RESUMO
Este
artigo analisa os efeitos subjetivos resultantes das transformações sociais
contemporâneas, tais como o impacto da tecnologia e o crescente poder da
imagem, que encaminham para a problematização sobre o lugar do corpo na
sociedade. Esta análise é proposta a partir da leitura da arte abjeta,
modalidade da arte vinculada à constituição do ser humano e à apresentação do
real.
Palavras-chave:
corpo; sociedade contemporânea; abjeto.
Toda chama é um engendramento de água.
(Novalis, [1799-1800] 2005: 62)
Que
espécie de corte produzem algumas marcas do abjeto presentes em muitas manifestações
artísticas contemporâneas? Imagens/ vertigens que trazem, para dentro do campo
da arte, uma exigência de reflexão. Já não é mais possível simplesmente
designar tais categorias como fora do campo da arte e fechar os olhos, reagindo
assim de forma ingênua ao excesso de imagem, como os espectadores sem tempo,
que fazem seu percurso evitando as imagens de que não gostam. Como sugere
Giorgio Agambem (2004) em seu livro Imagem e memória, há uma beleza então que
cai. Estamos interessados em seguir algumas pistas dessa queda. Agambem parece
sintetizar na abertura do seu texto um ruído que habita o campo das artes em
nossos tempos: "Chega um momento no percurso de todo grande artista, de
todo poeta, onde a imagem da beleza, que ele perseguia até então seguindo uma
elevação contínua, inverte bruscamente sua direção e aparece, por assim dizer,
em uma queda vertical" (Agambem, 2004: 153).
Essa
queda já está escrita na história da arte mesmo que algumas vozes ainda possam
evocar as formas do belo, em um discurso que fez época nas reflexões clássicas
de Lessing ([1766] 1990) em seu Laocoon. A regra de representação em sua época
(século XVIII) interditava ao campo da arte o que não estivesse inscrito na
categoria do belo. Ele defendia que nem todas as paixões humanas poderiam
encontrar sua forma visual na arte e deveriam se submeter aos cânones
estabelecidos de beleza. Escrevia ele: "todo outro objeto possível das
artes plásticas, se ele é inconciliável com a beleza, deve ser completamente
afastado" (Lessing, [1766] 1990: 50).
Mas
o que a história recalca retorna agora na potente lógica freudiana e temos que
encontrar no mundo visível um lugar para este resto que faz corpo e poeira em
nosso olhar. Como nomear este retorno do recalcado?
A
imagem na arte introduz uma dimensão do estranho que permite que o olhar
recupere sua potência. É exatamente este o sentido em que insiste Jean-Luc
Nancy (2003) ao dizer que toda imagem é sagrada (não confundir com religião)
justamente na medida em que sagrado, lembra o autor, significa separado,
colocado de lado1. De alguma forma, esta reflexão abre para o abjeto, assim
como fez Georges Bataille ([1957] 1960), um lugar de pouso.
Deste
modo, este objeto/abjeto estranho que paira neste novo espaço de representação
resiste às categorias que até então regulavam o campo do visual. Objetos,
portanto, que obrigam uma reformatação dos conceitos, dos paradigmas, do
discurso. Aqui, de alguma forma, podemos recuperar a potência da arte, que
sempre abriu na história novas perspectivas. O abjeto nos captura justamente
naquilo que, ao nos expulsar de seu campo visual, nos atrai. Objetos/tabus que,
em vão, queremos rasurar; eles, como sabemos, insistem. Vejamos como se
posiciona Nancy (2003) neste ponto:
Não podemos tocar: não se trata que não
tenhamos o direito, e nem que nos faltem os meios, mas é que o traço distinto
separa aquilo que não é mais do campo do tocar, não precisamente, portanto, de
um intocável, mas mais de um impalpável. Mas este impalpável se revela sob o
traço e pelo traço de seu afastamento, por esta distração (distraction) que o
afasta. Em consequência, minha questão primeira e última seria: não será que
tal traço distintivo não é sempre uma questão da arte? (Nancy, 2003: 12).
A
cultura e suas transformações estão diretamente ligadas a uma experiência de
tempo, produzindo inquietações e sofrimento. Cada processo de mudança social
(como a globalização, por exemplo) intervém diretamente na vida de cada
cidadão, que se vê jogado entre os conceitos que fizeram parte de sua formação
e convocado a responder às demandas desse novo tempo.
