Guilherme Werneck
Ondas revivalistas acometem de tempos em tempos tanto a música popular quanto a erudita*. É um movimento natural. Querer agradar é da essência humana, e o caminho mais fácil para dar prazer ao maior número de pessoas ao mesmo tempo é evitar o risco. Daí o yin-yang entre conservadorismo e radicalismo em todo e qualquer campo das artes.
Porém, desde que comecei a gostar de música, a ouvir com atenção e estudar, nunca senti uma sensação tão grande de estagnação, de estar preso ao passado. Mesmo quando o artista tira a rede de segurança e se arrisca, o fio sobre o qual ele anda já foi pisado pelo menos um bom par de vezes por outros intrépidos equilibristas.
Essas pessoas são as que tratam o passado com respeito e criatividade. Pior é ter de conviver a todo minuto com a sobreposição mais comercial dos diferentes revivals dos mais diversos estilos. Todos ocorrendo simultaneamente em cenas underground e mainstream. Enfim, são as cópias das cópias que pululam nesta nossa redoma de naftalina.
A impressão é de que vivemos hoje no futuro imaginado por gerações anteriores e perdemos a perspectiva de nossas próprias utopias. Isso tem me intrigado mais do que qualquer outra coisa. Estamos revolvendo o passado, reciclando, copiando e recombinando por que? O que fez com que abandonássemos a vontade de olhar para a frente? Em que medida viver num presente perpétuo ancorado no passado gera uma espécie de disfunção narcotizante?
*odeio esse termo, acho pernóstico, mas é mais correto do que a inexatidão de “música clássica” e mais comunicativo do que composição moderna, meu preferido. Embora, no fundo, não haja mais razão suficiente para essa separação, a não ser mercadológica, mas isso é tema para outro post.
Tenho algumas hipóteses para responder a essas perguntas e pretendo apresentá-las em partes aqui no blog. Algumas são mais filosóficas, como a perda da noção de futuro como principal motor de inovação. Outras são bem práticas e factuais, como a falta de inovação genuína nos meios para fazer música e a mudança drástica que a internet, com seus 15 anos de vida comercial, imprimiu na distribuição e no consumo de música.
Este primeiro post olha para a questão do futuro, que vem sendo levantada de forma pontual na imprensa especializada há algum tempo. Ela aparece tanto no ótimo Fear of Music, livro de David Stubbs do ano passado que investiga a razão pela qual a arte moderna vingou no gosto popular e a música moderna não, e em dois livros recentes de Simon Reynolds, a coletânea de artigos Bring the noise e o estudo sobre o pós-punk Rip it up and start again. Os dois críticos, que começaram a escrever nos semanários ingleses de música nos anos 80 e orientaram suas carreiras perseguindo novidades, mostram-se intrigados com o fato de o futuro ter saído da pauta, depois de ser o principal motor do século XX.
A revolução do século XX
Indiscutivelmente, por trás da revolução vertiginosa pela qual passou a música ocidental no século passado havia uma constante: a idealização do futuro, ancorada em utopias na primeira metade do século e em distopias cada vez mais apocalípticas conforme os anos 1900 vão chegando ao fim.
Do trítono dissonante introduzido por Richard Strauss em sua ópera Salome no fim do século XIX – marco do começo da modernidade como coloca Alex Ross em o Resto É Ruído – até o baixo sintetizado e retorcido da Roland 303, que colocou em marcha a revolução musical e comportamental da eletrônica, a idealização do futuro se materializa de duas formas.
A primeira é a busca da originalidade, da inovação, de arriscar novas maneiras de expressão artística, usando os meios existentes ou, na falta deles, criando novos. Exemplos disso são a dissonância na música erudita, as notas fora de registro dos jazzistas, o diálogo dos compositores modernos com a cultura popular e suas escalas não temperadas, o uso do silêncio, dos gravadores de rolo para fazer colagens, as gravações de campo, as instalações sonoras, os happenings, a criação dos sintetizadores, a eletrificação dos instrumentos, o uso do ruído, do sampler e dos softwares de produção e edição musical.
