Maria
Angélica Melendi
Escola
de Belas Artes, UFMG
Dos o tres veces había reconstruido un
día entero; no había dudado nunca,
pero cada reconstrucción había requerido un
día entero.
Borges
...como num teatro verdadeiro, sem
disfarce e sem máscara, o dejeto como o cadáver me indicam aquilo que eu afasto
permanentemente para viver. Porque a abjeção é, em soma, o outro lado dos
códigos religiosos, morais, ideológicos sobre os quais repousam o sono dos
indivíduos e a calma das sociedades.
Kristeva
Lembro-me
Lembro-me
que, numa viagem a Itália no final dos anos 70, não cessava de reparar nas
placas pintadas, gravadas, esculpidas na pedra ou fundidas em bronze que
proliferavam nas ruas e vielas de grandes cidades e de pequenas aldeias. Não
conservo nenhuma fotografia - há coisas que não se fotografam-, mas a lembrança
das intermináveis listas de nomes das pessoas que tinham sido assassinadas
pelos fascistas, persiste. Numa esquina, num beco, no muro, na rua, os nomes,
que impregnavam os espaços urbanos com as memórias da morte,
multiplicavam-se, misturavam-se com
antigas inscrições romanas, medievais, renascentistas ou barrocas, dialogavam
com os grafites contestatórios e com os cartazes publicitários.
A
lembrança dessas inscrições, potencializada pelos acontecimentos dos mais de
vinte anos que se passaram entre aquela viagem e hoje, denuncia, a posteriori,
a existência latente de uma das preocupações centrais da cultura ocidental
contemporânea: a preservação da memória.
Naquelas
ruas italianas, saturadas pelas imagens de séculos de história, as simples
placas com as pequenas listas - às vezes eram três ou quatro nomes- alcançavam
uma visibilidade intensa. A simples enunciação: o fato, os nomes a data,
acionava os processos da memória ao mesmo tempo em que inscrevia, na cidade,
aquilo que a cidade não devia esquecer.
Memória total
Se o
século XX nasceu sob o mito das rupturas radicais - os manifestos dos
futuristas anunciavam a supremacia do mecânico sobre a beleza clássica e
propunham queimar as bibliotecas e inundar os museus - o século XXI começa
obcecado pela memória.
A
cultura modernista de acordo com Andreas
Huyssen, foi energizada por utopias de “futuros presentes” que poderiam
ser entendidos a partir da construção dos paradigmas de modernização, incluindo
neles as alegorias de purificação racial ou de classe que desembocaram nos
genocídios e nos massacres do século XX.
O ensaísta utiliza a noção oposta de “passados presentes” para pensar no
deslocamento na experiência e na sensibilidade do tempo que se opera a partir
da década de 80. Esses passados presentes, talvez formações reativas à globalização,
constituem-se através de uma musealização instantânea do espaço cultural e
apontam para um desejo impossível de recordação total[1].
A
conjectura de uma memória total, vislumbrada por Borges em Funes, el memorioso,
é aterradora. Ireneo Funes, que não só lembrava cada folha de cada árvore de
cada serra, mas cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado, não
era, porém, capaz de pensar.
Pensar es olvidar diferencias, es generalizar,
abstraer. En el abarrotado mundo de Funes no había sino detalles, casi
inmediatos[2].
O
excesso de memória bloquearia o pensamento crítico, pois imoderado amor ao
passado impede de viver o presente. Dessa maneira, a sociedade que conseguisse
a recordação total estaria paralisada, presa para sempre numa rede infinita de
lembranças, refém de uma interminável e
dolorosa rememoração de detalhes irrelevantes.
Memória ativa
Na
contemporaneidade, nos países latino-americanos, a memória invocada parece ser
de outra espécie. O termo memória ativa criado por Eva Giberti, aponta para uma
memória que se colocaria a serviço da justiça para se servir do passado sob o
domínio da vida.