Por
mais que se questionem os termos modernidade e pósmodernidade, é visível que a
última passagem de século trouxe consigo uma reordenação de valores.
Refundar-se a partir de novos significantes, este é o trabalho de cada sujeito
quando lançado nas mudanças sociais produzidas pela contemporaneidade.
Debord
(1997) faz uma crítica às transformações sociais quando postula o conceito da
"sociedade do espetáculo" como uma forma de estar no mundo na qual as
relações entre os homens não são mediadas por coisas, mas por imagens. O
espetáculo é uma forma de sociedade em que a vida real é pobre e fragmentada e
na qual os indivíduos consomem, através das imagens, os objetos que lhe faltam.
A
"espetacularização" pelo excesso de sentido provoca a alienação e
impede que os sujeitos se impliquem frente ao que é exposto, embotando o
espírito crítico e a percepção dos mecanismos inerentes ao processo de
produção. Na alienação do espectador frente ao objeto contemplado, o que ocorre
é que, quanto mais o sujeito contempla, menos vive, mais aceita as imagens
dominantes e mais se afasta de um saber sobre o que o constitui como ser
desejante.
Não é possível fazer uma oposição abstrata
entre o espetáculo e a atividade social efetiva: este desdobramento também é
desdobrado. O espetáculo que inverte o real é efetivamente um produto. Ao mesmo
tempo, a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do
espetáculo e retoma em si a ordem especular à qual adere de forma positiva. A
realidade objetiva está presente dos dois lados. Assim estabelecida, cada noção
só se fundamenta em sua passagem para o oposto: a realidade surge no
espetáculo, e o espetáculo é real. Essa alienação recíproca é a essência e a
base da sociedade existente (Debord, 1997: 15).
Para
esse autor, a "espetacularização" é uma consequência da sociedade
capitalista, na qual as qualidades concretas dos objetos são anuladas em favor
do seu valor de troca, encontrando seu símbolo na abstração do dinheiro. Desta
forma, a economia se torna um fim em si mesma e governa o homem que a criou. O
espetáculo é o resultado de um modo de produção que se constitui como modelo da
vida em sociedade, como uma "visão de mundo".
Visão
de desamparo absoluto ao ponto que Giorgio Agambem (2004), ao escrever sobre o
cinema de Debord, diz que suas imagens indicam uma zona híbrida, flutuante,
entre o falso e o verdadeiro. Agambem é categórico, ao dizer: "A imagem
exposta enquanto tal não é mais imagem de nada, ela é ela mesma sem
imagem" (Agambem, 2004: 95).
O
mundo da arte reflete diretamente as transformações econômicas, políticas e
sociais. Alguns artistas e obras de arte contemporânea passam a desfrutar de
uma grande popularidade, e o valor de comércio das obras registra altos valores
no mercado de arte.
Posições
contrárias se estabelecem: para alguns críticos a arte passou a obedecer às
leis da moda e os valores estéticos passaram a ter um curto prazo de validade
(o que está em questão é sempre a produção do novo); os artistas são elevados à
condição de estrelas. Por outro lado, em oposição ao valor de mercado da arte,
surgem em alguns artistas posições de resistência, ao se proporem a recuperar,
pela arte, uma força política contrária aos dogmas da economia capitalista.
Neste ponto, a arte recuperaria sua função essencial como utopia e crítica dos
valores instituídos.
Diferentemente
das visões dos principais teóricos da pós-modernidade que veem esse momento
como um período de crise das relações sociais, o sociólogo francês Michel
Maffesoli tem outra visão do mundo contemporâneo. Para ele, a proliferação e o
crescente poder da imagem (que pode gerar intensos sentimentos coletivos)
produzem uma comunhão e coesão social.
Maffesoli
(1995) direciona seu olhar para além do individualismo e do racionalismo
enunciado pelos críticos da sociedade de consumo e analisa a pós-modernidade
como um fenômeno global de comunicação, caracterizando-a pelas identificações
fugazes, pelo tribalismo e pelo hedonismo. Para ele, a comunicação (base das
relações sociais) não se resume em uma sociologia da mídia, mas tem a ver com a
vida em sociedade, com a relação que se estabelece com o contato entre os
sujeitos, mesmo que este contato se dê de formas diferentes e fragmentadas. Um
elemento importante nessa transformação é o presenteísmo pós-moderno: trata-se
de gozar de imediato, além de uma tendência ao hedonismo que permeia não apenas
a elite, mas todas as diferentes camadas sociais. O corpo toma um lugar
importante na vida social, deixa de ser apenas um corpo produtivo para ser um
corpo amoroso, um corpo erótico. Ao contrário de autores que associam o prazer
à resignação, ele o vê como algo que ajuda a resistir à força uniformizadora do
sistema.