O futuro como ideia
A segunda é menos palpável do que a primeira, e precisei de mais do que ter um par de ouvidos para percebê-la. É um desejo de interferir diretamente no futuro como ideia. Os três principais movimentos artísticos com impacto na música no começo do século XX, como descreve Stubbs, são o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo. Os três, cada um à sua maneira, são projeções futuristas, construções utópicas para lidar com um presente opressor. Aí vale tanto a utopia de um mundo mecanizado e ordenado, no caso do futurismo, quanto o escapismo perante a opressão da guerra e dos regimes fascistas que informam o dadaísmo e o surrealismo. Um ouvinte atento percebe que esse balanço entre escapismo e construção pragmática do futuro perpassa toda a criação inovadora do século XX.
Dos três ismos, dois acabaram tendo mais impacto na música. O absurdo dos dadaístas está refletido na obra dos criadores mais inquietos com a própria ideia de música, e aí talvez os melhores exemplos sejam John Cage e o grupo Fluxus. O futurismo, por sua vez, deu uma das peças fundamentais da rebeldia musical: o manifesto A arte do ruído, do italiano Luigi Russolo. O texto futurista pode ser considerado uma fonte tanto para o uso do ruído na obra de um inovador como La Monte Young, quanto para toda a cena de noise na música popular, numa linha que vai do álbum Metal Machine Music, de Lou Reed, passa por Swans, Whitehouse e Merzbow nos anos 1980, até desembocar nessa leva contemporânea global de bandas como Wolf Eyes e afins.
É fácil traçar essas conexões. Menos óbvia, contudo, é a relação entre música e ideologia, e como ela se mostra fundamental na construção do conceito de progresso e de projeção futurista que atravessa todo o século XX. Quando os EUA entravam na grande depressão, a música modernista de compositores como Aaron Copland trazia dois componentes claros: a afirmação do homem norte-americano e o desejo de transformar essa potência individualista – talvez o traço mais marcante da cultura do país – em um coletivo social, um sonho expresso como ingênua propaganda.
Na Alemanha, os compositores de vanguarda que não foram presos e mortos, acabaram forçados pelo nazismo a deixar seu país. Essa arte no exílio, produzida em grande parte nas universidades norte-americanas, é também essencialmente política e futurista. A permanência nos EUA de grandes mestres da composição como Arnold Schönberg foi fundamental para polinizar o ideal de um futuro da música evolutivo e não-melódico. E a música, aí, também se transforma em resposta ao terror e à opressão.
O mesmo ocorre na União Soviética de Stalin. Enquanto o governo tentava forjar uma música popular e populista, alguns dos principais compositores soviéticos, como o ambíguo Shostakovich, faziam oposição pelas brechas, sonhando com uma liberdade futura.
Mesmo quando as coisas derretem definitivamente depois da Segunda Guerra, e os artistas passam a experimentar com colagens, serialismo, eletrônica, eletro-acústica, happenings e notações próprias, há por trás dessas grandes inovações estéticas um jogo de forças criativo e político. França, Itália e Alemanha são os berços da eletrônica moderna. O estúdio-laboratório no sul da Alemanha onde Stockhausen criou suas primeiras obras foi financiado com dinheiro do Plano Marshall. Grupos experimentais italianos também eram financiados indiretamente com dinheiro norte-americano. Há, por baixo da benevolência e do cultivo de uma arte de ponta e abstrata, o desejo de lançar uma cortina de fumaça no passado. Para mim está claro que, pelo menos no caso da Alemanha, essa névoa tinha a função de embaçar o ideal estético wagneriano.
O pop toma a dianteira
As engrenagens da Guerra Fria são fundamentais para manter esse fio de tensão por quase toda a segunda metade do século XX. Tensão que só aumenta quando a música popular passa a ser tão desafiadora quanto a erudita, a partir da polinização cruzada que explode nos anos 1960.
