Carlos Ceia
Conjunto de sons que são ‘descritos’ e/ou
reproduzidos num texto literário. Conceito/termo cunhado pelo compositor
canadiano Raymond Murray Schafer (n. 1933), com base no termo landscape, no
âmbito da sua investigação na área da ecologia acústica [The New Soundscape
(1969), The Turning of the World (1977)], e que tem vindo a ganhar terreno em
diversas áreas de estudo, nomeadamente nos estudos urbanos, musicais, médicos e
literários. O termo remete para os elementos sonoros presentes no texto
literário, nomeadamente sons humanos [voz(es), música, ruídos industriais],
naturais (clima, fenómenos naturais, natureza em geral) ou animais, entre
outros. A soundmark literária
encontra-se associada aos sons típicos de um período, de uma determinada zona
geográfica ou de uma situação, e, de acordo com Emily Thompson (The Soundscape
of Modernity: Architectural Accoustics and the Culture of Listening in America, 1900-1933, 2004: 1),
“like a landscape, a soundscape is simultaneously a physical environment and a
way of perceiving that environment”. Poderá tratar-se de uma paisagem sonora ou
acústica nacional, regional, local, urbana (mapa de ruídos ou sons de uma
cidade), rural (romance urbano/campesino), ou ainda de uma determinada área do
globo, como o Sudeste Asiático, sendo constituída por sons, ruídos ou poluição
sonora que associamos a uma determinada zona geográfica, ou a um estado de
espírito. A soundscape e os padrões repetitivos de uma obra relacionam-se
também com os sons mentais ou psicológicos das personagens, do narrador e do
sujeito lírico. O ambiente acústico de um texto, pode ser humanizado ou natural
e relaciona-se também com os efeitos estilísticos/sonoros de determinada obra,
como acontece relativamente aos repetitivos sons industriais da poesia de Fernando
Pessoa (pela pena do engenheiro Álvaro de Campos), aos sons urbanos da Lisboa
de Cesário Verde (“O Sentimento de Um Ocidental”), e às aliterações, à
cacofonia e às onomatopeias, entre outros jogos sonoros que o universo
linguistico-artístico permite e que remetem para a (inovação) métrica. Jim
Drobnick (The Smell Culture Reader, 2006: 92) estende o conceito de soundscape
para o campo do olfacto, ao afirmar que “soundscapes consist of sound events,
some of which are soudmarks (compare landmarks). Similarly, smellscapes will involve smell events and
smell marks. “Eyewitness” is replaced by “earwitness” and nosewitness. Visual
evidence becomes hearsay and nosesay. The heightening of visual perceptions
becomes ear-cleaning and nose-training”.
Podemos assim falar também do enredo sonoro,
acontecimentos ouvidos e não apenas visualizados, enquanto as personagens, o
narrador e até o leitor escutam, recordam e descrevem imagens acústicas; daí
que R. Murray Schafer (The Soundscape:
Our Sonic Environment and the Turning of the World, 1993: 212) utilize a figura
do turista a apreciar uma determinada soundscape, em busca não dos
Sehenswürdigkeiten (objectos com interesse visual), mas sim dos
Hörenswürdigkeiten (objectos com interesse auditivo). Torna-se também forçosa a
distinção entre ‘escutar’ e ‘ouvir’, podendo um som funcionar como extensão
simbólica de uma personalidade, de um corpo ou dos objectos e seres que o
produzem. Como informa Emily Thompson (The Soundscape of Modernity:
Architectural Acoustics and the Culture of
Listening in America, 1900-1933, 2004: 2) os sons são, cada vez mais,
resultado de inovações tecnológicas, que,
por outro lado, controlam e manipulam esses mesmos sons e ritmos,
acabando por alterar assim também a ‘cultura da audição’, a forma como se
registam e percepcionam sons. O próprio texto que o leitor tem entre mãos é uma
soundscape mental que se serve de técnicas, ritmos e estilos musicais, que, por
sua vez, se tornam temas, estratégias e elementos estruturantes dessa obra,
como acontece com Doctor Faustus e The Magic Mountain, de Thomas Mann, Ping, de
Samuel Beckett, Cantos, de Ezra Pound, ou Os Teclados, de Teolinda Gersão. Os
mais variados jogos e experimentações com base em sons, falas e pensamentos
paralelos, ou ainda em sons que ficam por se ouvir em romances polifónicos como
Mythological Landscape with Daphne’s Meatmorphosis (1966), de Peer Hultberg,
chamam a atenção para o próprio discurso e tornam evidentes transformações ao
nível das personagens e dos mundos possíveis que as rodeiam. A soundscape, ou
sonografia, enquanto elemento simbólico e estruturante do texto literário tem,
portanto, implicações sociais, estéticas, culturais e políticas ao concorrer
também para a caracterização do espaço (histórico-social) da acção e do sentimento
de pertença de determinadas personagens.
BIB.: Adam
Piette: Remembering and the Sound of Words: Mallarmé, Proust, Joyce, Beckett
(1996); Adelaide Morris(ed.): Sound States: Innovative Poetics and Accoustical
Technologies (1997); Brigitte Cazelles: Soundscape in Early French Literature
(2005); Charles Bernstein (ed.): Close Listening and the Performed World
(1998); Emily Thompson: The Soundscape of Modernity: Architectural Acoustics
and the Culture of Listening in America,
1900-1933 (2004); Garret Stewart: Reading Voices: Literature and the Phonotext
(1990); Jim Drobnick: The Smell Culture Reader (2006); John Picker: Victorian
Soundscapes (2003); Michael J. Meyer (ed.): Literature and Music (2002); R.
Murray Schafer: “Ezra Pound and Music”, Canadian Music Journal, 5 (1961); Id.:
The New Soundscape (1969); Id.: The Turning of the World: Toward a Theory of
Soundscape Design (1977); Id.: The Soundscape: Our Sonic Environment and the
Turning of the World (1993).
'Afinação do Mundo' do Murray foi publicado no Brasil http://www.editoraunesp.com.br/catalogo-detalhe.asp?ctl_id=1376
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