De
acordo com Giberti,
La
memoria conserva la temperatura y la vibración imprescindibles para salir al
rescate de lo sucedido porque los seres humanos podemos quedar prisioneros de
esa realidade corrompida en la que, por efectos del tiempo y el olvido, se
desactivan los recuerdos de lo acontecido [...] porque cuando se carece de
memoria se pierde la responsabilidade personal e institucional[3].
Essa memória se constituiria a partir de uma
ação coletiva, consciente e constante que se faria efetiva através da
reclamação. Para Giberti, essa reclamação é a função maior de uma memória que
não cessa de se fazer ouvir. Uma memória
que restituiria as redes de sentidos e, ao repor o que falta, o que não está,
ou o que está no modo de não estar, resgataria do vazio aquilo que foi
subtraído. A memória ativa se constituiria, assim, como uma memória ativada que
permitira aos homens refazer a esgarçada trama dos dias, suturar as feridas
abertas pela violência do estado e
convocar para junto dos vivos os que já foram e os que ainda hão de
ser[4].
Para
o psicanalista argentino Hugo Vezzetti, seria necessário contribuir para um
trabalho de reconstrução da memória que nos envolva, que seja capaz de
interrogar e, eventualmente, alterar as certezas e os valores que contribuíram
a obscurecer a recuperação teórica desse passado. Nesse sentido, uma genealogia
da violência e da ilegalização das instituições do Estado não poderia estar
ausente de uma memória que deseje ser eficaz na construção de um futuro
diferente[5].
Os mundos do corpo
Em
1999, no Ars Eletrónica Festival, em Linz, Austria, entre fileiras e fileiras
de computadores de última geração, distinguia-se uma plataforma isolada do
público por uma corda de veludo. O que
não seria incomum em outra exposição, parecia muito estranho nessa mostra. Mais
ainda, uma placa com a palavra Verboten, mantinha o observador a distancia.
A
peça em questão era uma vitrine onde parecia acontecer uma partida de xadrez. (Como não evocar a foto da partida de
xadrez que Marcel Duchamp jogou com uma jovem nua detrás de uma vitrine, na década
de 60?) De um lado, uma máquina estava a ponto de movimentar a rainha branca. O
oponente era um homem cujos olhos azuis fixavam o tabuleiro. Mas o homem estava
esfolado, literalmente desprovido da pele e tinha seu cérebro exposto. Em toda
a extensão do seu corpo, músculos, tecidos e ossos eram visíveis. Mas, o mais terrível dessa cena, organizada num
claro contexto estético, era saber que o corpo do jogador era um cadáver
dissecado [6].
A
instalação, chamada Jogador de Xadrez, estava subintitulada como Arte
anatômica. O texto que acompanhava o trabalho descrevia uma nova descoberta
científica, um processo chamado plastination (do grego: tornar plástico). O
processo, desenvolvido no Instituto de Anatomia da Universidade de Heidelberg,
pelo anatomista Gunther von Hagens, como uma tentativa de aperfeiçoar o método
egípcio de embalsamamento através da conservação de substancias orgânicas por
meio de materiais plásticos, lograra manter inalteradas as células do
corpo e o relevo das superfícies até o
nível microscópico.
Em
1997, o Dr. von Hagens apresentou, pela primeira vez, em Manheim, no Museu da
Técnica e do Trabalho, na exposição Os mundos do corpo: Fascinação das Superfícies, mas de duzentos
cadáveres humanos conservados através
desse processo.
O mais notável, porem, é que esses corpos -
pretensos modelos anatômicos - foram esculpidos em pose de estátuas clássicas,
as vezes brandindo uma espada, outras esfolados, exibindo sua pele como um
troféu, abertos, expondo as próprias vísceras, ou jogando xadrez.
A
tradição do modelo anatômico, geralmente feito em cera, nascida na Renascença e
que perdurou até o século XIX., inseria-se na área da estética ou da teologia.
Essas imagens -além de esculturas eram produzidos desenhos e gravuras - eram
realizadas por artistas de renome e excediam as estritas intenções da
ilustração médica. Os médicos ou os cirurgiões da época não tinham a capacidade
de intervir sobre o corpo humano com os níveis de refinamento que as imagens
ofereciam. A principal meta da representação anatômica era, então, a exibição
da “suprema arquitetura” que residia na criação
divina.