Claro que essa tensão já aparece antes. Está no cheiro de jazz usado por Gershwin, nas notas fora do registro do bebop de Charlie Parker e Dizzy Gillespie, só para lembrar de casos notórios. Mas vejo algumas mudanças fundamentais nos anos 1960. As inovações do pós-guerra produziram uma música incômoda para a maior parte do público, esvaziando a importância popular do compositor erudito. Apesar disso, essas criações herméticas ganham o grande público através da música pop. Ela aparece no som dos Beatles, no do Velvet Underground e, sub-repticiamente, faz-se ouvir nas salas de cinema e na TV. É filtrada pela cultura pop que a música moderna volta aos ouvidos populares, mas a conexão não é óbvia.
Além disso, todo o marketing da juventude, construído nos anos 50, torna-se absolutamente dominante nos anos 1960. E, enquanto o rock soterra o jazz e a música clássica nas prateleiras das lojas de discos, ele não deixa de beber nas duas fontes. Não à toa, esse rock mais radical, produzido de 1967 em diante, tem uma agudeza que casa com as revoluções políticas e comportamentais do fim da década. Quando aspira ao novo e busca os meios para inovar nas fontes modernas, torna-se naturalmente uma música capaz de expandir consciências e inocular visões subversivas do futuro.
Vejo esse movimento sempre como uma batalha entre transgressores e conservadores. O que não vejo, nesta época, é nenhuma das manifestações artísticas dos dois grupos ancoradas apenas no passado. Na linha da transgressão, temos o escapismo do jazz de vanguarda dos anos 60 – as viagens de ficção científica de Sun Ra, a religiosidade de John Coltrane, os jogos intelectuais de Cecil Taylor –, o escapismo psicodélico pós-Sgt. Peppers, e o mundo místico do nascente hard rock, que vai desembocar no universo de RPG do heavy metal. Todos esses movimentos são confrontados com as visões mais conservadoras, mas igualmente transformadoras, da música folk e de protesto. Mesmo quando Bob Dylan vai buscar inspiração em Leadbelly ou nas gravações da Folkways, o discurso que ele cria é absolutamente contemporâneo e tem a intenção de transformar o futuro.
A mesma coisa acontece nos anos 1970, com o escapismo masturbatório do rock progressivo e o hedonismo da disco. Está até, de certa maneira, no pragmatismo do “No-Future” do punk, apesar das claras contradições políticas do movimento. Não dá para esquecer de que se há no punk um fetiche pela estética do choque, responsável pela volta, de forma absolutamente cretina, da simbologia nazi-fascista, há também toda a luta por igualdade de direitos e miscigenação racial defendida por punks esclarecidos, como os integrantes do Clash. E, da forma como entendo, o “No-Future” não é um pedido de volta ao passado, é antes parte fundamental de uma visão distópica do futuro, uma vontade de rebelar-se contra o presente e encontrar algo melhor em outro lugar, mesmo que isso pareça improvável.
No pós-punk, época em que comecei a gostar de música para valer, tudo fica ainda mais confuso. A experimentação de todo o tipo, que marca as diferentes ondas do pós-punk, tem claramente um subtexto apocalípitico. A visão de fim de mundo é alimentada pelo medo da bomba, pela chegada ao poder de regimes conservadores (Thatcher na Inglaterra, Reagan nos EUA), por uma atração pelo mundo deformado dos escritos de Ballard. O futuro, mesmo torto e apocalíptico, parece melhor do que o presente da Guerra Fria e as condições sociais na Europa e nos Estados Unidos. É melhor sonhar, mesmo que se tenha apenas pesadelos.
O mais interessante nessa época é que discurso e prática se tornam indissociáveis. Basta pensar no dadaísmo da no wave, no futurismo de quadrinhos da new wave, na poesia concreta das primeiras bandas industriais e, pensando grande, no nascimento do hip hop. Sons e palavras harmonicamente dissociados, alargando as fronteiras da música pop para além do imaginável. Para mim, aí está o clímax desse pensamento de futuro.
