Há um termo em Inglês que vai sendo utilizado cada vez mais quando se fala das músicas não-conformistas e transgressivas: “leftfield”. O sentido é plural, mas os significados que tem convergem na mesma ideia – literalmente, quer dizer “vindo do nada”, numa abreviatura da expressão “out of left field”, mas é tomado também como um jogo de palavras entre “field” (campo, território) e “left” (em alusão à esquerda política), ficando algo como “vindo da esquerda”. Os primeiros usos da palavra referiam a música eletrônica de dança que tinha caráter experimental, a exemplo da que tocava o extinto duo Leftfield, mas depressa foram ampliados para as tendências mais abstratas e exploratórias da eletrônica não-erudita e depois para todas as propostas, mesmo as acústicas ou eletroacústicas, que não obedecem a fidelidades de gênero e estilo ou que as colocam em causa. Mais recentemente, começamos a encontrá-la em textos sobre o cinema, o vídeo, o teatro e a dança não alinhados com as estéticas dominantes.
O certo é que a designação “leftfield” ganha especial pertinência quando se trata de apontar a música improvisada. Para todos os efeitos, esta é criada – pelo menos aparentemente, pois há que contar com as referências pessoais e de formação de cada músico (Cage dizia que «improvisar é tocar o que se sabe») – a partir do nada, ou seja, no próprio momento da sua apresentação pública, além de que tem conotações de esquerda e de extrema-esquerda desde a sua gênese no contexto das movimentações sociais e culturais da década de 1960, com especial relevo para as de cunho libertário. O percussionista Lê Quan Ninh é peremptório quanto a este fator: «Entre as práticas artísticas atuais, há uma em que a presença dos princípios anarquistas é manifesta, a da improvisação livre.»
Se o idioma musical em que mais se improvisava até meados do século passado, o jazz, viveu a revolução da espontaneidade criativa e da liberdade com o free jazz dos anos do Black Power, sem nunca cortar com as estruturas compositivas da tradição de que proveio, no Velho Continente quis-se ir mais longe e formular uma nova abordagem rotulada como free music. Esta foi representada pelos programas igualitários da Scratch Orchestra, do Spontaneous Music Ensemble, dos AMM e dos Musica Eletrônica Viva. Sobre estes últimos, recorda um dos seus fundadores, Alvin Curran, o que segue: «Acreditávamos nesse tempo que a música não era propriedade de nenhum indivíduo ou autor, mas de todo um coletivo, e que a música é um direito humano universal, podendo todos os seres humanos, querendo-o, fazer música. Curiosamente, estas crenças estão hoje de novo no centro de um debate ético e legal relativamente à definição do que é a música, da sua autoria e do uso que dela é feito na Internet. Caracterizáva-nos a “chocante” (até para nós) ausência de autoridade e de liderança e baseávamo-nos no princípio de que todos podem produzir sons de algum modo, num ato de criação musical espontânea. Este trabalho de envolvimento do público nos concertos – um assalto radical às vacas sagradas da cultura burguesa – significava um suicídio do grupo enquanto entidade fechada mas também nos possibilitava chegar aos mais perigosos e instáveis limites experimentais. Um dos objetivos era a geração de uma energia tribal com todos e quaisquer meios, desafiadora da morte, afirmadora de vida e em busca do êxtase, numa mistura idiossincrática, crua e sem mediações de anarquismo, comunalismo e transcendentalismo.»
Os MEV foram até onde era possível ou impossível e nem tudo o que fizeram com não-músicos nos parece, hoje, interessante, o mais não seja porque ouvimos / observamos de fora e a perspectiva é necessariamente diferente. Talvez Elvin Jones tivesse razão quando afirmou que «não há liberdade sem algum tipo de autocontrole e de autodisciplina», recordando as suas colaborações com John Coltrane: «Ainda que ele desse uma impressão de liberdade, o que tocava era bem pensado e muito disciplinado.» Ou tinha-a Ron Carter, ao avisar que «podemos ser livres tanto quanto queremos, mas precisamos de ter um “background” com o qual nos possamos relacionar na colocação em prática dessa liberdade – de outro modo, ficamos relegados a um canto».
