Não adianta
pensar no mundo como sendo dividido entre imbecis e não imbecis ou, se achar
melhor, entre trolls e vítimas.
Cada um de
nós tem um troll interior. Antigamente, antes de todo mundo fazer isso, era
mais fácil notar como é bizarro quando seu troll interior se manifesta. É como
se um alienígena horrível — do qual você havia esquecido há muito tempo —
vivesse dentro de você. Não deixe seu troll interior assumir o controle! Se
isso sempre acontece em uma situação específica, evite essa situação! Não
importa se é uma plataforma on-line, um relacionamento ou um trabalho. Seu
caráter é como sua saúde, mais valioso do que qualquer coisa que se possa comprar.
Não o jogue fora.
Isso é um
problema tão comum que deve ser um lance profundo,
primitivo,
uma tragédia de nossa herança, um defeito estúpido no cerne da condição humana.
Mas dizer isso não nos leva a lugar nenhum. O que é exatamente o troll interior?
Primeiro de
tudo, às vezes o troll interior assume o controle, às vezes não. A hipótese em
que trabalho há muito tempo é a de que existe um interruptor no fundo de cada
personalidade humana que pode ser ligado em dois modos.
Somos como
os lobos. Podemos ser solitários ou fazer parte de uma alcateia. Por isso chamo
esse mecanismo de interruptor Solitário/Alcateia. Somos mais livres na condição
de lobos solitários. Somos cautelosos, mas também capazes de ter mais alegria.
Pensamos por nós mesmos, improvisamos, criamos. Vasculhamos, caçamos e nos
escondemos. Uivamos de vez em quando por pura exuberância.
Por outro
lado, quando integramos uma alcateia, as interações com o outro se tornam a
coisa mais importante do mundo. Não sei até que ponto isso acontece com os
lobos, mas entre as pessoas é uma situação drástica. Quando estão fechadas em
uma estrutura de poder competitiva, hierárquica, como uma corporação, as
pessoas podem perder de vista a realidade daquilo que estão fazendo, porque a
luta imediata pelo poder assume um vulto maior do que a própria realidade.
O exemplo
que assume o maior vulto hoje é a negação das mudanças
climáticas.
Na comunidade científica e entre praticamente todas as nações do mundo, existe
o consenso de que devemos confrontar as alterações do clima, e ainda assim um
grupo pequeno, mas poderoso, de empresários e políticos não concorda. Eles
encaram a ciência a respeito da mudança climática como uma trama para atacar
sua riqueza e seu poder. É uma ideia absurda, uma insensatez que só é possível
quando estamos fechados em uma compreensão do mundo que só leva em conta as
lutas de poder, excluindo a realidade mais ampla.
Para uma
criatura do mundo técnico, é reconfortante destacar um exemplo como esse,
porque ele nos livra de suspeita, mas comunidades científicas também podem
sofrer com o interruptor posicionado no modo Alcateia. Por exemplo, o físico
Lee Smolin documentou o modo como teóricos das cordas exerceram um domínio
coletivo durante algum tempo no mundo da física teórica. O padrão é
encontrado sempre que pessoas formam grupos.
Gangues de
rua se valem apenas de conceitos de alcateia, como
territorialidade
e vingança, mesmo que estes destruam suas vidas, famílias e bairros. O modo
Alcateia do interruptor faz você prestar tanta atenção nos colegas e inimigos
no mundo de alcateias que isso o impede de ver o que está acontecendo na sua
frente.
Quando o
interruptor Solitário/Alcateia é posicionado em Alcateia,
ficamos
obcecados por uma hierarquia social, que passa a nos controlar.
Agredimos aqueles
que estão abaixo de nós, com medo de sermos rebaixados, e ao mesmo tempo
fazemos o possível para bajular e criticar aqueles que estão acima. Nossos
colegas oscilam entre “aliado” e “inimigo” tão rapidamente que deixamos de
percebê-los como indivíduos. Eles se transformam em arquétipos de uma revista
em quadrinhos. A única base constante de amizade acaba sendo um antagonismo
compartilhado em relação a outras alcateias.
Sim, vou
misturar metáforas de animais. Claro, acho que um gato
“domesticado”
moderno é mais parecido com um lobo solitário do que com um integrante de
alcateia, embora os gatos também se preocupem muito com estruturas sociais
hierárquicas. Talvez os gatos tenham um interruptor de Orgulho, e viver com
humanos tenha lhes dado a liberdade de diminuir a importância dos orgulhos.