Fim das utopias?
A queda do muro de Berlim marca o começo do fim dessa tradição de inovação que foi fundamental para me orientar a tentar sempre descobrir a coisa mais nova e diferente na arte. O fim da polarização entre socialismo e capitalismo, que desemboca na construção do presente perpétuo homogeneizante da globalização, acaba matando os sonhos de futuro pouco a pouco.
A última tensão realmente criativa, quase o último suspiro dessa época de inovação, vem da música eletrônica, nas suas mais diferentes variantes. Não só pela mudança comportamental que a acompanhou. Foi a última vez que tivemos novas ferramentas de produção musical a serviço de uma febre utópica. Ainda que seja uma utopia vazia, do corpo, sensorial, hedonista. A música eletrônica foi tão forte como linguagem que conseguiu até penetrar a carapaça do rock. O que é o pós-rock senão a testosterona roqueira grávida de beats e texturas?
Foi nos anos 1990 que tivemos a última grande oposição estilística. A eletrônica de um lado e o rock conservador de outro – de forma direta como no britpop ou travestido de novidade, como no grunge. A partir daí, há muita criação (pense em um Radiohead ou numa Björk) mas pouca inovação. Como me disse Simon Reynolds em uma entrevista em 2004, a inovação só virá se surgir uma nova tecnologia ou uma nova droga. Como elas não chegaram, estamos presos no futuro do pretérito.
Pop hipnagógico e assombrologia
Por incrível que pareça, para mim, o que surgiu de mais interessante nos últimos dois anos foram estilos que se conformaram com a ideia de estar preso ao passado. Um movimento interessante nesta época em que o colecionismo frenético toma o lugar do tempo para morar, entender e ser transformado por uma visão artística. Uma série de artistas bastante interessantes, que revolvem o passado com os olhos de hoje, são agrupados sob dois novos termos: pop hipnagógico e assombrologia (tradução mais corrente para a palavra hauntology, cunhada por Jacques Derrida em Espectros de Marx).
O pop hipnagógico bebe no pop mais comercial dos anos 1980 e na new age (daí a sonolência embutida no rótulo) para fazer uma música que oscila entre o kitch e o sublime.
Já a assombrologia trata da apropriação do passado como linguagem e fonte ao mesmo tempo, trabalhando a história da música dentro das não-fronteiras fantasmagóricas. É uma analogia à proposição de Derrida de que, a partir da queda do Muro de Berlim e da derrocada dos regimes socialistas, a assombrologia toma o lugar da ontologia de Marx. Os ideais socialistas se mantêm difusos. Os novos pensadores têm de negociar também com os fantasmas de Marx. A utopia está dilacerada, e temos de nos contentar em tentar encontrá-la em manifestações do além-túmulo. Na música, isso se dá com a apropriação, remodelagem e reconstrução de velhas ideias, traçando novas rotas e caminhos.
Obviamente, tanto o pop hipnagógico quanto a assombrologia dão conta apenas de uma porção mais desafiadora da música de hoje, feita por gente como Oneohtrix Point Never, Pocahaunted (que infleizmente acabou neste ano), as quinhentas mil encarnações musicais de James Ferraro, The Focus Group, The Advisory Circle e Ariel Pink, só para citar alguns. Além deles, uma infinidade de músicos criativos fazem trabalhos brilhantes, mas não consigo nomear, de cara, nenhum inovador genuíno, ninguém que direcione seu olhar para o futuro, para a utopia, para o inexplorado.
Mas sou otimista, alguma coisa nova vai surgir para nos tirar dessa visão de presente perpétuo. Há de ter um caminho para trazer de volta a utopia. Por mais que seja confortável viver hoje com tudo à mão, de graça, às toneladas, ainda prefiro ser soterrado por uma ideia nova do que ter de rolar morro abaixo, desenfreado, catando cacos numa avalanche de velhas ideias.
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