Segundo
Maffesoli (1998), o que melhor pode caracterizar a pós-modernidade é o vínculo
que está sendo estabelecido entre a ética e a estética, entendendo-se estética
no sentido etimológico do termo: a faculdade comum de sentir, de experimentar.
A experiência ética diz respeito aos princípios comuns em um determinado laço
social, já que a produção de discursos e narrativas sobre o sentido da vida, na
atualidade, não é dada mais por nenhuma verdade transcendental, mas sim por uma
tarefa coletiva em que cada sujeito tem a sua pequena participação.
Essa poderia ser a minha hipótese central:
o paradigma estético é o elemento que permite englobar uma constelação de
ações, de sentimentos, de "ambiências" específicas do espírito dos
tempos modernos. Tudo aquilo que diz respeito ao presenteísmo, ao senso de
oportunidade, tudo aquilo que remete à banalidade e à força agregativa. Numa
palavra, a ênfase no "carpe diem", hoje novamente em voga, tem na
matriz estética um lugar privilegiado (Maffesoli, 2005: 65).
Maffesoli
reconhece no imaginário a força determinante da vida social e propõe uma
"sociologia da imagem" que abandone os preconceitos contra o
imaginal, abandonando também qualquer análise baseada em categorias clássicas,
tais como modo de produção, classe social, partido político e outras desta
natureza.
Sem
desconsiderar a importância das teorizações de Maffesoli para o avanço da
compreensão da pós-modernidade, a fragilidade desta proposta está justamente em
não abordar a questão do poder, não levando em conta a influência do capital,
do mercado e das condições históricas de produção em qualquer período de uma
sociedade. O risco de uma "ética de instante" é a produção de uma
sociologia que se debruce unicamente sobre o contemporâneo, e o preço da
alienação em relação ao poder é a cegueira frente às possibilidades
disfuncionais da imagem, como a da produção de discriminação e exclusão social.
Segundo
Lipovetsky e Sebastien (2004), a indiferença do sujeito contemporâneo se dá
pelo excesso e não pela falta. Na visão destes autores, a situação paradoxal da
sociedade hipermoderna traz como consequência uma fragilização do indivíduo
que, frente à desestabilização do controle social, se vê obrigado a dar conta
de suas próprias escolhas e ações na sociedade. Na busca pelo reconhecimento,
observa-se uma lógica do excesso, que frequentemente encontra no corpo um
depositário destes ideais.
Apesar
das divergências entre os teóricos da contemporaneidade, uma coisa parece ser
de senso comum: o efeito que a supervalorização da imagem, na medida em que
transforma os ideais sociais, teve sobre o corpo humano, questionando-o em sua
capacidade de dar conta das exigências surgidas na atualidade.
Reconhecidos
artistas contemporâneos, tais como Nan Goldin, Stelarc e Cindy Sherman, entre
outros, apresentam a problemática do lugar/não lugar que o corpo ocupa nesta
sociedade. Em suas obras, vemos o corpo humano limitado, doente, obsoleto,
deficiente, fragmentado e mutilado. Esta nova construção do corpo sugere
elaborar a discussão do abjeto em sua relação com o espaço de identidade do
sujeito contemporâneo.
Georges
Bataille ([1957] 1960) identifica a sociedade como um sistema de violência e
exclusão no qual o abjeto é uma forma de coesão social: aquilo que o sistema
não consegue assimilar, ele rejeita, constituindo-se um movimento de atração e
repulsão. Para o autor, este sistema de violência e exclusão está relacionado
às proibições universais da sociedade, e é somente a partir da transgressão que
se tornam possíveis as vivências de erotismo, contemplação da morte e horror.
"O erotismo abre à morte. A morte abre à negação da duração individual.
Poderíamos, sem a violência interior, assumir uma negação que nos leva ao
limite de todo o possível?" (Bataille, [1957] 1960: 23).
Para
Bataille, o horror está vinculado à negação e ao estranhamento frente ao
desconhecido que produz no sujeito tanto atração quanto repulsa, pressuposto da
abjeção. Esta experiência interna, como a náusea, por ser uma experiência
afetiva, não tem limite e escapa ao domínio da cognição. Desta forma, a
subversão é o que dá autenticidade ao ser humano e é onde este consegue se
libertar da "carcaça" forjada pela repressão.
