativa’, ou o princípio metafísico do qual tudo se origina; e o horizontal a khien, a ‘perfeição passiva’ ou manifestação cósmica desse princípio. Note-se que o homem aqui designado é o Homem Universal, molde do cosmos — transcendente ao cosmos, portanto — e não a individualidade empírica. De outro lado, porém, o Homem Universal é a essência mesma da individualidade concreta, da singularidade humana”.
E comparemos com o que Guénon diz em seu libelo anticristão, O simbolismo da cruz. Primeiramente, em respeito aos conceitos de khien (ou Ch’ien) e khouen (ou Ch’uan):
“A concepção inteligível é ‘perfeição ativa’ (Ch’ien), a possibilidade da vontade na Perfeição, e naturalmente da onipotência, que é idêntica ao que se denomina ‘Atividade Celeste”. Mas, de modo a podermos falar sobre ela, a concepção inteligível precisa tornar-se sensível (porque a linguagem, como toda outra expressão externa, pertence necessariamente à ordem sensível); e ela é então ‘perfeição passiva’ (Ch’uan)”.
Em seguida, vejamos o que René Guénon nos diz sobre o conceito de “Homem Universal”:
“A efetiva realização dos múltiplos estados do ser está relacionada à concepção que várias doutrinas tradicionais, incluindo o esoterismo muçulmano, denotam pelo termo ‘Homem Universal’, uma concepção que estabelece uma analogia constitutiva entre a manifestação universal e a modalidade humana individual ou, para usar a linguagem do Hermetismo ocidental, entre o ‘macrocosmo’ e o ‘microcosmo’”.
Em suma: Olavo copiou. Copiou e não citou. Parece também haver trocado as bolas com respeito ao binômio ativo-passivo. Para Olavo, khien é “perfeição passiva”, mas Guénon nos diz que Ch’ien é “perfeição ativa”. Do mesmo modo, para Olavo, khouen é perfeição ativa, porém seu mestre, de quem copiou esses conceitos, assegura que Ch’uan é perfeição passiva.
O constrangimento é ainda maior com respeito ao termo Homem Universal. Como o texto de Guénon deixa claro, estamos diante de um conceito do esoterismo islâmico, que vem diretamente do hermetismo. Algo que nos remete ao homem de Vitrúvio, retratado por Leonardo da Vinci, ou ainda ao arcano do Mago no tarô de Waite-Smith. É o homem divinizado, que reúne em si o macrocosmo e o microcosmo, o transcendente e o imanente. Prossegue Guénon:

“A maioria das doutrinas tradicionais simboliza a realização do ‘Homem Universal’ por um signo que é em toda parte o mesmo, porque (...) está ligado diretamente à Tradição Primordial. Esse signo é o sinal da cruz, que muito claramente representa a maneira de chegar a essa realização por meio de uma perfeita comunhão de todos os estados do ser, dispostos de modo harmonioso e conforme, em expansão integral, no duplo sentido de ‘amplitude’ e de ‘exaltação’”.
No entanto, o próprio Guénon nos explica que nada disso é cristão:
“De acordo com a forma tradicional tardia, ‘Homem Universal’, enquanto representado pelo casal “Adão-Eva’, tem o mesmo número que Allâh, o que pode ser tomado como um meio de expressar a ‘Suprema Identidade’”.
Olavo Mohammed Trismegistus reproduz o resultado dessa mistificação hermético-islâmica, proposta por René Guénon, em três livros: A Nova Era e a revolução cultural (pág. 13), O imbecil coletivo (pág. 30) e O jardim das afliçõe s (pág. 251). É um diagrama em cruz, que sintetiza para o leitor a interpenetração entre a vida espiritual e a vida política.
Obviamente, o bruxo de Richmond nos oferece uma cruz sem Cristo. Uma cruz que ignora os temas do sacrifício e da redenção. Uma cruz que não nos livra de nossas culpas nem nos abre para o amor-caridade. Pelo contrário, Olavo nos oferta uma cruz gnóstica, que nos lança nas trevas do orgulho, da alta magia e da pura vontade de poder. Olavo de Carvalho não é apenas um falso cristão. É uma pedra de tropeço para os leitores que buscam a verdadeira espiritualidade.
A epopeia perenialista de O jardim das aflições prossegue com um percorrido histórico, filosófico e político, em que Olavo de Carvalho denuncia o projeto materialista da modernidade e seu culto ao progresso. Por trás disso, estariam algumas poderosas vertentes espirituais:
“A ideologia progressista muito deve ao ocultismo, à teosofia e ao espiritismo no que tange à aceitação mundial do evolucionismo, já não como simples teoria biológica, mas como explicação geral do cosmos”.
A denúncia aponta, igualmente, para o ressurgimento do Império Romano, como força opressora paganizada, na figura do Império Americano:
“A história do ocidente é marcada pelas sucessivas reencarnações da ideia de Império Romano, culminando no Império Americano (...) um Império que fora criado sob inspiração maçônica, com a ideia de neutralizar as diferenças entre as religiões mediante o recurso do Estado laico”.
Esse novo império tenderia a tornar-se um império mundial, a partir da expansão do poderio americano e da universalização dos valores da revolução americana, a “revolução maçônica”:
“O único lugar do mundo onde os ideais iluministas foram realizados na máxima extensão possível das faculdades humanas foram os Estados Unidos. (...) O nazifascismo e a URSS não foram, dentro do curso maior da História, senão momentos dialeticamente absorvidos na linha perfeitamente nítida de desenvolvimento que leva da Revolução maçônica à mundialização do Estado leigo e à americanização do mundo”.
Junto ao ressurgimento do império, emergiria um novo culto ao imperador, na forma do crescente agigantamento do Estado. Isso adviria da própria dinâmica interna do ideário progressista:

“A dialética do poder do Estado moderno é diabolicamente simples: incentivados a fazer uso de seus direitos, os cidadãos reivindicam mais e mais direitos; os novos direitos, ao serem reconhecidos, transformam-se em leis; as novas leis, para poderem ser aplicadas, requerem a expansão da burocracia fiscal, policial e judiciária; e assim o Estado se torna mais poderoso e opressivo quanto mais se multiplicam as liberdades e direitos humanos”.
Esse projeto de criação de um Estado todo-poderoso, quase divinizado, seria favorecido tanto pela linhagem capitalista-maçônica do culto ao progresso quanto pela falange socialista-revolucionária do “marxismo cultural”. Em ambos os casos, as estruturas tradicionais da sociedade estariam sendo dissolvidas, dando lugar a uma multidão amorfa de indivíduos impotentes:
“A sociedade moderna caminha decisivamente para a destruição desses poderes intermediários e das associações humanas que os sustentam, de modo que o indivíduo fique sem conexões orgânicas em torno, impotente e solitário no oceano do mercado livre, e ligado diretamente ao Estado”.
No entender de Olavo, tudo estaria conspirando no sentido da expansão inexorável do poder do Império Americano, cujas características primordiais seriam o Estado laico e a ideologia maçônica:
“O Estado leigo tem religião, sim. (...) invisível e onipotente, a Religião do Império, perpetuada no culto discreto oficiado por uma nova casta sacerdotal colhida nos escalões superiores da aristocracia maçônica”.
Tudo isso é feito com marcada violência aos fatos históricos e à evolução do pensamento ocidental. Em Olavo de Carvalho, os dados da realidade são revistos e adaptados livremente, para poderem ajustar-se às propostas perenialistas. Também não faltam teorias conspiratórias:
“Como dizia Guénon, o poder é secreto por natureza. (...) Se o leitor acompanhou minha argumentação até aqui, há de ter certamente compreendido o peso imenso que terá, na decisão do destino do mundo, a disputa entre os homens de religião e os homens de governo. Ironicamente, a opinião pública, inclusive letrada, não tem a menor ideia de que se trata do velho conflito de castas”.
Em linha com o esoterismo de René Guénon e Julius Evola, Olavo sustenta que a crise da civilização ocidental deriva da “ruptura entre os Pequenos e os Grandes Mistérios”. Partindo de análise da simbologia maçônica no romance Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister , do poeta alemão Goethe, ele comenta as consequências do progressivo afastamento entre a visão histórico-cósmica (típica da ideologia progressista) e a tradicional busca pela transcendência:
“A extraordinária beleza desta imagem (que Goethe nos oferece) da ordem universal não deve porém fazer-nos esquecer que nela se trata apenas daquilo que se chama de uma iniciação de ‘Pequenos Mistérios’, isto é, a revelação da ordem histórico-cósmica; e que tão logo os Pequenos Mistérios se fazem passar por uma finalidade em si mesmos, se tornam um entrave ao desenvolvimento espiritual do homem, barrando-lhe o acesso aos ‘Grandes Mistérios’ onde a ordem cósmica é transcendida pelo conhecimento do infinito e do divino”.
Olavo então conclui, com um alerta dramático:
“A ruptura entre os Pequenos e os Grandes Mistérios, ocasionando o predomínio unilateral da ideologia prometeica desvinculada de todo contato com o Espírito, representa um corte ao meio do corpo do Homem Universal, a mais dolorosa e trágica experiência espiritual já vivida pelo homem sobre a Terra”.
A completa secularização da vida social e o fortalecimento desmedido do Estado nos levariam, segundo Olavo, a um mergulho na tirania e ao colapso da civilização ocidental:
“A vitória da elite maçônica traz em si os germes de sua própria destruição, na medida em que, quanto mais se laiciza a sociedade, menos coerência, menos credibilidade e menos funcionalidade têm os valores democráticos em nome dos quais essa elite chegou ao poder e governa. O menos inviável dos regimes terminará por inviabilizar-se quando terminar de corroer, em nome da democracia, os princípios religiosos a que a ideia democrática deve toda a sua subsistência”.
Desses perigos, somente os “homens espirituais” poderiam nos salvar, assegura-nos o mago de Richmond. Eles não se confundiriam com a hierarquia de nenhuma igreja, obviamente, pois seriam “filósofos”, de linhagem perenialista:
“O indivíduo que chega à verdade tem, ao proclamá-la, uma autoridade superior à da sociedade, pois fala em nome do universal, absoluto e supraquantitativo, ao passo que a sociedade fala apenas em nome do geral, forma quantitativa e meramente simbólica do universal. (...) O portador da verdade esotérica (...) é o porta-voz de um Deus verdadeiro, do qual aqueles deuses que aparecem no culto público não são senão ecos e imagens distantes”.
Aí está uma perfeita definição de como pensa um gnóstico. Ele acredita que chegou a uma verdade superior e que paira acima da sociedade, à qual deve uma lealdade apenas formal, epidérmica. Olavo esclarece como os homens espirituais poderão nos resgatar da crise da modernidade:

“De acordo com Guénon, a civilização do Ocidente, se não conseguisse reunificar Maçonaria e Cristianismo — Pequenos e Grandes Mistérios —, restaurando o corpo cindido da espiritualidade tradicional, não teria alternativa senão cair na barbárie ou islamizar-se”.
Ele também nos diz onde podemos encontrar esses fabulosos homens espirituais:
“É ainda nos Estados Unidos que se encontra hoje o mais poderoso núcleo de resistência ao avanço do ateísmo oficial (...) a elite espiritual, concentrada em torno de figuras como Seyyed Hossein Nasr — exilado iraniano — Huston Smith, Victor Danner e outros, profundamente influenciada pelo pensamento de Frithjof Schuon, homem espiritual de primeiro plano e inventor do único método válido já concebido para a comparação e aproximação das religiões”.
Bingo. Olavo de Carvalho conclui sua “obra-prima” colocando as esperanças de salvação do decadente mundo ocidental nas mãos da “elite espiritual” perenialista, sob o comando do principal discípulo de René Guénon, Frithjof Schuon (1907-1998), que ainda estava vivo quando O jardim das aflições foi publicado. Sim, o libidinoso Schuon, aquele que confundia as visitas de um súcubo com supostas aparições da Virgem Maria. Homem espiritual de primeiro plano! Sobre intelectuais dessa natureza, alertou-nos Tomás de Kempis, na obra Imitação de Cristo :
“Melhor é, por certo, o humilde camponês que serve a Deus do que o filósofo soberbo que observa o curso dos astros, mas se descuida de si mesmo”.
O pensamento de Olavo de Carvalho é um beco sem saída. Mesmo quando aponta problemas reais na agenda liberal-progressista — a questão do aborto, a tirania do politicamente correto — ou no projeto de poder das esquerdas — o viés antidemocrático, o mergulho na corrupção —, ele o faz motivado por ideias que não representam uma alternativa, mas um retrocesso, uma perigosa ameaça às conquistas da sociedade democrática. O autor de O jardim das aflições é incapaz de dialogar com a modernidade. Tudo cai por terra diante da fúria de Olavo, o demolidor.
Essa sanha destrutiva advém de seus mestres perenialistas. Segundo René Guénon, será preciso implodir o mundo moderno, de modo a encerrar o Kali-Yuga e inaugurar um novo tempo. Eis o que afirma, na conclusão de O reino da quantidade e os sinais dos tempos (1945), sua “obra-prima”:
“Por um lado, se essa manifestação (do fim dos tempos) for tomada simplesmente em si mesma, sem estar relacionada a um todo muito maior, o inteiro processo, do começo ao fim, é claramente uma ‘descida’ progressiva ou ‘degradação’, e isso pode ser chamado de seu aspecto ‘maléfico’. Mas, por outro lado, essa mesma manifestação, quando colocada de volta no todo ao qual pertence, produz resultados que têm um efeito verdadeiramente ‘positivo’ na existência universal. Seu desenvolvimento deve ser levado até o fim, para que inclua o desenrolar das possibilidades inferiores da ‘idade das trevas’, de modo que a ‘integração’ desses resultados seja possível e possa tornar-se o princípio imediato de outro ciclo de manifestação; e isso é o que constitui o seu aspecto propriamente ‘benéfico’”.
É um pensamento mórbido, doentio e fatalista, baseado em visão cíclica da história. Nada disso diz respeito ao cristianismo. O fantasma que informa a gnose perenialista não guarda a menor semelhança com o Espírito que guiou a Constituição pastoral Gaudium et spes. Nesse documento, o Concílio Vaticano II indica como a Igreja deve situar-se diante dos problemas da modernidade:

“O Concílio, testemunhando e expondo a fé do Povo de Deus congregado por Cristo, não pode manifestar mais eloquentemente a sua solidariedade, respeito e amor para com a inteira família humana, na qual está inserido, do que estabelecendo com ela diálogo sobre esses vários problemas, aportando a luz do Evangelho e pondo à disposição do gênero humano as energias salvadoras que a Igreja, conduzida pelo Espírito Santo, recebe do seu Fundador. Trata-se, com efeito, de salvar a pessoa do homem e de restaurar a sociedade humana. Por isso, o homem será o fulcro de toda a nossa exposição — o homem na sua unidade e integridade: corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade”.
Assim pensam e agem os verdadeiros homens espirituais. Com humildade e amor ao próximo. Com respeito ao gênero humano e abertura ao diálogo. Sem ilusões quanto ao mundo da política ou às promessas da modernidade, mas cientes de que Cristo nos chama para ajudarmos a “salvar a pessoa do homem” e “restaurar a sociedade humana”. São mensagens de fé, esperança e caridade — que o leitor jamais encontrará na obra de Olavo de Carvalho.
Até o final dos anos 90, Olavo de Carvalho seguia em voo de cruzeiro sua rota como o mais implacável crítico da esquerda brasileira. Com artigos publicados regularmente em diversos meios de comunicação, participações em debates públicos e aparições na televisão, o autor de O imbecil coletivo (1996) demonstrava haver conquistado a boa vontade dos meios conservadores brasileiros. A entrevista que concedeu a Boris Casoy, em 20 de setembro de 1998, no programa Passando a limpo, registrou seu auge intelectual e psicológico. Diante das câmeras da Record, Olavo se apresentou com distinção: não fumou, não insultou ninguém nem deixou raciocínios incompletos. Seu apelo a teorias conspiratórias mostrou-se contido e a forma como enunciou suas teses centrais foi bem mais comedida do que nos livros que vinha publicando:

