sexta-feira, 26 de julho de 2019

Então você quer ser chef


Então você quer ser chef
por Anthony Bourdain

Um Bloody Valentine para o mundo da comida e as pessoas que cozinham.


Frequentemente sou perguntado por aspirantes a cozinheiros, entusiastas, jovens sonhadores e velhos também, atraídos pela tentação de fazer uma cebola lentamente derretida com barriga de porco caramelizada, ou algum ou algum maluco da Food Network, se eles deveriam ir para um curso de gastronomia. Eu costumo dar uma resposta longa, pensativa e qualificada.
Mas a resposta curta é não!
Deixe-me te fazer poupar algum dinheiro. Eu estive no ramo de restaurante há vinte oito anos - boa parte como empregador. Sou formado na mais cara e melhor escola de gastronomia dos Estados Unidos, a The Culinary Institute of America, e sou também um visitante assíduo e palestrante em outras escolas de gastronomia. Nos últimos nove anos, conheci e ouvi muitos estudantes em minhas viagens, observei-os encontrarem triunfos e decepções. Eu vi sonhos serem realizados e, com muito mais frequência, vi o sonho morrer.
Não me entenda mal. Não estou dizendo que escola de gastronomia é algo ruim. Certamente não é. Eu estou dizendo que você, lendo isto, agora, provavelmente seria mal orientado. Receberia conselhos ruins e levaria uma vida inadequada. Particularmente se você é um tipo comum.
Mas digamos que você esteja determinado. Você está planejando fazer um empréstimo estudantil e assumir uma enorme dívida. Em muitos casos, de credores associados ou recomendados por sua escola de gastronomia local. Primeiro pergunte a si mesmo: esta escola de gastronomia é boa? Se você não estiver indo para a The Culinary Institute of America, Johnson & Wales University ou para International Culinary Center, você deve olhar esse assunto com mais atenção, porque o fato é: quando você se formar no Colégio Técnico de Artes Gastronômicas em algum bairro perto da sua casa, as pessoas que contratam nos grandes restaurantes cagarão para você. Uma formação nas melhores escolas de gastronomia não é garantia de um bom trabalho. Um diploma de qualquer lugar que não seja uma grande escola será menos útil do que a experiência que você poderia adquirir já trabalhando em algum lugar durante todo este tempo.
Você está prestes a ter uma dívida de 25 a 60 mil reais em troca de treinamento para uma indústria onde, se tiver sorte, ganhará nos primeiros anos 8 reais por hora (1).
A verdade é que se você for muito sortudo, uma pessoa abençoada com talento, habilidade e com conexões consideradas dignas os suficientes para alguém recomendar que você trabalhe em grandes cozinhas da Europa ou Nova York para teu aprendizado pós curso. Você essencialmente não fará nada nos primeiros dois anos, uma vez que as despesas da tua vida são levadas em conta, provavelmente estará pagando pela experiência.
Se você tiver a sorte de estar entre os milhares de cozinheiros contratados em um restaurante famoso e respeitado como Arzak, na Espanha, isso realmente será tempo e dinheiro bem gastos. Se você tiver um bom desempenho, voltará para casa nunca mais precisando de um currículo. Neste caso, o investimento de todo o seu tempo, dinheiro e trabalho pesado terá valido a pena.
Mas no minuto que você pisar fora do curso de gastronomia - ao menos que você tenha uma mamãe e um papai ricos ou um bom dinheiro - você está emparedado. Dois anos quase não remunerados vagando pela Europa ou Nova York, aprendendo com os mestres, raramente são uma opção. Você precisa ganhar dinheiro agora. Se isto prevalecer, exigindo que você trabalhe imediatamente, para quem quer que seja - embarcar em uma carreira ditada pela necessidade de fluxo de caixa imediato, nunca mais será fácil sair.