A
psicanalista Júlia Kristeva (1988), em uma análise da arte contemporânea,
retoma o conceito de abjeto de Georges Bataille propondo-o como inerente ao
sujeito: abjeção é aquilo que se produz de forma ameaçadora e não assimilável;
algo que solicita, inquieta, fascina o desejo.
Kristeva
(1988) desenvolve seu conceito de abjeto a partir da distinção de dois momentos
específicos da aquisição da linguagem no sujeito: semiótico e simbólico. O
semiótico diz respeito à fase pré-linguística da infância, na qual o corpo da
criança se compõe de zonas erógenas em constante processo de mudança, sem
identidade fixa, período no qual ela tenta, através do balbucio, se apropriar
da linguagem dos adultos pela imitação, em uma "linguagem" que, pela
falta dos sinais linguísticos necessários, se apresenta sem um sentido lógico e
convencional. A semiótica está associada ao corpo maternal como fonte de ritmos
e movimentos ainda desprovidos de significação e, por isso, operando na
materialidade do corpo.
O
simbólico está ligado à crise edípica e à aquisição da linguagem, na qual a
criança se reconhece como um "eu", assumindo sua posição na ordem
simbólica. O elemento simbólico possibilita a referência, pois está associado à
gramática e à estrutura de significação.
A
significação da linguagem para os sujeitos só se dá a partir da combinação
destes dois elementos, pois sem o simbólico toda a fala teria uma significação
delirante, mas é em função de seu conteúdo semiótico que as palavras dão
significado à vida.
É
justamente a estruturação do sujeito a partir da linguagem que marca a sua
instabilidade, sua descentralização, de forma que não pode ser concebido como
uma unidade, mas sim como um "sujeito em processo". É a cultura que
determina as posições do sujeito na sociedade, bem como seu inconsciente.
A
abjeção se constitui na heterogeneidade da linguagem entre o semiótico e o
simbólico: é uma trama torcida de afetos e pensamentos que não tem objeto
definível, tendo apenas uma qualidade de objeto que é a de ser oposto ao eu.
Mas se, por um lado, o objeto sedimenta o sujeito no desejo por um significado,
por outro o abjeto o leva em direção à impossibilidade de significação.
Para
Júlia Kristeva (1988), a abjeção está diretamente relacionada à função materna,
sendo que a alimentação recusada e expelida pela criança é uma das formas
visíveis e mais arcaicas da abjeção. Segundo ela, a abjeção é uma operação
psíquica através da qual se constituem as identidades subjetivas e de grupo,
pela exclusão daquilo que ameaça as fronteiras sociais e singulares. A fim de
nos tornarmos sujeitos, temos que abjetar o corpo materno, principal ameaça ao
sujeito em estruturação: para fazer-se nascer é necessário reagir através dos
soluços e vômitos.
O
que produz a abjeção é o que perturba a identidade, o que aponta para a
fragilidade daquilo que supostamente deveria salvar o sujeito da morte.
Delimitado na fronteira entre o eu e o outro, o interior e o exterior, a morte
e a vida, o abjeto não livra o sujeito daquilo que o ameaça, mas o mantém
constantemente em perigo, preservando o que existia na arcaica relação
pré-objeto, na violência da separação do corpo materno, na qual qualquer
significação desaparece e só o afeto imponderável é realizado: defesa contra
essa ameaça exorbitante, ao mesmo tempo tão tentadora a tão condenada, e por
isso repugnante.
O
abjeto traz em si a violência da lamentação de um objeto que sempre esteve
perdido e circula entre a pulsão de morte e a produção de uma nova
significação. Repetição incansável de um impulso que, produzido por uma perda
inicial, não para de insistir, apagando e retraçando incessantemente os limites
do eu.
Kristeva
(1988) vê na abjeção um modo que provoca, na arte contemporânea, profundas
mudanças, quando esta se refere à utilização do corpo como matéria e suporte de
investigação. O abjeto testa os limites da sublimação e afirma que o papel do
artista não é sublimá-lo, mas sim investigar, explorar, sondar a ordem social
em crise.