Nosce
te ipsum, era o lema que guiava essas obras; a emblemática justificativa para a
produção dessas imagens. As poses da antigüidade greco-romana, ou da
iconografia cristã, eram recriadas pelos artistas anatomistas na forma de
écorchés, esfolados, como Smugglerius, Écorché of Man in the pose of the “Dying
Gaul”, Thomas Pink, 1775, ou a
Crucifixão anatômica, Thomas Banks, 1801.
Se
em Leonardo da Vinci já emergia, sob a pele humana, o anonimato da anatomia,
essa pulsão seria, depois, confirmada nas Lições de Anatomia de Rembrandt e, mais tarde, em Gericault,
desenhando nos morgues dos grandes hospitais, ou em David e Daumier que
registraram os espasmos dos condenados à guilhotina.
Mas
estes artistas e outros que seguiram seus passos, ainda permanecem no campo da
representação ou do simulacro. Von Hagens, porém, invocando as esculturas
anatômicas do passado, estetiza cadáveres humanos e os desloca de sua função de
objetos de estudo de anatomia, para o campo mais amplo e mais indefinido de objetos estéticos.
Quando
visitamos museus, esquecemos muitas vezes que somos testemunhas mudas percorrendo galerias que
conservam com impunidade os produtos
ilícitos das rapinas de guerra, dos massacres étnicos, da violação de túmulos,
do desmantelamento de santuários. E, se de alguma maneira, ainda tememos a
maldição da múmia, nos tranqüiliza saber que esses crimes e esses cadáveres se
perdem na noite dos tempos.
Mas
os corpos do Doutor Von Hagens são nossos contemporâneos e, mesmo que ele
ofereça todas as garantias da legalidade do seu trabalho - não cansa de repetir
que foram corpos doados à ciência -, nos inquietam e perturbam. As exposições
despertaram indignação em muitos dos lugares pelos que passaram, sendo
consideradas doentias e macabras. Em Berlim, a Igreja Católica Romana da
Alemanha rezou um réquiem pelas almas dos mortos.
É em
nome da ciência e não da arte, que o anatomista declara retirar os espécimes do
anfiteatro anatômico e exibi-los pelo mundo. É em nome da ciência e não da arte
que ele se propõe a criar um museu de corpos. Sua intenção é vã, os corpos
plastinados exibem topos artísticos demais para serem considerados objetos
científicos contemporâneos. Por mais que o anatomista declare que seu trabalho
pertence ao campo da ciência, suas obras são preciosas e intocáveis como
objetos de arte e como objetos de arte são vistas e debatidas pelo sistema.
Nas
últimas décadas, as artes visuais que, segundo Schopenhauer, se constituíam
como um espaço de suspensão da dor de viver, tornaram-se o campo da dor e da
morte. A arte nunca é imoral, lembra Paul Virilio, mas abandonar todo pudor,
toda reserva, não é uma atitude imoral, é uma atitude perigosa[7].
To abject/to be abject
De
acordo com Julia Kristeva, o abjeto é aquilo do que o eu deve se liberar para
vir a ser um eu. Uma substancia fantasmática, alheia ao sujeito, mas íntima a
ele, tão íntima que sua proximidade produz pânico. O abjeto aponta para a
fragilidade de nossos limites corporais, para a precariedade da distinção
espacial entre dentro e fora, assim como para a passagem temporal do interior
do corpo materno a exterioridade da lei do pai. Espacial e temporalmente, a
abjeção é uma condição na qual a subjetividade é problematizada e o sentido
entra em colapso[8].
Uma
das questões da arte contemporânea é a possibilidade de representação do
abjeto, caberia pois, se perguntar se é lícito exibir na cultura aquilo que se
opõe radicalmente à cultura. A arte abjeta parece não poder evitar o uso
instrumental e portanto moralista do abjeto.