Quanto mais dinheiro você receber, menor a probabilidade de você fugir e fazer um estágio nas grandes cozinhas do mundo. O tempo cozinhando no Applebee's pode te dar algum salário, mas é um período em branco no seu currículo se você planeja trabalhar para grandes restaurantes. Clubes de campo? Cozinhas de Hotel ou cruzeiros? É provável que te prometam uma carreira decente e relativamente estável se você se sair bem. É uma boa vivência com (diferentemente da maioria dos negócios em restaurantes) horas e condições de trabalho razoáveis. A maioria dos hotéis e clubes oferece vantagens consideráveis como plano de saúde e benefícios. Mas este setor do comércio é como fazer parte da máfia. Uma vez que você entra recebendo um abraço caloroso institucional, provavelmente nunca mais irá sair.
Se é importante para você, assista a grupos de chefes em festivais de comida e vinho - ou onde quer que as pessoas da indústria da comida se reúnam para comer e beber juntas depois do trabalho. Observe seus comportamentos como se observasse animais na natureza. Note como chefs de hotel ou clubes se aproximam do grupo. Imediatamente os olhos da matilha ficarão constrangidas. As espécies de hotéis ou clubes serão marginalizadas, eles não são lobos alfa. Com emprego e vidas que são vistas como mais flexíveis e seguras, eles gozam de menos prestígio - e menos respeito.
Você poderia, claro, optar pelo caminho de ser um "Chef Particular" ao se formar, mas saiba que para as pessoas do setor as palavras "particular" e "chef" simplesmente não combinam. Para verdadeiros Chefs esse conceito nem existe. Um "Chef" particular é uma ajuda doméstica e ponto final. Um mordomo glorificado. Em algum lugar um pouco abaixo de "estilista de alimentos" e acima de "consultor" na cadeia alimentar. É onde os idiotas que gastam muito dinheiro com uma educação gastronômica para no fim descobrir que não são nada.
Quantos anos você tem? Ninguém vai te dizer isso, mas eu vou: se você tem trinta e dois anos e está considerando uma carreira profissional em cozinhas. Se você está se perguntando se, talvez, você é muito velho? Deixe-me responder para você: Sim! Você é muito velho...
Se você está pensando em gastar muito dinheiro para ir para a escola de culinária na sua idade, é melhor você estar fazendo isso por amor - um amor, a propósito, que será, quase sem dúvida, não recíproco.
No momento em que você sai da escola - aos trinta e quatro anos, mesmo que seja a porra da Auguste Escoffier School Of Culinary Arts - você terá preciosos poucos anos úteis na rotina das cozinhas profissionais do mundo real. Isso é se você tiver sorte o suficiente para conseguir um emprego.
Aos trinta e quatro anos, você será imediatamente "Vovô" ou "Vovó" para todo mundo - inevitavelmente muito, mas muito mais jovem, mais rápido, mais apto fisicamente. O chef - provavelmente também muito mais jovem - vai vê-lo com desconfiança, já que a experiência lhe ensinou que os cozinheiros mais velhos são muitas vezes perigosos em seus caminhos, resistentes à instrução de seus juniores, geralmente mais lentos, mais propensos a reclamar, se machucarem, ficar doentes, e vêm com uma bagagem inconveniente como vidas familiares e responsabilidades “normais” fora da cozinha. As equipes de cozinha trabalham melhor e mais felizes quando estão sob pressão - quando operam como uma banda de rock de longa turnê - e as chances são de que você seja visto ao aparecer com seu rolo de faca e seu currículo - simplesmente não seja uma boa escolha, será um salto perigoso de fé, esperança ou caridade por quem quer que fosse burro o suficiente para dar uma chance a você. Isso é áspero. Mas é o que eles estarão pensando.
Eu sou gordo demais para ser chef? Outra questão que você provavelmente deveria se perguntar.
Isso é algo que eles não dizem em admissões nas escolas de gastronomia - e deveriam. Eles estão felizes em pegar o seu dinheiro se você tem um metro e sessenta e oitenta quilos, mas o que eles não mencionam é que você estará em uma terrível desvantagem quando se candidatar a um emprego em uma cozinha funcionando. Como os Chefs sabem (literalmente) e seus ossos (e articulações), metade do trabalho nos primeiros anos - se não tua vida inteira - envolve subir e descer escadas (rapidamente), transportar caixas carregadas de comida e agachar centenas de vezes em câmaras frias, outras horas recebendo calor excruciante misturado com umidade, tudo isso pode fazer com que os cozinheiros jovens e soberbos caíam.