Os
procedimentos de incorporação do abjeto na arte contemporânea seguem
basicamente em duas direções: a primeira busca o objeto obsceno como uma forma
de aproximar-se da abjeção, a segunda representa a condição da abjeção,
explorando os efeitos metafóricos para provocar a sua essência repulsiva e
tornar reflexiva a sua operação.
Desta
forma, a arte contemporânea aproxima-se das noções de informe e de abjeto,
propostas por Bataille, o que resulta em uma arte disforme, na qual a
contemplação do sujeito se dá através de noções de ambiguidade e desdobramento.
O paradoxo da arte contemporânea consiste em integrar o discurso da abjeção,
reinserindo a questão do corpo na produção plástica.
Didi-Huberman
(1998) explicita que o valor de um objeto de arte, ou a potencialidade que
nosso olhar tem, frente a uma obra de arte, tem a ver com o que nela nos olha,
ou melhor, nas palavras do autor, "O que vemos só vale - só vive - em
nossos olhos pelo que nos olha" (Didi-Huberman, 1998: 29).
Para
este autor, o valor de uma imagem, ou o que nos olha nela, tem sempre o caráter
de uma perda, uma perda que nos concerne e que por isso nos persegue, mesmo que
seja por uma simples associação de ideias; desta forma, ver é sempre uma
operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, aberta.
Didi-Huberman
(1998) aponta para o jogo existente no "ver" entre o vazio e o
volume, sendo que a visão se choca sempre com o volume dos corpos, pois esses
são os primeiros objetos de todo o conhecimento e de toda a visibilidade, mas
também são coisas a tocar. Às vezes é preciso fechar os olhos para ver: quando
o visível é inelutável, um trabalho do sintoma atinge o corpo vidente e o cega.
Por outro lado, nos aconselha a abrir os olhos para experimentar o que não
vemos: o que não vemos funciona como evidência do visível.
A
cisão do olhar, evocada por este autor, encontra sua "situação
exemplar" no olhar de quem se acha frente a um túmulo: de um lado há a
evidência de um volume (uma massa de pedra, mais ou menos figurativa, mais ou
menos coberta de inscrições), de outro há uma espécie de esvaziamento (do
inevitável da existência, do esvaziamento da vida). Diante de um túmulo nossas
imagens nos remetem ao que o túmulo encerra, ou seja, à identificação com o
semelhante morto e à angústia de saber e, ao mesmo tempo, não saber o que vem a
ser o meu corpo entre o seu volume e o vazio que ele encerra.
Desta
forma, à frente de um túmulo abrem-se duas possibilidades de negação, duas
possibilidades de recalcamento da angústia: a primeira é ater-se ao que é
visto, ao volume visível, que é o exercício da tautologia, e a segunda é querer
superar imaginariamente tanto o que vemos quanto o que nos olha, que é o
exercício de uma crença.
Durante
muito tempo a "arte cristã" produziu inúmeras imagens que tratavam de
esvaziar o corpo da sua materialidade, reproduzindo túmulos (assim como o de
Cristo) esvaziados de seus corpos: a proposta era ver o que não se vê, ou seja,
não ver para crer.
De
outro lado, o homem da tautologia é exemplificado através da leitura de algumas
obras de artistas minimalistas dos anos 60, que procuravam, através da criação
de objetos específicos, renunciar a toda ilusão e toda a ficção para serem
vistos por aquilo que são.
Para
Didi-Huberman (1998), a atitude da crença e a atitude da tautologia mostram-se
como uma "luva do avesso" (de qualquer lado é sempre uma luva); ambas
sonham com um olho puro, um olho sem sujeito. Ambas buscam recusar à imagem o
seu poder de abertura, de onde ela se torna capaz de nos olhar.
É do
sujeito cindido da psicanálise que esse autor se utiliza para conceituar a
dialética do olhar. A teoria freudiana do fort da, que funda o sujeito no jogo
da simbolização, sustenta o ver como invariavelmente sustentado por uma perda.
A criança com o carretel, em jogo, nos coloca frente a um paradoxo: no jogar há
um momento de imobilidade mortal, um momento em que somos olhados pela perda e
ameaçados de perder-nos. "Estamos de fato entre um diante e um dentro. E
esta desconfortável postura define toda a nossa experiência, quando se abre em
nós o que nos olha no que vemos" (Didi-Huberman, 1998: 234).
As
imagens de arte sabem apresentar a dialética visual desse jogo infantil, pois
inquietam nossa visão, inventam lugares para essa inquietude e produzem uma
poética da "representabilidade".