Assim,
haveria duas possíveis direções: a primeira é a de se identificar com o abjeto
e se aproximar dele de alguma maneira, para dar testemunho da ferida, do
trauma. A outra é representar a condição da abjeção para provocar sua operação,
para capturar a abjeção no ato, faze-la reflexiva, ainda que repulsiva por
direito próprio.
O
corpo desperdício, o corpo resíduo que a arte contemporânea nos apresenta -
mímesis, simulacro ou índice -, emerge da abjeção de suas próprias secreções e
excreções. O que sai do corpo, dos seus poros e dos seus orifícios marca a
infinitude desse corpo e provoca a abjeção. Como uma estranha floração, que não
cessa de brotar e cair de um corpo que subsiste nesse estado permanente de
perda, fezes, urina mas também cabelos,
unhas,
restos de pele, saliva, sêmen, separam-se do
corpo para se transformarem indícios, em testemunhas eternas de sua
ausência.
Mas
o que mais assume a abjeção do dejeto é o cadáver, elemento híbrido entre o
animado e o inorgânico, um corpo sem
alma, um não-corpo. O cadáver, aquilo
que caiu, que se desprendeu da vida, transforma violentamente a identidade de
quem o confronta.
È a
morte infestando a vida. Abjeto. É algo rejeitado do qual a gente não se
separa, do qual a gente não se protege da mesma maneira que de um objeto[9]
O
abjeto perturba uma identidade, um sistema, uma ordem, não respeita limites,
lugares, regras. É a ameaça do real que nos atrai e acaba por nos devorar.
Uma
pietas contemporânea
Em 1989, a imagem um pouco
desfocada de um crucifixo que se vislumbra, apenas, envolto por um halo de
borbulhas, num campo vermelho, perturbou o mundo das artes. O monocromatismo da
fotografia - a cruz e as pequenas bolhas aparecem numa tonalidade rebaixada,
entre vermelho claro e laranja intenso-, outorgam um aspeto reverencial ao
trabalho. O título, porém, desconstrói a imagem do ícone religioso ao apontar
para um campo de sentido que não exclui a profanação e a blasfêmia. De fato, Piss Christ, 1987, foi proclamado
blasfemo pela American Family Association que organizou uma campanha junto ao
Congresso dos Estados Unidos com o objetivo controlar a distribuição dos fundos
públicos para o apoio das artes.
O autor dessa fotografia, Andrés
Serrano, norte-americano de origem hispânica e formação católica, é fascinado
por religião, por ícones religiosos e pelas releituras kitsch dos mesmos.
O
artista começou seu trabalho apresentando imagens monocromáticas à maneira das
pinturas modernistas. Grandes fotografias de espaços vermelhos, amarelos ou
brancos que ao serem contextualizados como sangue, urina e leite eram
deslocados do puro conteúdo formal para um campo de sentidos corporal.
Na
série Morgue (Cause of death), 1992, Serrano fotografa os cadáveres num necrotério. As grandes fotografias exibem
enormes fragmentos de corpos mortos, detalhes do que não queremos ver, do
secreto, do proibido.
O
tratamento teatral, estetizado - um fundo negro suntuoso, uma iluminação
dramática - contrasta com a da crueza da morte violenta. As imagens, que num
primeiro momento desafiam nossa capacidade de ver, em seguida, pela sua
compulsiva beleza, nos impedem de desistir de olhar.
Da
mesma maneira, as fotografias de Joel-Peter Witkin constituem-se como alegorias laicas de sacrifício, danças da
morte encenadas por um visionário profano.
Uma
verdadeira corte dos milagres atravessa suas imagens:
Doentes,
transexuais antes de serem operados, fenômenos de feira em atividade ou
aposentados, indivíduos dotados de rabos, chifres, assas, barbatanas, garras,
pés ou mãos invertidos, membros elefantinos, indivíduos que possuem um
guarda-roupa completo de borracha, coleções privadas de instrumentos de
tortura, de histórias de amor, de órgãos de animais, de seres humanos, ou
provenientes de criaturas estranhas. Aqueles que portam os estigmas de
Cristo[10].