Há também as considerações puramente práticas: áreas de trabalho da cozinha - particularmente atrás da linha - são necessariamente apertadas e confinadas. Sem rodeios, os outros cozinheiros podem se mover facilmente em torno de sua bunda gorda? Eu só estou dizendo isso. Mas qualquer chef pensando em contratar você estará pensando nisso. Você precisa lidar com isso.
Você acha que pode ser muito gordo para cortar em uma cozinha quente? Você provavelmente é muito gordo. Você pode engordar na cozinha - com o tempo, durante uma longa e gloriosa carreira. Mas chegando com gordura no começo?
Se você está se confortando com o ditado "Nunca confie em um chef magro", não fique preocupado, pois isto é a coisa mais estúpida que já foi dita. Olhe para os funcionários de restaurantes realmente sofisticados e você verá um grupo de pessoas pequenas, em sua maioria pequenas, magras e descansadas, com olheiras profunda nos olhos: parecem fugitivos de um campo de prisioneiros japonês - e espera-se deles trabalhos de boinas verdes.
Se você está gordo, ao menos que esteja pensando em se tornar um chef de pastelaria, isto vai ser muito difícil para você. Bursite? Pé chato? Problemas respiratórios? Eczema? Lesão no joelho causado no ensino médio? Com certeza não ficará melhor dentro de uma cozinha.
Homem, mulher, gay, hétero, imigrante ilegal, país de origem - quem se importa? Você pode cozinhar uma omelete ou não pode. Você pode cozinhar quinhentas omeletes em três horas - como você disse que poderia e como o trabalho exige - ou você não pode. Não há mentira na cozinha. A cozinha de um restaurante pode, de fato, ser o último lugar para a gloriosa meritocracia, ou onde qualquer pessoa com habilidades amorosas é bem-vinda. No entanto, se estiver velho e fora de forma - ou tiver dúvidas sobre o caminho que escolheu -, você será removido com certeza e rapidamente. Como os anticorpos naturais de um grande organismo combatendo uma cepa invasora de bactérias, a vida vai lentamente empurrá-lo para fora e matá-lo. Assim é. Assim sempre foi.
A progressão ideal para uma carreira culinária nascendo seria, primeiro, dar um salto direto para o fundo da piscina. Muito antes de empréstimos estudantis e cursos de gastronomia, dê-se ao trabalho de descobrir quem você é.
Você é o tipo de pessoa que gosta de calor escaldante, do ritmo enlouquecido, do estresse e do melodrama sem fim, de salários baixos, da provável falta de benefícios, da iniquidade e da futilidade, dos cortes, queimaduras e danos causados no corpo e no cérebro? De horas e mais horas trabalhadas com retornos imprevisíveis?
Ou você é como todo mundo? Uma pessoa normal?
Saiba mais cedo do que tarde: trabalhe, de graça, se necessário, em uma cozinha movimentada. Qualquer cozinha neste caso, de preferência em lugares entupidos de gente na sexta-feira. Trabalhe em qualquer lugar que aceite tua bunda gorda inexperiente na cozinha por alguns meses. Empenhe em fazer milhares de vezes todos os processos sem desistir. Depois de seis meses lavando pratos, prepare para atuar como um garotinho subalterno sendo tratado um pouco mais digno que um rato. Se você ainda gostar deste negócio de restaurantes e acha que será feliz nesta fila de condenados, então seja bem-vindo.
Neste ponto, estabelecendo com antecedência que você é uma pessoa fudida, incapaz de ser feliz numa vida normal - um curso de gastronomia se torna uma boa ideia. Mas escolha o melhor possível. Você precisa sair com uma base de conhecimento e familiaridade com técnicas. A vantagem mais óbvia é que a partir de agora os chefs não terão que dedicar seu dia atarefado para explicar o que é uma merda de brunoise. Presumivelmente, você saberá o que eles querem dizer se gritarem do outro lado do restaurante que você deve fazer um mirepoix. Você será capaz de desossar uma galinha, abrir uma ostra, filetar peixes. Conhecer essas coisas quando você entra pela porta não é absolutamente necessário - mas com certeza ajuda.