Didi-Huberman
(1998) nos mostra que uma imagem dialética deve se apresentar sempre como uma
imagem crítica, ou melhor, uma imagem que critica a imagem e que relança a
nossa maneira de vê-la, obrigando-nos a olhá-la verdadeiramente. Assim, uma
imagem dialética não produz formas estáveis, mas deformações; não uma imagem a
ser lida, mas uma imagem a produzir imagens, a produzir história. Uma imagem
que possa abrir fendas no discurso, posições novas de sujeito na linguagem.
Transpondo
os conceitos que Didi-Huberman (1998) traz para a cena contemporânea, lança-se
a seguinte questão: o que nos olha atualmente na arte abjeta para que ela seja
um constante tema em algumas exposições? O que essa repetição nos diz?
Segundo
Seligmann-Silva (2005), a arte contemporânea busca, através da aproximação do
real, a apresentação da violência, das mudanças tecnológicas, sociais e
políticas às quais o sujeito vem sendo submetido na atualidade: "A arte
quer mostrar o i-limitado, sem medo da 'queimadura' que a visão do 'real'
implica. Esse 'corte' na fina película do 'real' representa na verdade um
momento no processo de dissolução das fronteiras que é característico do que se
convencionou denominar pós-modernidade" (Seligmann-Silva, 2005: 55).
Conforme
Júlia Kristeva (1988) aponta, o abjeto fragiliza nossas fronteiras,
problematizando tanto a subjetivação quanto os significados dados pela cultura;
portanto, não é estranho que os artistas sintam-se atraídos pela sua
potencialidade desestabilizadora dos sujeitos e da sociedade.
A
partir de montagens, sobreposições, justaposições, simulações de sangue,
excremento e vômito, o corpo é recriado, questionando os limites entre vida e
morte.
O
abjeto mostra-se através do excesso de realidade. As imagens não têm anteparos,
apresentam uma literalidade característica do evento traumático: ali, onde não
é possível representar, o que resta é a experiência da ferida. As marcas do
abjeto revelam na arte suas possibilidades contestadoras, subversivas e questionadoras
da cultura atual e das normas e condutas vigentes em nossa sociedade, pois, ao
tocar na fragilidade de nossas fronteiras, questionam o mundo imaginário de uma
fantasia capturada pelo consumismo e se colocam como uma recusa frente a essa
posição. Contudo, não podemos ser ingênuos em pensar que estas obras não cedem
à tentação do espetáculo e às garras interesseiras do capital, reproduzindo
assim exatamente o mesmo tom do que antes buscava questionar. Resta-nos, neste
processo de captura ideológica constante, acompanhar a singularidade de cada
percurso artístico e de suas obras e confrontá-las à história para saber se
ainda preservam a densidade suficiente para merecerem a nomeação, como dizia
Paul Valéry (1999), de obras do espírito.
REFERÊNCIAS
Agambem,
G. (2004). Image et mémoire - écrits sur l'image, la danse et le cinéma. Paris:
Desclée de Brouwer.
Bataille,
G. (1957/1960). El erotismo. Buenos Aires: Sur Editorial. Debord, G. (1997). A
sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.
Didi-Huberman,
G. (1998). O que vemos e o que nos olha. São Paulo: Ed. 34.
Kristeva,
J. (1988). Poderes de la perversión. México: Siglo Veintiuno.
Lessing, G. E. (1766/1990). Laocoon. Paris: Hermann.
Lipovetsky,
G. & Sebastien, C. (2004). Tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla.
Maffesoli,
M. (1995). A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios.
Maffesoli,
M. (1998). O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de
massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Maffesoli,
M. (2005). O mistério da conjunção. Ensaio sobre a comunicação, o corpo e a
sociedade. Porto Alegre: Sulina.
Nancy,
J.-L. (2003). Au fond des images. Paris: Editions Galilée.
Novalis. (1799-1800/2005). Art et utopie - les
derniers fragments. Paris: Editions Rue D'Ulm.
Seligmann-Silva,
M. (2005). O local da diferença - ensaios sobre memória, arte, literatura e
tradução. São Paulo: Editora 34.
Valéry,
P. (1999). Variedades. São Paulo: Iluminuras.
NOTAS
1
Lembra Jean-Luc Nancy (2003) que a palavra distinto, segundo a etimologia, é o
que é separado por suas marcas (esta palavra reenvia a stigma).
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