“O preconceito é simplesmente um resíduo da burrice humana. Nós não podemos fazer uma lei que proíba a burrice humana, que proíba a covardia, que proíba a maldade interior. É melhor conviver com um pouco de preconceito do que você fazer um super-Estado que, a pretexto de proteger uns contra os outros, oprima a todos igualmente”.
O problema disso, obviamente, está nos diferentes conceitos que a burrice humana tem do que venha a ser “um pouco de preconceito”. Olavo, por exemplo, sempre teve uma concepção infinitamente elástica dessa pouquidade. Longe das câmeras, ele escrevia:
“Os intelectuais de elite — brancos, negros ou mestiços — são culpados de cultivar no povo negro, por oportunismo ou perversidade, ilusões quase demenciais quanto ao valor da cultura afro. A contribuição básica dos negros ao Brasil foi dada através do trabalho escravo (...): foi uma contribuição material, não cultural”.
Ou seja: no país do Carnaval, do samba, do frevo, do jongo, do maracatu, da congada, do afoxé, da capoeira, do bumba meu boi, do maculelê, da Folia de Reis, da feijoada, do vatapá, do acarajé, do caruru, do mungunzá, da malagueta, do quiabo, da couve e do dendê; na pátria de Aleijadinho, de André Rebouças, Luís Gama, José do Patrocínio, Cruz e Souza, Lima Barreto, Caymmi, Pixinguinha, Cartola, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Baden Powell, Agostinho dos Santos, Jorge Benjor, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Tim Maia, Grande Otelo, Milton Gonçalves, Zezé Motta, Mussum, Abdias do Nascimento, Milton Santos, Didi, Garrincha e Pelé — o povo negro prestou apenas uma “contribuição material, não cultural”, pois a isso foi compelido “através do trabalho escravo”. A mais pura metafísica. Assim é Olavo de Carvalho.

“E nada mais confortável para um cara de pau do que poder contar com a sonsa aprovação de uma plateia novata, incapaz de atinar com a extravagância do seu procedimento.”

Na virada do século, tudo mudou para Olavo. Dois fatos marcantes o levaram a rever algumas de suas ideias e opções de vida. O primeiro foi o atentado contra as Torres Gêmeas do World Trade Center, em 11 de setembro 2001, que o confrontou com o lado obscuro do fundamentalismo islâmico. O segundo foi a vitória de Lula nas eleições de 2002, que o colocou à mercê de seus arqui-inimigos:

“A esquerda brasileira — toda ela — é um bando de patifes ambiciosos, amorais, maquiavélicos, mentirosos e absolutamente incapazes de responder por seus atos ante o tribunal de uma consciência que não tem”.

Dizem alguns que Olavo foi jurado de morte pela esquerda radical. A lenda alternativa sustenta que teria sido contratado pela CIA e/ou pelo Mossad. Nada impede que ambas as hipóteses estejam corretas, mas talvez tudo isso não passe de mera fantasia. O fato primário é que Olavo se mudou, em 2003, para os EUA, estabelecendo-se em Richmond, no estado da Virgínia. Protegido pela distância, pôde continuar a filosofar, com a elegância costumeira:

“Para o revolucionário, todo discurso público, sobretudo eleitoral, é apenas utensílio. Utensílio tão provisório, tão descartável quanto uma tira de papel higiênico ou uma camisinha”.

Os fatos secundários nos informam que Olavo conseguiu visto de residência, arrumou uma casa para viver e reuniu os recursos necessários para sustentar a família. Quem já morou no exterior sabe que isso não é fácil nem barato. O mais provável é que tenha sido auxiliado pela rede de intelectuais e comunidades perenialistas nos EUA. Após a morte de Frithjof Schuon, em 1998, os perenialistas americanos ficaram sem uma liderança clara e passaram a atuar no âmbito da nascente ultradireita local, a chamada “alt-right”. Com isso, ampliaram sua influência, ainda que com a mensagem um pouco diluída. Tais circunstâncias fizeram com que Olavo passasse por nova mutação. O perenialismo aberto de suas obras anteriores teve de recuar um pouco, para acomodar os dogmas da direita americana. Temas como a defesa do Estado de Israel, o combate ao terrorismo islâmico, o direito ao porte de armas e a necessidade de reafirmar o poderio dos EUA ante seus rivais infiltraram-se em seu pensamento, mesclando-se ao substrato original. Outros temas, que já trazia de origem, como o repúdio à imigração, a crítica às pautas ecológicas e a aversão ao sistema multilateral, ganharam força ainda maior:

“Há pelo menos dez anos a ONU já declarou oficialmente sua intenção de consolidar-se como administração planetária. (...) A autoridade avassaladora desse projeto constitui hoje a fonte única e central de onde jorram sobre toda a população terráquea legislações uniformes em matéria de indústria, comércio, ecologia, saúde, educação, quotas raciais, desarmamento civil, etc. (...) As únicas resistências que tem encontrado vêm dos EUA e de Israel. Mas os EUA permanecem num constante vaivém entre o desejo de afirmar sua independência contra as pretensões do globalismo e a tentação de tomar as rédeas do processo para conduzi-lo a seu modo”.

Dessa fusão nasceu o Olavo tardio, de títulos como Os EUA e a Nova Ordem Mundial (2012), A filosofia e seu inverso (2012), O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota (2012) e O império mundial da burla (2016). A principal inovação dessa última fase é a hipótese dos três blocos globalistas:

“Embora a interpretação que apresentei sobre a história da ideia de Império em O jardim das aflições esteja correta, ela está incompleta no que diz respeito aos EUA. (...) Eu precisava ampliar o quadro e foi então que me surgiu a teoria dos três blocos globalistas: o anglo-saxônico ocidental, o comunista russo-chinês e o islâmico”.

A nova proposta, em lugar de promover um ajuste na formulação antimoderna de O jardim das aflições , trouxe ainda maior incoerência a uma tese essencialmente problemática. No que era, originalmente, um programa maçônico de universalização dos valores da revolução americana e de criação de um Império mundial, Olavo passa agora a ver o projeto globalista das elites ocidentais, pós-cristãs e alienadas de suas raízes nacionais. Onde antes estava o socialismo derrotado, com grupos de intelectuais e ativistas de esquerda tentando acoplar-se ao projeto maçônico, ele passa a ver um ressurgimento do comunismo, sob a batuta dos serviços secretos da Rússia e da China. Para completar, eleva o atual caos político, social e cultural do Oriente Médio ao status de “bloco globalista”:

“O esquema russo-chinês privilegia o ponto de vista geopolítico e militar, o ocidental o ponto de vista econômico, o islâmico a disputa de religiões. (...) Assim, pela primeira vez na história do mundo, as três modalidades essenciais do poder — político-militar, econômico e religioso — encontram-se personificadas em blocos supranacionais distintos, cada qual com seus planos de dominação mundial e seus modos de ação peculiares”.

A proposta subordina uma versão simplificada da tese de Samuel P. Huntington, em O choque das civilizações (1996), ao perenialismo de René Guénon e Julius Evola. Assim, Olavo cria seu próprio Cérbero globalista: um formidável monstro de três cabeças, disposto a arrastar o mundo para as profundezas do Tártaro. No bloco islâmico, ele projeta suas fantasias sobre a “casta sacerdotal”. No bloco russo-chinês, vislumbra a prevalência da “casta guerreira”. No bloco ocidental, enxerga o domínio da “casta mercantil”, com sua ideologia histórico-cósmica, típica da iniciação maçônica nos pequenos mistérios, conforme se viu na análise de O jardim das aflições . Esse ajuste da realidade do século XXI a uma visão delirante do funcionamento das sociedades humanas apresenta inúmeros problemas.

De um modo um tanto arbitrário, Olavo passa por cima das complexas e conflitivas relações no interior dos três grandes projetos globais. No bloco ocidental, ignora as rivalidades e diferentes perspectivas dos subgrupos anglo-saxão, germânico, latino-mediterrâneo e eslavo, além de fazer pouco-caso das especificidades dos países latino-americanos e do Extremo Oriente. Trata tudo de forma monolítica e determinista, sem espaço para as perspectivas nacionais ou para o debate no interior de cada sociedade específica. Ao indivíduo autônomo, dotado de livre-arbítrio e consciência moral, resta apenas escolher entre ser conduzido pelas forças do globalismo ou juntar-se ao projeto perenialista de uma resistência antimoderna. É uma visão de mundo maniqueísta em sua essência.