As
fotografias do artista transitam por um território erótico e majestoso de
imolação e sacramento, onde o sentido naufraga. Em algum ponto entre o
sofrimento indizível do Cristo crucificado e a abjeção das torturas e dos
genocídios contemporâneos, o ser humano parece atingir as profundezas abissais
de um mal que não cessa.
As
obras de Andrés Serrano e de Joel-Peter Witkin, enquanto testemunhas do horror,
mostram-nos os limites da condição humana e, ao provocar a perda simbólica do
eu, proporcionam-nos os meios de recriar e de reencontrar nosso eu. Ao se
identificar com a abjeção, as imagens desses artistas alcançam uma pietas rara
na contemporaneidade.
Memória
dos corpos
O
discurso da memória, minado incessantemente por um desejo de esquecimento que
se alimenta do medo e da culpa, aparece como um subtexto na obra de vários
artistas contemporâneos. Para eles, as experiências extremas do genocídio e da
diáspora latino-americana, que culminaram no episódio atroz da desaparição de
milhares de pessoas sob as ditaduras militares, implementado através de brutais
e sofisticados processos de esquecimento e sutis políticas de amnésia
reconduzem a questão da memória a partir dos efeitos do poder sobre os corpos.
As
práticas de tortura, assassinato e desaparecimento perpetradas pelos regimes
ditatoriais do continente, a epidemia da Aids, e a crescente violência dos
grandes núcleos urbanos, conceitualizam o corpo como um lugar onde se
consumaria uma batalha que
ultrapassaria as suas próprias margens e que
exibiria, nos seus fragmentos, resíduos de violência e rastros de traumas.
A
irracionalidade e a injustiça da dominação reaparecem como crueldade, na
relação do sujeito com o corpo, seja o seu e o seja o do outro. De acordo com
Adorno e Horkheimer, o amor-ódio pelo corpo impregna toda a cultura moderna,
que o reconhece como um bem a ser
possuído e, assim, distingue-o do espírito, lugar do poder. O corpo como objeto
é uma coisa morta, corpus, cadáver,
tabu, objeto de atração e repulsão[11].
O
corpo, como lugar de interdição, é ardentemente desejado, ao mesmo tempo em
que, por ser considerado inferior e servil, é menosprezado e maltratado.
Exibido como lugar do sofrimento e da exclusão, doente ou ferido, repulsivo, às
vezes morto, o corpo denuncia uma condição de abjeção.
Nessa
perspectiva a abjeção é um gesto político, que implica a narração e a exposição
do corpo humilhado, do corpo-cadáver, e o retorno permanente de um corpo
hipersignificado, que funciona como um suporte eficaz para a política cultural
da sociedade pós-industrial. Sintetiza-se, nesse gesto, um sintoma obsessivo - que seria da ordem do patológico
-, e um reconhecimento da eficácia concreta da memória na busca do corpo ausente, do corpo subtraído -
literal ou metaforicamente - pelo aparato do Estado.
Semear
a memória
O
artista argentino Edgardo-Antonio Vigo, opõe-se à representação da abjeção.
Vigo é um pioneiro, na América Latina, do que foi conhecido, mais tarde, como
arte conceitual. Seu conceitualismo, porém, desconstruía os paradigmas sobre as
fontes de instrumentação da obra de arte e as relações do artista e da obra com
os espectadores. Os conteúdos políticos dessas primeiras obras limitavam-se ao
questionamento do sistema das artes, da crítica e do mercado. As circunstâncias
sociais e políticas da Argentina dos 70 e sua circunstância pessoal levaram
Vigo a adotar uma postura fortemente
engajada.
O
Mail-Art, Post-Art ou Arte Postal ¾ Vigo prefere Comunicación a distancia vía
postal ¾ foi criado por Ray Johnson, no começo dos anos 60. Johnson criou um
circuito via postal, incorporando certas práticas dos futuristas, dos dadaístas
e dos surrealistas. Esses artistas confeccionavam e enviavam cartões postais
irônicos, interferindo sobre as imagens com textos, desenhos, pinturas ou
colagens. Um fluxo de Arte Postal tinha começado a circular pelo mundo, com as
seguintes instruções: add to and return to Ray Jonhson.