Talvez, repita-se. O certo é que o octeto Potlatch se situa em “Live at Fábrica Braço de Prata” (edição pela “netlabel” Insubordinations) entre o free jazz e a free music. Quando adivinhamos o legado de Ornette Coleman na sonoridade e na não-hierarquização dos papéis instrumentais, surgem sem aviso situações de total e abstracto desconstrucionismo, com parasitagens eléctricas (a guitarra de Guilherme Leal) e electrónicas (os dispositivos de Nuno Lima), uma base percussiva de grande densidade, ora virada para a pulsação, ora para o desenvolvimento de texturas (a bateria de Luís Desirat e os objectos de Monsieur Trinité) e uma sólida, mesmo quando discreta e colocada ao serviço do conjunto, elaboração harmónica, garantida em permanência pelo piano (Filipe de Sousa) e muito frequentemente pelo contrabaixo (Pedro Roxo), não se limitando este, pois, a funções rítmicas. São duas abordagens distintas da improvisação que assim se conjugam, uma ligada à herança afro-americana, a outra de cunho europeu e menos codificada. À “boca de cena” estão os saxofones (Jorge Lampreia no soprano, aqui ou ali dobrando em flauta, e José Lencastre no alto), responsáveis maiores pelas conotações com o que se vai entendendo como jazz. Tal entrar e sair de formatações e tal escarafunchar das fendas entre dois mundos contíguos é o que faz as delícias deste projecto que joga com alinhamentos e rupturas, reavivando por meio do seu próprio questionamento as premissas “leftfield”.
No seu ensaio “Improvised Music After 1950: Afrological and Eurological Perspectives”, o professor e trombonista George Lewis refere que o jazz é para a livre-improvisação aquilo que designa como o “outro epistemológico”, adoptando a terminologia das cientistas sociais Margaret Somer e Gloria Gibson. No sentido que lhe dá esta importante figura da AACM, o jazz dos Potlatch surgirá, então, como o pilar de referência de um trabalho de contraposição. Assinala Lewis, para ser mais exacto, que o jazz «serve explicitamente como um padrão definidor para animar a formação e a exploração da particular sensibilidade improvisacional eurológica», mesmo nos casos em que a música se distancia desse idioma. É o que se passa, precisamente, com este grupo colocado à esquerda da esquerda musical que foi a “new thing”, o que por estes dias não significa pegar em armas e rebentar bombas, ou seja, ir até à beira do precipício.
Escrito por: Rui Eduardo Paes
O certo é que a designação “leftfield” ganha especial pertinência quando se trata de apontar a música improvisada. Para todos os efeitos, esta é criada – pelo menos aparentemente, pois há que contar com as referências pessoais e de formação de cada músico (Cage dizia que «improvisar é tocar o que se sabe») – a partir do nada, ou seja, no próprio momento da sua apresentação pública, além de que tem conotações de esquerda e de extrema-esquerda desde a sua gênese no contexto das movimentações sociais e culturais da década de 1960, com especial relevo para as de cunho libertário. O percussionista Lê Quan Ninh é peremptório quanto a este fator: «Entre as práticas artísticas atuais, há uma em que a presença dos princípios anarquistas é manifesta, a da improvisação livre.»