No bloco islâmico, Olavo novamente comete o erro de ver uma unidade de propósitos artificial. Numa penada, passa por cima das contradições de um conjunto heterogêneo de 50 países. Ignora as enormes diferenças econômicas, geográficas, históricas e culturais entre países árabes e não árabes, países da África Subsaariana e do Levante, do Magrebe e do Golfo, da Ásia Central e do Sudeste Asiático. Desconsidera também as rivalidades milenares entre sunitas e xiitas, bem como o interesse específico de potências regionais, como Nigéria, Egito, Arábia Saudita, Turquia, Irã, Paquistão e Indonésia. Além disso, coloca seitas obscuras, grupos insurgentes e facções terroristas no mesmo plano que Estados nacionais.

No bloco eurasiano, Olavo passa a borracha nos acontecimentos posteriores à perestroika e à queda do Muro de Berlim. Toma também como irrelevantes as transformações ocorridas na China desde a abertura econômica promovida por Deng Xiaoping. Ele não concebe que os últimos 40 anos possam ter propiciado o ressurgimento das vocações imperiais da Rússia e da China, projetos milenares de poder, para os quais as décadas vermelhas não passaram de um breve interregno. Olavo não entende o cesaropapismo da Igreja Ortodoxa russa e sua natural parceria com o regime de Vladimir Putin. Não aceita, igualmente, as evidências de reconstrução da burocracia imperial chinesa, com sua tradicional visão confuciana, por sobre a estrutura formal do partido comunista. Pelo contrário, confunde o autoritarismo atávico desses antigos impérios com a persistência das vertentes leninista e maoista do comunismo.

Olavo teme a expansão do globalismo marxista, fechando os olhos para a inevitável colisão do interesse nacional russo com o interesse nacional chinês. Isso sem falar nas perspectivas europeia, ucraniana, cazaque, indiana, japonesa, coreana, turca, iraniana, paquistanesa e dos países da Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean, na sigla em inglês), que parecem haver sido deletadas dos devaneios perenialistas sobre o projeto “eurasiano”. O xadrez geopolítico euroasiático nunca foi simples. Qualquer projeto imperial sempre haverá de criar resistências a sua implantação. Voltasse a ler Dom Casmurro , Olavo veria que as ambições hegemônicas russas não foram concebidas pela KGB e que a resistência a elas vem de longe. Eis um trecho do episódio em que Bentinho se envolve em caloroso debate com o jovem Manduca sobre a Guerra da Crimeia:

“Fui sempre um tanto moscovita nas minhas ideias. Defendi o direito da Rússia, Manduca fez o mesmo com o dos aliados, e o terceiro domingo em que entrei na loja tocamos outra vez no assunto. Então Manduca propôs que trocássemos a argumentação por escrito, e na terça ou quarta-feira recebi duas folhas de papel contendo a exposição e defesa do direito dos aliados, e da integridade da Turquia, concluindo por esta frase profética: ‘Os russos não hão de entrar em Constantinopla!’”.

Seria Machado de Assis um agente do Kremlin, um intelocrata na folha de pagamentos do Comintern, um adepto do marxismo cultural avant la lettre? Ou, quem sabe, um propagandista maçom, um criptoteosofista, respondendo aos comandos de superiores desconhecidos? Melhor estaremos se enxergarmos em Olavo um bisneto de Quincas Borba, ou melhor, seu arquirrival. Ao vencedor do globalismo humanitista, as batatas!

“O projeto do governo mundial é originariamente comunista, e os grupos econômicos ocidentais que se deixaram seduzir pela ideia, esperando tirar proveito dela, sempre acabam financiando movimentos comunistas ao mesmo tempo que expandiam globalmente seus próprios negócios. (...) Nos anos 70 e 80, a globalização parecia favorecer os EUA, mas, na década seguinte, ela tomou o rumo bem claro de uma articulação mundial antiamericana e, por tabela, anti-israelense. (...) Lutando contra a mera possibilidade teórica de um domínio mundial americano, as nações de cretinos tudo cedem ante uma ditadura global já praticamente vitoriosa no presente”.

Olavo parece sentir saudades do Império maçônico-americano, tão criticado em O jardim das aflições , diante da perspectiva de um globalismo ainda mais agressivo. Mas essa é apenas a camada superficial de sua proposta. Em um plano mais profundo, ele mescla sua recém-adquirida subserviência ao nacionalismo ianque ao velho fatalismo da “lei de regressão de castas”, formulada pelo mitógrafo perenialista e ideólogo fascista Julius Evola. Vejamos, primeiramente, este trecho de Olavo:

“Se o sistema medieval havia durado dez séculos, o absolutismo não durou mais de três. Menos ainda durará o reinado da burguesia liberal. Um século de liberdade econômica e política é suficiente para tornar alguns capitalistas tão formidavelmente ricos que eles já não querem submeter-se às veleidades do mercado que os enriqueceu. Querem controlá-lo e os instrumentos para isso são três: o domínio do Estado, para a implantação das políticas estatistas necessárias à eternização do oligopólio; o estímulo aos movimentos socialistas e comunistas que invariavelmente favorecem o crescimento do poder estatal; e a arregimentação de um exército de intelectuais que preparem a opinião pública para dizer adeus às liberdades burguesas e entrar alegremente num mundo de repressão onipresente e obsedante (...), apresentado como um paraíso adornado ao mesmo tempo com a abundância do capitalismo e a ‘justiça social’ do comunismo”.

Comparemos agora as ideias de Olavo com o que Julius Evola diz na edição revista de Revolta contra o mundo moderno , publicada em 1969, na qual incorpora suas reflexões sobre a Guerra Fria:

“Em sua aliança com a União Soviética, concebida para derrubar os poderes do Eixo, e ao perseverarem em seu radicalismo insensato, os poderes democráticos repetiram o erro daqueles que pensam poder utilizar, com impunidade e para seus próprios fins, as forças da subversão. Ao seguir essa lógica fatal, ignoraram o fato de que, quando dois diferentes graus de subversão se encontram ou colidem, aquele correspondente ao mais elevado grau irá eventualmente prevalecer. Em realidade, podemos ver claramente agora (...) que a ‘cruzada democrática’ fora concebida apenas como um estádio preparatório para os planos globais do comunismo”.

Novamente, tomemos nota do que Julius Evola diz em seu livro Homens entre ruínas (1953), no qual reflete sobre o mundo que começava a emergir após a Segunda Guerra Mundial:

“Consideremos a lei de regressão de castas, que empreguei como ferramenta hermenêutica em Revolta contra o mundo moderno, de modo a avaliar o significado efetivo da história. De uma civilização comandada por líderes espirituais e pela realeza sagrada, uma mudança ocorreu nas civilizações, sob a liderança das aristocracias guerreiras; estas, por sua vez, foram eventualmente substituídas pela civilização do Terceiro Estado. O último estágio é o da civilização coletivista do Quarto Estado”.

A semelhança com o pensamento político de Olavo de Carvalho é inegável e perturbadora. Vejamos como Julius Evola conclui seu raciocínio:

“Esta fase, o ciclo da civilização democrática e capitalista do Terceiro Estado, dará lugar eventualmente à última fase, a fase coletivista, para a qual inadvertidamente abriu caminho. É lógico, portanto, que o papel de força condutora central da subversão global, neste último período, não seja mais desempenhado pelo judaísmo ou pela maçonaria, e que a principal corrente se volte contra esses dois grupos, como se fossem resíduos a serem liquidados de uma vez por todas; afinal, isto já pode ser visto nos países em que regimes marxistas controlados pelo Quarto Estado estão começando a se consolidar”.