Quanto mais rico o território de caça, mais fácil é não ser um imbecil com os
colegas. Passar a morar com humanos pode ter sido para os gatos o que a
tecnologia avançada tem sido para a gente. Mais opções significam mais chances
de não ser um troll. Pelo menos é isso que a tecnologia avançada geralmente tem
significado no panorama mais amplo da história humana. A Bummer é uma exceção
infeliz, uma maneira de usar a tecnologia para reduzir a liberdade humana.
O interruptor
das pessoas deve ser mantido no modo Lobo Solitário.
Quando as
pessoas atuam como lobos solitários, cada indivíduo tem acesso a informações
ligeiramente diferentes sobre o mundo, e maneiras ligeiramente diferentes de
refletir sobre essas informações. Venho falando sobre a relação entre a posição
Solitário e o caráter pessoal, mas há outros motivos para manter o interruptor
nessa configuração.
Considere
uma demonstração que é feita com frequência no primeiro dia de aula de uma
escola de administração: um professor mostra à turma um grande pote de jujubas
e pede a cada um que estime o número total de balas.
A média de
todas as estimativas geralmente resulta em uma cifra bastante precisa. Cada
pessoa traz diferentes perspectivas, estilos cognitivos, habilidades e
estratégias para resolver a charada, e a média chega a uma conformidade entre
tudo isso. (A demonstração só funciona para respostas de um único número. Se
você pede a uma comissão que crie um produto ou escreva um romance, o resultado
sai como algo feito por uma comissão.)
Agora
imagine que os estudantes só possam olhar para o pote por meio de fotos em um
feed de alguma rede social. Diferentes grupos de pessoas com ideias divergentes
sobre o número de balas se formariam e ridicularizariam uns aos outros.
Serviços de inteligência russos postariam fotos de potes semelhantes com uma
quantidade diferente de balas. Defensores das jujubas motivariam trolls a
argumentar que não há balas suficientes e que é preciso comprar mais. E assim
por diante. Já não haveria uma maneira de adivinhar o número de jujubas porque
o poder da diversidade teria sido comprometido.
Quando isso
acontece, os mercados já não são capazes de oferecer utilidade ao mundo.
Você pode
substituir o pote de balas por um candidato às eleições, um produto ou qualquer
outra coisa. Mas isso cria problemas que abordarei nos argumentos sobre como a
Bummer destrói nosso acesso à verdade e ao significado.
Por ora,
pense no pote desse exemplo como se fosse sua identidade,
conforme
ela é apresentada nas redes sociais. Sua identidade é posta no modo Alcateia
pela Bummer. Colocando-se ali, você está se apagando. Enquanto estiverem
pensando por si mesmas, as pessoas adivinharão coletivamente o número de
jujubas no pote, mas isso não funcionará se elas estiverem em uma alcateia e
presas em uma identidade de grupo.
Há
situações que demandam o interruptor no modo Alcateia. Unidades militares são o
exemplo principal. Às vezes, as pessoas precisam se entregar a uma ordem
hierárquica porque essa é a única maneira de sobreviver. Mas diminuir ao máximo
esses momentos deveria ser um dos objetivos primordiais da civilização.
O
capitalismo fracassa quando o interruptor está em modo Alcateia. Essa posição
provoca bolhas e outras falhas de mercado. Certamente há empresários falastrões
que preferem usar metáforas militares nos negócios; espera-se que você seja
firme e implacável. Mas, como o modo Alcateia também o deixa parcialmente cego,
a longo prazo esse tipo de personalidade não é bom para os negócios, se
definimos negócios como sendo a realidade para além das competições sociais.
Ao agir
como lobo solitário, cada pessoa está em uma posição única na sociedade e pensa
de maneira exclusiva. Outro exemplo: eleições democráticas são uma mistura
genuína de ideias e historicamente têm ajudado sociedades a encontrar caminhos
para seguir adiante apesar das controvérsias, mas somente se as pessoas forem
postas no modo Solitário. A democracia fracassa quando o interruptor é
posicionado em Alcateia. Votações tribais, cultos à personalidade e
autoritarismo são as políticas do modo Alcateia.
De início
pode parecer uma contradição, mas não é; processos coletivos fazem mais
sentido quando os participantes agem como indivíduos.
Você pode ler o livro
inteiro aqui
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