Se o idioma musical em que mais se improvisava até meados do século passado, o jazz, viveu a revolução da espontaneidade criativa e da liberdade com o free jazz dos anos do Black Power, sem nunca cortar com as estruturas compositivas da tradição de que proveio, no Velho Continente quis-se ir mais longe e formular uma nova abordagem rotulada como free music. Esta foi representada pelos programas igualitários da Scratch Orchestra, do Spontaneous Music Ensemble, dos AMM e dos Musica Eletrônica Viva. Sobre estes últimos, recorda um dos seus fundadores, Alvin Curran, o que segue: «Acreditávamos nesse tempo que a música não era propriedade de nenhum indivíduo ou autor, mas de todo um coletivo, e que a música é um direito humano universal, podendo todos os seres humanos, querendo-o, fazer música. Curiosamente, estas crenças estão hoje de novo no centro de um debate ético e legal relativamente à definição do que é a música, da sua autoria e do uso que dela é feito na Internet. Caracterizáva-nos a “chocante” (até para nós) ausência de autoridade e de liderança e baseávamo-nos no princípio de que todos podem produzir sons de algum modo, num ato de criação musical espontânea. Este trabalho de envolvimento do público nos concertos – um assalto radical às vacas sagradas da cultura burguesa – significava um suicídio do grupo enquanto entidade fechada mas também nos possibilitava chegar aos mais perigosos e instáveis limites experimentais. Um dos objetivos era a geração de uma energia tribal com todos e quaisquer meios, desafiadora da morte, afirmadora de vida e em busca do êxtase, numa mistura idiossincrática, crua e sem mediações de anarquismo, comunalismo e transcendentalismo.»
Os MEV foram até onde era possível ou impossível e nem tudo o que fizeram com não-músicos nos parece, hoje, interessante, o mais não seja porque ouvimos / observamos de fora e a perspectiva é necessariamente diferente. Talvez Elvin Jones tivesse razão quando afirmou que «não há liberdade sem algum tipo de autocontrole e de autodisciplina», recordando as suas colaborações com John Coltrane: «Ainda que ele desse uma impressão de liberdade, o que tocava era bem pensado e muito disciplinado.» Ou tinha-a Ron Carter, ao avisar que «podemos ser livres tanto quanto queremos, mas precisamos de ter um “background” com o qual nos possamos relacionar na colocação em prática dessa liberdade – de outro modo, ficamos relegados a um canto».
Talvez, repita-se. O certo é que o octeto Potlatch se situa em “Live at Fábrica Braço de Prata” (edição pela “netlabel” Insubordinations) entre o free jazz e a free music. Quando adivinhamos o legado de Ornette Coleman na sonoridade e na não-hierarquização dos papéis instrumentais, surgem sem aviso situações de total e abstracto desconstrucionismo, com parasitagens eléctricas (a guitarra de Guilherme Leal) e electrónicas (os dispositivos de Nuno Lima), uma base percussiva de grande densidade, ora virada para a pulsação, ora para o desenvolvimento de texturas (a bateria de Luís Desirat e os objectos de Monsieur Trinité) e uma sólida, mesmo quando discreta e colocada ao serviço do conjunto, elaboração harmónica, garantida em permanência pelo piano (Filipe de Sousa) e muito frequentemente pelo contrabaixo (Pedro Roxo), não se limitando este, pois, a funções rítmicas. São duas abordagens distintas da improvisação que assim se conjugam, uma ligada à herança afro-americana, a outra de cunho europeu e menos codificada. À “boca de cena” estão os saxofones (Jorge Lampreia no soprano, aqui ou ali dobrando em flauta, e José Lencastre no alto), responsáveis maiores pelas conotações com o que se vai entendendo como jazz. Tal entrar e sair de formatações e tal escarafunchar das fendas entre dois mundos contíguos é o que faz as delícias deste projecto que joga com alinhamentos e rupturas, reavivando por meio do seu próprio questionamento as premissas “leftfield”.
No seu ensaio “Improvised Music After 1950: Afrological and Eurological Perspectives”, o professor e trombonista George Lewis refere que o jazz é para a livre-improvisação aquilo que designa como o “outro epistemológico”, adoptando a terminologia das cientistas sociais Margaret Somer e Gloria Gibson. No sentido que lhe dá esta importante figura da AACM, o jazz dos Potlatch surgirá, então, como o pilar de referência de um trabalho de contraposição. Assinala Lewis, para ser mais exacto, que o jazz «serve explicitamente como um padrão definidor para animar a formação e a exploração da particular sensibilidade improvisacional eurológica», mesmo nos casos em que a música se distancia desse idioma. É o que se passa, precisamente, com este grupo colocado à esquerda da esquerda musical que foi a “new thing”, o que por estes dias não significa pegar em armas e rebentar bombas, ou seja, ir até à beira do precipício.
Escrito por: Rui Eduardo Paes
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