Seguindo os passos de Julius Evola, Olavo acredita que o globalismo ocidental — guiado pela agenda iluminista da maçonaria e pelo cego interesse das elites financeiras, de quem o“judeu errante” George Soros é o protótipo — tenderá, inexoravelmente, a sucumbir diante da ferocidade revolucionária. No seu entender, os projetos de governo mundial da elite ocidental e dos burocratas da ONU pavimentariam o caminho para o advento do comunismo globalista. Ele supõe, por conseguinte, que uma confrontação entre os dois blocos seja iminente, na disputa pela hegemonia na cena internacional:

“A Guerra Fria foi, em grande parte, puro fingimento: a elite ocidental concorria com o comunismo sem nada fazer para destruí-lo. Ao contrário, ajudava-o substancialmente. Putin não é um concorrente: é um inimigo de verdade, cheio de rancor e sonhos de vingança. A verdadeira Guerra Fria só agora está começando, e aliás já veio quente. A concorrência entre ‘capitalismo’ e ‘socialismo’ foi um véu ideológico para uso das multidões, mas a luta entre Oriente e Ocidente é para valer. Não por coincidência, o fiel da balança é o Oriente Médio, a meio caminho entre os dois blocos”.

Olavo retém pouquíssimos elementos da tese original de Huntington, preferindo tomar o rumo das teorias conspiratórias e da “lei de regressão de castas”. Vejamos como explicou sua fantasia perenialista, no debate que travou com Aleksandr Dugin, em Os EUA e a Nova Ordem Mundial (2012):

“O Consórcio é a organização de grandes capitalistas e banqueiros internacionais, empenhados em instaurar uma ditadura mundial socialista. (...) O Consórcio formou-se há mais de cem anos, por iniciativa dos Rothschild, uma família multipolar, com ramificações na Inglaterra, na França e na Alemanha desde o século XVIII pelo menos. O Consórcio reúne algumas centenas de famílias bilionárias para a consecução de planos globais que assegurem a continuidade e expansão do seu poder sobre todo o orbe terrestre. São planos de longuíssimo prazo. (...) O Consórcio é uma organização dinástica, cuja continuidade de ação é assegurada pela sucessão de pais a filhos, desde há muitas gerações”.

Nesse vertiginoso delírio paranoide, muitos fios estão soltos. No esquema de Olavo não existe lugar para as grandes fortunas que desaparecem em duas ou três gerações, sem deixar vestígios; tampouco para as novas fortunas, que surgem a reboque de revoluções tecnológicas e inovações empresariais. Tivesse lido Joseph Schumpeter e outros economistas da escola austríaca, seria mais atento à constante transformação da base produtiva e dos mecanismos financeiros das economias capitalistas. Mas Olavo prefere o alarmismo psicótico das simplificações conspiratórias:

“O Consórcio atua por meio de uma multiplicidade de organizações subsidiárias espalhadas pelo mundo todo, como por exemplo o Grupo Bilderberg ou o Council on Foreign Relations, mas não tem ele próprio uma identidade jurídica. Isso é uma condição essencial para a sua atuação no mundo, permitindo-lhes comandar inumeráveis processos políticos, econômicos, culturais e militares sem poder jamais ser responsabilizado diretamente pelos resultados. (...) Toda bibliografia existente sobre o Consórcio atesta que o objetivo dele é a instauração de uma ditadura socialista mundial”.

Uma bibliografia que ninguém leva a sério, vale recordar. Olavo desdenha da constante renovação das forças políticas nas democracias ocidentais, assim como da notória subordinação das iniciativas multilaterais aos interesses dos Estados nacionais. Outros fatores que deixa de lado são o peso da opinião pública nos processos decisórios; o papel desempenhado pelas tradições culturais e religiosas; a pluralidade dos meios de comunicação; e a reflexão no interior de instituições acadêmicas e think tanks, numa rede cuja complexidade supera em muito o alcance de entidades como o grupo Bilderberg e o Council on Foreign Relations, editor da revista Foreign Affairs .

Igualmente notória é a incapacidade de Olavo de demonstrar por que a elite capitalista mundial deseja tanto conduzir-nos a uma ditadura socialista. Nesse esforço, ele lança mão de argumentos que lembram as surradíssimas teorias sobre o capitalismo monopolista de Estado. Segundo diversos autores, todos eles marxistas, de Lênin a Chomsky, passando pelos inevitáveis Baran & Sweezy, os capitalistas precisariam de Estados fortes e crescentemente autoritários para assegurar seus lucros e sua tendência a formar oligopólios e monopólios. Tudo isso já foi refutado, seja no plano acadêmico, seja pela própria realidade, nas últimas décadas do século XX.

Olavo sustenta, no entanto, que os ardilosos comunistas estariam controlando todo o processo, por baixo das barbas dos capitalistas gananciosos e decadentes. No Oriente, eles se valeriam de estratégias violentas de tomada e manutenção do poder. No Ocidente, teriam optado por “métodos graduais e incruentos, usando o próprio aparato jurídico-político da sociedade burguesa”:

“Nas áreas onde fosse possível tomar o poder pela violência, a ditadura era a única via admissível; nos demais países, era preciso promover a ascensão progressiva do controle estatal da economia, sem fazer do Estado o proprietário legal dos meios de produção, o que o tornaria sujeito a responsabilidades jurídicas e cobranças que poderiam retardar e obstaculizar a própria caminhada rumo ao socialismo”.

Cegado por sua fé perenialista e pela assídua leitura da mais baixa literatura conspiratória, Olavo ignora o caráter imprevisível da mudança nas sociedades democráticas abertas. No campo das ciências exatas, a teoria do caos nos ensina que sistemas complexos e dinâmicos apresentam um fenômeno fundamental de instabilidade que os torna, na prática, não previsíveis a longo prazo. Assim ocorre também na vida das sociedades, para horror das ideologias de extrema-esquerda e extrema-direita. Todo determinismo só funciona como análise do passado, em geral com o auxílio de doses insalubres de revisionismo histórico. Em termos de sua clarividência sobre o futuro, as hipóteses mecanicistas costumam ser humilhadas pela criatividade dos homens e pelos caprichos da Providência.

A obscura visão de mundo de Olavo de Carvalho nos remete às invenções conspiratórias de uma obra anônima, publicada na Rússia czarista do começo do século XX e difundida no Ocidente durante o conturbado período do entre-guerras: Os protocolos dos sábios do Sião (1903). No Brasil, o livro foi lançado em 1936, com tradução do acadêmico e ideólogo integralista Gustavo Barroso. Eis o que Julius Evola, guru de Olavo, nos ensina sobre os Protocolos em sua obra Homens entre ruínas (1953):

“Há um documento interessante conhecido como Os protocolos dos sábios do Sião (...) Este escrito é parte de um grupo de textos que, de diversos modos (mais ou menos fantásticos e, por vezes, até ficcionais), expressaram o sentimento de que a desordem dos tempos recentes não é acidental, mas corresponde a um plano, cujas fases e instrumentos fundamentais estão descritos com precisão nos Protocolos”.

Como se sabe, esse livro apócrifo, contendo protocolos supostamente subtraídos de uma organização secreta judaico-maçônica, contribuiu imensamente para a eclosão do surto antissemita do entre-guerras e sua mais trágica consequência, o Holocausto. Evola resume o tal plano secreto:

“As ideologias primárias responsáveis pela desordem moderna não surgiram espontaneamente, mas foram evocadas e apoiadas por forças que sabiam de sua falsidade e tinham em mente apenas o seu efeito destrutivo e desmoralizante. Isto se aplicaria às ideias democráticas e liberais; o Terceiro Estado foi propositadamente mobilizado para destruir a anterior sociedade feudal e aristocrática, ao passo que, numa segunda fase, os trabalhadores foram mobilizados para minar o domínio da burguesia. Outra ideia básica dos Protocolos é que, apesar de tudo, as internacionais capitalista e proletária estão de acordo, sendo duas colunas com ideias distintas, mas que atuam em uníssono no plano tático para chegar à mesma estratégia”.

Compreende o leitor que Olavo de Carvalho tem utilizado o mesmo raciocínio ao longo de toda a sua obra? De um lado, temos a denúncia de uma suposta aliança entre PSDB (capitalista) e PT (socialista), para repartir o poder e pavimentar o caminho da revolução comunista no Brasil. De outro lado, temos o alerta sobre uma imaginária atuação conjunta dos globalismos anglo-saxão (capitalista) e russo-chinês (socialista), com vistas a implantar o comunismo planetário. Vejamos, então, como Julius Evola conclui seu resumo do plano maligno:

“Entre outras coisas, menciona-se o sucesso que esse front secreto obteve não apenas com o marxismo, mas também com o darwinismo e o niilismo nietzschiano. Os Protocolos por vezes encorajam a difusão do antissemitismo, enquanto em outros casos fazem menção ao monopólio da imprensa e da mídia nos países democráticos, assim como o poder de paralisar ou destruir os mais prestigiosos bancos. Este poder concentra a riqueza desenraizada em poucas mãos, e por meio dela controla povos, partidos e governos. Um dos principais objetivos é remover o apoio que os valores espirituais e tradicionais conferem à personalidade humana, sabendo que, quando isso é conseguido, não é difícil tornar o homem um instrumento passivo das forças diretas e influências do front secreto”.