Quando você terminar o curso de gastronomia, tente trabalhar o máximo possível nas melhores cozinhas que encontrar pela frente. Viaje para lugares longe de casa. Este é o período mais importante e potencialmente valioso da sua carreira. E foi onde eu fodi o meu.
Eu saí da escola de culinária e o mundo parecia minha ostra. Imediatamente eu consegui um trabalho bom. Eu estava me divertindo. Eu estava trabalhando com amigos, ficando chapado e me convencendo de que eu era suficientemente brilhante e talentoso.
Mas eu não fui nenhuma destas duas coisas.
Em vez de dedicar tempo ou esforço - quando tive a oportunidade de ir trabalhar em cozinhas realmente boas - eu estava conformado inconscientemente a cozinhas de terceiros e quartos níveis. Não havia como voltar atrás. Não pensava na possibilidade de ganhar menos dinheiro. Eu envelheci e a besta que precisava ser alimentada ficou maior e mais exigente, nunca menos.
Então tudo passou muito rápido, dez anos depois, eu tinha um currículo que, na observação mais próxima, não impressionava, isto na melhor das hipóteses. Na pior, contava uma história de prioridades e fracassos. A lista de coisas que nunca aprendi a fazer bem é chocante. O simples fato é que eu seria, e sempre fui, inadequado para a tarefa de trabalhar nas cozinhas da maioria dos meus amigos, isto é algo que tenho que conviver. É também um dos meus maiores arrependimentos. Existe um abismo do tamanho de um oceano entre o adequado e o requintado. Há também uma grande diferença entre bons hábitos (que eu tenho) e o tipo de disciplina exigida de um cozinheiro como Robuchon. O que me limitou para sempre foram as decisões que tomei logo depois de sair do curso de gastronomia.
Esse foi o meu momento como chef, como um adulto em potencial, e deixei passar. Para o bem ou para o mal, as decisões que tomei sobre o que ia fazer, com quem ia fazê-lo e onde, colocaram-me neste caminho durante os próximos vinte anos. Se eu não tivesse desfrutado de um sucesso bizarro e inesperado com o livro que escrevi “Cozinha confidencial” eu ainda estaria em pé atrás do fogão de um restaurante bom, mas nunca ótimo, aos cinquenta e três anos. Eu ficaria anos atrasado com meus impostos, ainda sem seguro de saúde, com a boca cheia de problemas dentários, uma montanha de dívidas e um declínio cada vez mais rápido como cozinheiro.
Se você tem vinte e dois anos, está fisicamente preparado, tem fome de aprender e é bom, recomendaria que viajasse para o mais longe possível. Durma no chão se for preciso. Descubra como outras pessoas vivem, comem e cozinham. Aprenda com elas, onde você estiver. Use todos os recursos possíveis para trabalhar nas melhores cozinhas que encontrar pela frente, mesmo que os salários sejam ruins. Crie todas as conexões possíveis, todos os grandes chefs oferece um vislumbre de esperança e aceitação. Continue assim. Um amigo chef com três estrelas na Europa me contou que recebeu durante meses de mensagens de um aprendiz de cozinheiro - e ele sempre respondia com um "não". Mas finalmente ele desistiu, impressionado com a determinação incansável do garoto, nunca vacilando. Pegue dinheiro emprestado neste momento em sua vida para que você possa se dar ao luxo de viajar e ganhar experiência de trabalho em cozinhas realmente boas, isto será melhor do que qualquer empréstimo para uma escola de gastronomia. Um diploma de cozinheiro - embora extremamente útil - é útil até certo ponto. Um ano trabalhando em Mugaritz ou L'Arpège ou Arzak pode transformar sua vida - tornar-se uma rota direta para outras grandes cozinhas. Todos os grandes chefs se conhecem. Faça certo por um e eles e isto conectará com os outros.
Isso quer dizer: se você tiver sorte o suficiente para poder fazer a coisa correta, não estrague tudo.
Como eu disse, todos os grandes chefs se conhecem.
Deixe-me repetir, a propósito, novamente, que eu não fiz nenhuma das coisas acima.
E não vou lhe contar aqui como viver sua vida.
Só estou dizendo, acho, que tive muita sorte.
E a sorte não é um modelo de negócios.
(1) https://www.salario.com.br/profissao/cozinheiro-geral-cbo-513205/

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