sábado, 2 de abril de 2016

Vela Preta IX


   No meio de uma multidão numa tarde nublada e abafada comecei a pensar sobre minha vida e sobre a vida de todos nós. Vendo aquelas centenas de pessoas com um pouco de mal estar de uma agorafobia que insiste em não ir embora, tive uma elucubração um tanto singular. Imaginei como somos todos construídos principalmente de duas coisas; cérebro e tripas. O cérebro nos isola e nos une, nos faz abolir a realidade, sermos inventivos, tristes, canalhas, gentis, cuzões, alegres, acreditar em macumbeiros, enquanto as tripas só nos faz cagar e sentir fome. Entre estas duas coisas têm o coração que é o botão liga e desliga de tudo isto. Resumindo, talvez naquela tarde de merda eu tenha encontrado um motivo para ainda acreditar em alguma coisa, algo que tem potencial para curar minhas ideias desarrazoadas: somos todos vítimas de ideias (cérebro) e diarreias (tripas) e as soluções propostas pelo mundo são psiquiatras e latrinas.

   O Vela Preta é outra maneira de chegarmos ao campo das ideias subjetivas como naquela tarde em meio a multidão. Vela Preta tem um significante que nos remete à ideia de claro e escuro, o pavio da vela clareia ao mesmo tempo em que a parafina fatalmente chegará na finitude, nos leva ao breu absoluto, é uma vela usada em rituais postos à margem, principalmente da cultura afro. A cor preta, luto, nos encaminha para sentimentos que expurgamos às escondidas, ou seja, em contextos secretos. Estamos todos caindo num abismo e você tem milhões de possibilidades antes de chegar ao chão. Vazio existencial com ativismo político. Não estou me sentindo bem, mas vou morrer lutando, da minha maneira, no que acredito que pode nos salvar dessa enrascada civilizatória.  Entre as várias possibilidades, podemos escolher a subserviência esmagadora que nos destrói e o sol que nos ilumina, mas nos cega.

   Curitiba é medonha, a maior parte das noites no céu não tem nada, você olha pra cima e não vê uma porra de estrela, até a estrela solitária nos abandonou. Foi nesta noite que assisti músicos, militantes e parte do tronco genealógico que faz “músicas de ruído” e muito mais na cidade. Num lugar que tem sido um abrigo de ferozes produzindo todo tipo de arte.  Vou contar parte da história, pois fiquei tão retardado no lugar que não consigo lembrar o que é fato ou fantasia.

   O primeiro atentado chama-se Abacaxi Nojima, um projeto do multidisciplinar Akio. Uma mistura de sons eletrônicos rompidos, guitarra e fones de ouvido. O negócio era cheio inventividades, mas eram tantas que não tenho a mínima ideia de como começou. No entanto, foi a única fotografia que tirei do evento Vela Preta. O projeto é música em andamento, ela não termina no show e também não começa ali. É uma leitura sonora extremamente interessante que rompe ensaio, apresentação e pós-show. Você podia colocar um fone de ouvido para escutar parte da apresentação, você podia ouvir a guitarra ou você podia ir embora. No entanto, todo mundo ficou.
                                                                                                                                                                (Abacaxi Nojima ) 
             

   Existiam dezenas de velas e isso foi muito bom. Liberado o tabaco, charuto e cigarrilhas, foi o primeiro lugar que ninguém pediu meu isqueiro para nunca mais devolver. Todos os viciados acendiam seus cigarros em velas. Simplesmente o lugar virou numa fumaça acústica com dez bilhões de células cancerígenas e acho que todo mundo cagava praquilo. Exceto as plantas, que escreveram uma placa contrariando o que eu falei até agora.

   O segundo atentado foi Sayuri K., parece drone, mas não foi bem assim. Sayuri constrói um imaginário incrível me levando à obra fílmica extremamente pesada do Fast Food Nation dirigido pelo Linklater. Ela tem um mundo musical muito particular, expõe um clima onírico para caralho.  Se não esteve lá, imagine que foi algo mais elaborado do que a música “A place in the Sun” do Friends of Dean Martinez sendo executada num momento que não esperava. Música com potencial para explodir teu coração.

   O terrorismo, terceira apresentação. Cãos é a desgraça sonora no planeta. A fumaça acústica tinha virado campo de concentração e os quatro membros da banda queriam implodir o lugar. O barulho começou e de cara você já notava um senhor com calvície com um farolete na mão e uma Tekpix filmando alucinadamente o que viria porvir. Cãos é a festa punk propriamente dita, todos são uns irresponsáveis se debatendo, música veloz anti-intelectual. O vocalista tava comendo uma vela de sete dias e cuspindo em todo mundo, o guitarrista gritava: “Acenda a luz, sério, eu nem sei o que é a nota Dó” e o baixista estava concentrado num mundo que não é nosso. É sempre bom pensar no amanhã.

   Cãos é agressivo e torço para que você não se foda levando cusparadas de vela ou perder um dente nos movimentos difíceis de explicar que a trupe executa. É um ritual brutal tanto é que tinha uma menina com óculos tendo uma tremedeira em cima de um amplificador, não sei se era espasmos ou um novo jeito de pogar. O baterista parecia o filho do Jack Black, quase verti em lágrimas com aquilo tudo. A fumaça, o caos, você até cria esperanças... Foi foda.

   A partir daí eu estava tão retardado que meu cérebro foi betumado com o tanto de fumaça e minhas tripas já estavam pedindo arrego pelo excesso de cervejas Itapaiva semi-geladas.  Estava ficando sem ar e comecei a ficar na portaria, na frente do lugar e na esquina. Como sempre um pau-no-cu ligou pra polícia e a festa poderia acabar a qualquer hora. Assim, uma trupe de minas começaram a vigiar a portaria botando ordem no entra e sai. Parecia uma foto das Sufragistas aquilo, uma gangue de mulheres explicitando “Se controlem porra! Os de farda vão aparecer e acabar com tudo mais uma vez”. Obrigado Isa por me deixar sair.

   O quarto atentado foi o grupo Tribunal. Carol, Aline e Cicely. Como meu cérebro e tripas estavam à flor da pele eu tinha que ficar em movimento. Conversava com alguns amigos e amigas, gente que nunca saberei o nome e percebo agora que só existem fragmentos imagéticos no meu cérebro. Algo que aflora é que Tribunal é ritualístico. Aline reverbera sua voz espancando placas, Cicely se concentrava em uma microsseita e a Carol não lembro. Desculpe Carol! Som do Tribunal é tão agressivo quanto os momentos épicos de Neubauten e Diamanda Galás, ou seja, meninas empoderadas para caralho em música “esquisita”.

   Após Tribunal veio Buraco Negro, formado por Pedro e Gustavo, um crust virulento com pegadas refinadas e absurdas na eletrônica. Minha mente já era, não lembro porra nenhuma. As Itaipavas tinham acabado com minha grana, minha dignidade e a consciência estavam em cacos. Os anos de violência etílica estavam cobrando o preço. 
  Doze horas depois chapado de Neosaldina fui verificar meu celular e encontrei fotos estranhas de frases na frente do cemitério Água verde, talvez naquela noite fui guiado por coisas ruins ou finalmente estava em diálogo com meu rito de passagem.

   O melhor de tudo é que gravei em áudio para quem não foi vivenciar a genial experiência de estar em um Vela Preta. Vou editar e masterizar e numa próxima postagem vocês poderão escutar.

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