Mais uma vez, encontramos aos borbotões elementos centrais na obra de Olavo de Carvalho. Suas alterações na formulação original são meramente cosméticas. Em lugar de uma conspiração judaico-maçônica, ele nos oferece uma conspiração maçônico-gramsciana, adaptada ao clima político atual e às peculiaridades de quem depende de um visto de permanência nos EUA. De resto, o próprio Julius Evola descarta como um “óbvio exagero” o antissemitismo do texto original:

“A despeito do fato de que muitos judeus estão entre os apóstolos das principais ideologias vistas pelos Protocolos como instrumentos da subversão global (i.e. liberalismo, socialismo, cientificismo e racionalismo), também é evidente que essas ideias não teriam nunca surgido e triunfado sem antecedentes históricos, como a Reforma, o Humanismo, o naturalismo e o individualismo da Renascença, e a filosofia de Descartes”.

Exatamente o que Olavo sustenta em O jardim das aflições . Para arrematar o raciocínio, nada como recorrer aos textos do mago de Richmond. Vejamos esta pérola, saída de O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota :

“As notícias, na quase totalidade da mídia, já não são selecionadas por nenhum critério de importância objetiva, mas pelo serviço que prestem à programação mental das multidões, de modo a fazê-las aceitar passivamente mudanças drásticas que em condições normais suscitariam explosões de ódio e revolta. A supressão e a manipulação tornaram-se gerais e sistemáticas, a ponto de atentar diariamente contra a dignidade da inteligência humana e de transformar os mecanismos eleitorais da democracia num mero jogo de aparências”.

Obviamente, é tudo uma grande conspiração. A mídia malvada está toda na mão dos judeus-maçons, quer dizer, dos maçons-gramscianos. Ou talvez dos metacapitalistas controlados pela KGB, alguma coisa assim. Roberto Marinho muito possivelmente era agente secreto do Comintern. E Silvio Santos um descendente oculto da maléfica família Rothschild. Ou talvez não, vá lá saber. Vejamos outra esmeralda filosófica, na qual o mago de Richmond revela sua capacidade de perscrutar os planos mais ocultos das principais organizações secretas do planeta:

“Pelo menos algumas organizações secretas devem ser realmente secretas, o que significa que nem mesmo se parecem com organizações. Por exemplo, os acordos discretos entre famílias arquipoderosas, os pactos informais entre megaempresários, o juramento de obediência de um fiel islâmico a um sheikh que ninguém de fora conhece, as seções mais interiores dos serviços de inteligência (ignorados até pela massa de seus servidores oficiais), as esferas mais altas e reservadas de algumas sociedades ocultistas, as conexões discretas entre organizações criminosas e entidades legalmente constituídas: nada disso tem sequer um nome, nada disso é propriamente uma ‘organização’ ou ‘entidade’, mas um pouco de estudo basta para mostrar que aí estão as fontes invisíveis de muitas decisões históricas, frequentemente catastróficas”.

A conclusão é inevitável: foi Olavo quem escreveu os Protocolos dos sábios do Sião . Mistério solucionado, após mais de um século de especulações sobre sua autoria. Talvez alguns racionalistas ainda teimem em sustentar que um autor nascido no Brasil, em 1947, não poderia ter escrito um texto publicado na Rússia em 1903. A explicação é elementar: sua certidão de nascimento é mais falsa que a de Barack Obama. Sendo Olavo um prodigioso astrólogo, alguém que conhece a história do princípio ao fim, com toda certeza nasceu há dez mil anos atrás.




Epílogo: Olavo no poder

Em um reino distante, há muitos e muitos anos, um valoroso filósofo, guardião da alta cultura e último sobrevivente da tradição ameaçada, foi obrigado a refugiar-se nas florestas do Império do norte, onde resistiu bravamente, durante 16 anos, até que, enfim, liderou as forças da liberdade, salvando o reino encantado do apocalipse zumbi e inaugurando uma nova era de paz e prosperidade. Só que não é bem esse o enredo do Brasil atual.

Sim, Olavo resistiu. Durante quatro mandatos, foi o mais ácido crítico de tudo que ocorria no país e no mundo. Valendo-se da tribuna da internet, investiu contra o mandarinato petista, contra a corrupção da Nova República, contra o governo Obama, contra o globalismo de três cabeças e contra todos os sinais de crise da modernidade. No processo, arrebanhou toda uma legião de seguidores. Não obstante, três problemas básicos se colocam.

Em primeiro lugar, a pregação de Olavo de Carvalho não liberta ninguém. Tampouco conduz a uma saudável religiosidade. O que Olavo tem feito em seus cursos se assemelha à terapia do grito primal. Ele se fantasia de filósofo-taumaturgo, alega defender a tradição metafísica e começa a incutir em seus alunos a repulsa por tudo que caracteriza a modernidade. Exagerando os problemas da atualidade e estabelecendo nexos causais onde não existem, xinga com gosto e sem qualquer pudor, demonizando seus adversários reais e imaginários. Com isso, desperta em seus aprendizes os mesmos sentimentos que a ele mesmo atormentam, as mesmas paixões mórbidas que o dominam há décadas.

Desses mistérios dionisíacos on-line, saem as hordas de olavetes, qual mênades em êxtase, brandindo seus tirsos e preconceitos, denunciando 32 conspirações ao dia e entupindo de memes belicosos as redes sociais. Tudo isso em nome do combate ao globalismo opressor. As aulas de Olavo são uma escola do ódio. E o ódio escraviza, corroendo a alma de quem o cultiva. Diante dessa cólera compulsiva, vêm à lembrança as palavras de Jesus Cristo:

“O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração. Mas o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, pois sua boca fala do que seu coração está cheio” (Lucas 6: 45).

A incompatibilidade do credo de Olavo de Carvalho com a fé cristã é patente. Ele se apresenta como o portador de um conhecimento esotérico superior, mas não passa de um adepto particularmente grosseiro da mais abismal gnose ocultista. Muitos de seus alunos o imitam nessa má-fé e saem por aí gritando: “ Deus vult! ”, apenas para legitimar suas pautas políticas, enquanto se esquecem de ir à missa, frequentar os sacramentos e seguir os mais básicos preceitos da ética cristã. Igualmente triste é ver olavetes atacando com ferocidade a hierarquia da Igreja, sem prestar a devida atenção aos mandamentos do respeito filial e do amor ao próximo. Acaso algum discípulo de Olavo já meditou sobre a parábola do fariseu e do publicano, já pensou em retirar a trave que está diante de seus próprios olhos antes de acusar a farpa no olho do irmão? Nunca.

O segundo problema, igualmente grave, está no fato de que Olavo investe contra tudo e contra todos, indiscriminadamente. Ele vê conspirações globalistas nas medidas antitabagistas, nas campanhas de vacinação, na proteção do meio ambiente, na defesa dos direitos das minorias, na valorização da mulher, no acolhimento aos migrantes e no combate aos maus-tratos de animais, entre outros temas.

“Para impor a obrigatoriedade da vacinação, o governo americano e a OMS promoveram uma campanha alarmista, com forte apoio de jornais, TVs, universidades, instituições científicas e artistas de Hollywood, exagerando brutalmente os riscos da gripe suína. Agora, que as vacinas estão matando muito mais gente do que a própria gripe, a mídia e as autoridades se calam ominosamente, mostrando que não estão interessadas na saúde do público, mas em proteger os autores de uma fraude genocida.”

Mais um para a lista dos marxistas culturais, avant la lettre: o médico e sanitarista Oswaldo Cruz, agora suspeito de haver integrado a folha de pagamentos dos avós de George Soros. Para Olavo de Carvalho, é tudo ou nada. Não há espaço para o diálogo entre diferentes grupos sociais ou para o discernimento de cada indivíduo. Alguém que seja contra a legalização do aborto, mas queira defender a Mata Atlântica e os oceanos, só pode ser um imbecil; alguém que coloque seus filhos no ensino religioso, mas se recuse a abraçar a causa armamentista, é tachado de traidor.

“Nos anos 1950, grupos globalistas bilionários — os metacapitalistas, como os chamo, (...) tomaram a iniciativa de contratar algumas dezenas de intelectuais de primeira ordem para que escolhessem a vítima das vítimas. (...) Depois de conjeturar várias hipóteses, os estudiosos chegaram à conclusão de que ninguém se recusaria a lutar em favor da Terra, da mãe natureza. Foi a partir de então que os subsídios começaram a jorrar para os bolsos dos ecologistas. (...) O salvacionismo planetário é o maior engodo científico de todos os tempos.”

Essa fúria paranoide com frequência se volta contra os intelectuais, jornalistas e ativistas de inclinação conservadora ou liberal. Como típico elemento de extrema-direita, Olavo é incapaz de respeitar as regras do convívio respeitoso. Quem não concorda com seus métodos, leva chumbo. Que o digam Marco Antônio Villa, Rodrigo Constantino e Reinaldo Azevedo. Olavo envenena o campo conservador, além de alienar todo o centro. Sua verve doentia tem um vitriol corrosivo, que apequena o espírito:


Igualmente sintomática é a frequência com que Olavo investe contra o vice-presidente da República. A seus olhos, o general Mourão encarna o laicismo iluminista da Maçonaria e o positivismo desenvolvimentista do Exército Brasileiro. O mago de Richmond gostaria de varrer do mapa essas duas tradições, que obstaculizam a plena implementação de seus devaneios perenialistas no Brasil. Mourão é uma pedra no sapato dos entusiastas tupiniquins do “fascismo cultural”:

O terceiro e maior problema está na chegada de Olavo de Carvalho ao poder. Um pensador com ideias extravagantes e linguajar grosseiro é incômodo, porém esse tipo de esquisitice faz parte de um ambiente plural, com ampla liberdade de expressão. No embate propriamente intelectual, quem não concorda com suas postulações pode simplesmente refutá-lo. Com um pouco de paciência, qualquer estudante universitário encontrará as fragilidades de sua obra.

Bem mais difícil será enfrentar Olavo na sua qualidade de ideólogo do novo governo. Não resta dúvida de que ele foi uma das figuras centrais da vitória eleitoral de outubro de 2018. Sua crítica ao establishment da Nova República e suas legiões de seguidores nas redes sociais ajudaram a pavimentar o caminho para a vitória da coalizão de centro-direita que elegeu Jair Bolsonaro. No combate à candidatura petista, seus exageros monumentais e o jogo sujo de sua tropa de choque foram convenientes pesticidas. O problema está agora em fazer do veneno o prato principal, trazendo para dentro do governo uma turma que só se sente em casa no campo de batalhas. E, como ensina o mestre:

“Para o fanático, só há um objetivo autêntico: as metas do seu partido ou seita”.

Olavo de Carvalho é incapaz de conviver em um ambiente democrático. Derrotada a esquerda, ele irá, inexoravelmente, partir para o embate com o centro liberal e a direita moderada. Buscará radicalizar a agenda do governo, atacando os setores que não se curvem a suas propostas; fomentará um confronto com o Legislativo, dificultando a aprovação da pauta reformista; e jogará a fúria de seus seguidores contra os segmentos legalistas do Judiciário. Ao final, dirá que a repartição dos Poderes é um instrumento do establishment. Como na fábula O sapo e o escorpião , aplicará seu ferrão venenoso sobre o anfíbio benevolente que acreditou que poderia ajudá-lo a atravessar o rio:

“Esta é a minha natureza, meu amigo sapo. E eu não posso mudá-la”.

Já de início, Olavo abocanhou duas posições estratégicas no novo governo: o Itamaraty e o MEC. A comparação é inevitável com o ocorrido durante o Estado Novo. Ao tornar-se ditador, Getulio Vargas teve o bom senso de colocar no MEC o ilustrado Gustavo Capanema e, no Itamaraty, o liberal Osvaldo Aranha. Eram homens cosmopolitas e honrados, que sabiam dialogar com a sociedade brasileira e com o mundo. Capanema protegeu os “marxistas culturais” da época e gestou no MEC alguns dos principais elementos que floresceriam no grande auge cultural brasileiro, de 1945 a 1975. Aranha, por sua vez, construiu no Itamaraty uma fortaleza contra o ideário integralista, logrando inserir o Brasil na aliança “globalista” de combate aos poderes do Eixo.

O atual governo, constrangido por sua dívida eleitoral com Olavo de Carvalho, decidiu fazer o contrário disso. Colocou Plínio Salgado no MEC e Gustavo Barroso no Itamaraty. As consequências vieram a galope. Na última segunda-feira, após incontáveis crises no MEC, o governo demitiu o titular da pasta, apenas para colocar em seu lugar outro Plínio-olavista, ainda mais salgado. Não vai dar certo. Não há como dar certo. O vitriol do mago de Richmond destruirá tudo aquilo em que tocar:

“As universidades tornaram-se instrumentos do crime organizado, empenhados em tapar bocas, paralisar consciências, destruir talentos, perverter vocações, secar todas as fontes de uma restauração possível e, é claro, gastar dinheiro público. Custam caro e só servem para o mal”.

Não há diálogo possível com um pensamento assim. Com um dos maiores orçamentos da República nas mãos da brigada demolidora olavista, o desastre será inevitável. E a guerra ideológica que se anuncia causará imensos danos ao país.

“O profeta do engano também se engana: ele imagina trazer ao mundo a sabedoria, quando traz o obscurecimento e a confusão. Imagina trazer uma nova profecia, quando traz o cumprimento de uma velha maldição.”

A catástrofe deverá igualmente rondar a política externa do novo governo. Foi colocado no Itamaraty um jovem discípulo de Olavo de Carvalho, sem experiência de chefia de missão no exterior, empenhado em subverter a hierarquia da carreira diplomática e fazer terra arrasada das tradições diplomáticas brasileiras. Seu artigo “Trump e o Ocidente” é uma peça alarmante. Nesse texto, Ernesto Araújo projeta sobre o atual ocupante da Casa Branca o pensamento do estrategista político Steve Bannon, um dos expoentes da chamada “alt-right”, a ultradireita americana. Como se sabe, Bannon foi afastado da administração Trump pouco após o discurso de Varsóvia, que escreveu para o presidente. Araújo faz de conta que ele continua a dar as cartas. O motivo é óbvio: Bannon, tal como Olavo, é ligado à escola perenialista de René Guénon e Julius Evola.

“Para tentar entender Trump em Varsóvia convém ler, além de Spengler e Onfray, também o mestre tradicionalista René Guénon (importante influência de Steve Bannon, ex-estrategista-chefe da Casa Branca e ainda central no movimento que levou Trump à presidência). Guénon, escrevendo nos anos 1920, acredita que o Ocidente moderno havia-se (sic) distanciado completamente da ‘tradição’ (o núcleo espiritual de todas as civilizações e que se manifesta diferentemente, mas de forma coerente em cada uma delas), tornando-se um poço de materialismo e ignorância, cujo único princípio é a negação de qualquer espiritualidade. (...) É impossível não ouvir ecos guénonianos no Trump de Varsóvia.”

O artigo do atual chanceler é pródigo em mistificações gnósticas, revisionismo histórico e manipulações da verdade. Ao criticar as tendências materialistas que estariam a destruir o Ocidente, Araújo vê no discurso de Varsóvia um apelo à formação de uma coalizão de nacionalismos pró-Ocidente. Esse Eixo antiglobalista teria como missão defender a tradição ocidental, supostamente iniciada no confronto das cidades gregas contra o Império Persa. O diplomata cita Ésquilo, mas pensa com a cabeça de Frank Miller e Zack Snyder, em sua releitura anacrônica da saga de Leônidas e os 300 de Esparta. Após tecer loas ao nacionalismo de Trump, ele se queixa de que a esquerda chama todo mundo de “fascista”:

“Essas expressões de Trump parecerão a muitos, no mínimo, manifestações de mau gosto, a outros parecerão laivos de fascismo. Sim, vivemos em um mundo onde falar dos heróis, dos ancestrais, da alma e da nação, da família e de Deus é, para grande parte da ideologia dominante, uma indicação de comportamento fascista. (...) Os capangas de Stálin, os de Mao Tsé-tung e os de Pol Pot também chamavam tudo de fascista: ter um livro era fascista, amar os pais ou os filhos era fascista, venerar os símbolos tradicionais era fascista”.

Essas generalizações apressadas da esquerda, de fato, ocorrem. E costumam ser contraproducentes. Quando todos são fascistas, os gritos de alerta perdem credibilidade. Desse modo, como na fábula de “O pastor mentiroso”, um dia o lobo vem e pega a cidade de surpresa. Tal é o caso de Ernesto Araújo. Em resposta a possíveis acusações de que sua visão do nacionalismo seria ‘fascista’, ele nos oferece um menu de pensadores em que pululam os simpatizantes do nazifascismo.

Seus elogios ao pensamento de Oswald Spengler, por exemplo, contam apenas uma parte da verdade. O autor dos dois volumes de O declínio do Ocidente (1918 e 1922) foi um dos principais ideólogos do fascismo. Desprezava a democracia liberal, assim como a influência da cultura “magiana” (originária do Levante), que teria enfraquecido a alma “faustiana” da cultura ocidental. Como solução para o declínio dos países europeus, propunha o “Cesarismo”: governos personalistas e autoritários, cujo líder servisse como catalisador da tradição, injetando renovado vigor na cultura. Spengler foi um admirador de Mussolini. Suas ideias serviram também de esteio ao nazismo, embora ele mesmo se tenha dissociado, em 1934, do antissemitismo. Eis o quadro enganoso que Araújo nos apresenta:

“O pensamento de Spengler e a corrente de pessimismo ocidentalista que ele inaugura, há que dizê-lo, nada tem de racista como tantas vezes se apregoa. Spengler não despreza ou odeia as outras civilizações ou os povos não ocidentais. Apenas sustenta que a vida de cada ser humano só faz sentido dentro de uma determinada civilização, de uma comunidade cultural ou — poderíamos acrescentar aqui — dentro de uma nação”.

O logro continua nas referências a Heidegger e Jung, que reforçam os aspectos mistificadores e supostamente nacionalistas do pensamento desses intelectuais, cujo inegável brilho estará para sempre maculado por sua colaboração com o nazismo. Porém, a prova definitiva das más intenções do diplomata, o verdadeiro batom nas suas ceroulas de renda, está nesta citação:

“O patriotismo pertence, portanto, à essência do Ocidente. Não foi pensado pelos filósofos, foi sentido pelos homens diante do perigo da morte — e não esqueçamos que, para os que conhecem a ‘metafísica da guerra’ conforme a expressão de Julius Evola, o grito que nasce no peito de um homem na hora da batalha é sagrado, não provém dele, mas lhe é inspirado pelo deus (sic).”

Este sim é um “perigoso segredo de família, cuidadosamente guardado”. Julius Evola: mitógrafo e ocultista italiano, ideólogo do regime de Mussolini; homem que colaborou com a SS de Hitler; editor da revista Il Regime Fascista ; autor de Revolta contra o mundo moderno (1934), onde propõe a “teoria da regressão de castas”; de O mistério do Graal (1937), em que substitui o cálice da última ceia pela “pedra luciferiana”; de Homens entre ruínas , onde faz a crítica do nazifascismo, para lançar o neofascismo; e de Metafísica do sexo (1958), obra na qual prega a subordinação da mulher e o retorno à poligamia. A coletânea de artigos Metafísica da guerra (1996), a que Araújo faz referência, reúne textos escritos entre 1935 e 1950, todos eles de elogio ao fascismo e à vocação guerreira da raça ariana. Nesse volume, pode-se ler:

“O mais alto instrumento para o despertar interior da raça é o combate, e a guerra é sua mais alta expressão. Que o pacifismo e o humanitarismo são fenômenos ligados de perto ao internacionalismo, à democracia, ao cosmopolitanismo e ao liberalismo, isso é perfeitamente lógico — o mesmo instinto antirracial presente em alguns é refletido e confirmado nos outros (...) A indignação do judeu humanitário [Emil] Ludwig, que se tornou o belicoso propagador da ‘nova Santa Aliança’ contra o Fascismo, é impotente contra o que é verdadeiro em considerações deste tipo. Se a próxima guerra mundial for uma ‘guerra total’ ela também significará um ‘teste total’ das forças raciais sobreviventes do mundo moderno. Sem dúvida, algumas raças irão colapsar, enquanto outras irão despertar e levantar-se. Catástrofes indizíveis poderão inclusive ser o preço — elevado, porém necessário — de cumes heroicos e de novas liberações de forças primordiais entorpecidas por séculos cinzentos. Esta é condição fatal para a criação de qualquer mundo novo, e é esse mundo novo que buscamos para o futuro”.

Eis a metapolítica do perenialismo: uma metafísica do racismo e do genocídio, uma incontida vontade de poder, travestida de busca espiritual e romantismo heroico. Esse é o lixo intelectual com que Ernesto Araújo espera salvar o Ocidente. Sua recente afirmação de que o nazismo seria um “movimento de esquerda” não é fruto de eventual ignorância histórica e sociológica, mas nasce da necessidade imperiosa que tem o atual chanceler brasileiro de ocultar sua própria filiação ao “fascismo cultural” perenialista. Deve-se reconhecer, no entanto, que os artigos do ambicioso diplomata meramente reproduzem o pensamento de Olavo de Carvalho. Não há nada de original em “Trump e o Ocidente”, assim como não há nada de autêntico em seus textos mais recentes. Araújo escreve o que lhe foi ensinado. Após evocar o “Deus de Trump”, sai-se com esta pérola sobre a política externa brasileira:

“Assim também, ao lado de uma política externa, o Brasil necessita de uma metapolítica externa, para que possamos situar-nos e atuar naquele plano cultural-espiritual em que, muito mais do que no plano do comércio ou da estratégia diplomático-militar, estão-se definindo os destinos do mundo. Destinos que precisaríamos estudar, não só do ponto de vista da geopolítica, mas também de uma teopolítica”.

A teopolítica de Araújo não passa de uma bel-política, uma visão delirante das relações internacionais, nascida de sua devoção a um Baal das profundezas. Essa psicose obscurantista vem diretamente de Olavo de Carvalho. Ao que parece, os escolhidos para ingressar no círculo mais íntimo do mago de Richmond passam por uma lavagem cerebral, na qual são iniciados nos mistérios perenialistas de René Guénon e Julius Evola. Em seguida, põem-se a repetir mecanicamente os ensinamentos do mestre e a promover o culto de sua personalidade. É um comportamento típico de seitas ocultistas. Com o tempo, a verdade virá à tona:

“Pois nada há de oculto que não venha a ser manifesto, e nada em segredo que não venha à luz do dia” (Marcos 4: 22).

Elevado ao posto de ideólogo do novo governo, Olavo de Carvalho talvez hoje se imagine um misto do que o profeta Samuel representou para o Reino de Israel; e Aristóteles, para a expansão da Macedônia. A realidade nos indica que estamos diante de algo bem mais sombrio. Olavo anseia por um governo autoritário, de cunho personalista, que imprima marcha à ré na modernidade. Quer atrelar o interesse nacional brasileiro a um projeto temerário de Eixo antiglobalista e comandar uma Blitzkrieg anticomunista na América Latina, sem qualquer apoio em cálculos estratégicos minimamente realistas. Quer um regime de força, em que ele e seus discípulos operem como “casta sacerdotal” e exerçam tutela sobre a “casta guerreira” policial-militar. Não quer, note-se bem, um retorno ao nazifascismo dos anos 30, com seu apelo às massas e sua política econômica estatizante, que considera traços “coletivistas”. Mas quer um renovado despotismo, pautado pelas fantasias esotéricas da escola perenialista. O nome desse pesadelo é neofascismo. Deus nos livre da gnose obscura de Olavo, o demolidor.

Artigo originalmente publicado na Revista Época

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