Desde
La Plata, Vigo integra-se a essa rede, que incluía vários artistas e poetas
visuais latino-americanos: o chileno Guillermo Deisler, já falecido, Clemente
Padín, uruguaio, Mathias Goeritz, mexicano, Dámaso Ugaz, venezuelano.
O
desaparecimento do seu filho mais velho, Abel Luis, o Palomo, faz com que Vigo,
através desse circuito de Comunicación a distancia via postal, difunda, no
exterior, informações sobre as atrocidades cometidas pela ditadura argentina.
Selos com o nome do filho, postais e cartas são enviados para todos os cantos
do mundo, numa corrente de indignação e esperança. Nesse período, o artista
participa das mobilizações das Madres de Plaza de Mayo e promove a criação do poema coletivo Sembrar
la memória para que no crezca el olvido, que se transformaria no lema das
Madres.
Para
ele,
Há
coisas, como a violência, que tem um sentido muito real. Essas coisas podem se
comunicar só através da enunciação. Penso
que a violência não tem que ser representada num ato criativo. Eu não posso ser testemunha da tortura nem
obrigar os outros a sê-lo[12].
Quando
as realidades físicas da tortura e da abjeção se impõem, Vigo recusa-se a
encená-las. Para o artista, o ato da enunciação deve bastar. A violência não
pode ser reproduzida como um ato criativo. Só a subversão das palavras
permitiria o distanciamento e a
resistência.
Corpos
espetaculares/ corpos ausentes
A
obra da artista visual brasileira Rosângela Rennó aponta, através da
desconstrução de arquivos fotográficos, para a reatualização de memórias
apagadas pelos processos amnésicos da sociedade pós-industrial.
A
Série Vermelha, 2000, é constituída por retratos de homens, jovens e meninos em
uniforme militar. Soldados russos, prussianos, norte-americanos, brasileiros,
membros da Juventude Nazista, alunos do Colégio Militar posam solitários,
hieráticos, contra um fundo neutro.
As
fotografias de figuras masculinas fardadas, extraídas de álbuns de família que
a artista coleciona, abarcam um arco temporal que vai de finais do século XIX
até a década de 60 do século XX. Rennó refotografou as imagens, tratou-as
para que perdessem o contraste e as virou para um intenso vermelho
sangre.
De
acordo com a artista, essas fotos são exemplos do retrato burguês, mas, a
posteriori, as imagens refotografadas proliferam sentidos e apontam para um
universo significativo do qual pareciam estar afastadas. Destinadas à
rememoração íntima dos afetos, esquecidas, depois, junto com o álbum de família
em algum canto da casa e, finalmente, vendidas em mercados de antigüidades, as
imagens dos homens e dos meninos fardados, alcançam uma visibilidade outra.
Tristemente
enfileirados, os vultos militares emergem das grandes fotos laminadas,
sinistros e distantes, sombras que apenas se vislumbram na rica superfície
escarlate. Como uma memória da abjeção, encharcados em sangue, atravessam o
século. Uma genealogia da violência alinhava-se nessas imagens aparentemente
inocentes.
Não
podemos deixar de pensar que lá, na nossa casa, uma caixa esquecida, um álbum
olvidado deve conservar alguma imagem semelhante. O tio avô, aquele primo
distante orgulhoso na sua farda, posando naquele retrato feito para
salvaguarda-lo do aniquilamento espiritual.
A
Série Vermelha, ao recortar de cada álbum de família uma figura fardada e ao
reinseri-la em outra série (outro álbum de família), aponta para uma
retificação da memória. O trabalho de Rennó deixa entrever, para além da
brilhante superfície vermelha, as imagens dos corpos que não podem ser
representados, que não suportam a visão, que não podem se constituir como
imagem. Solitários, mas juntos, esses corpos espetaculares apontam, de viés,
para a memória dos corpos ausentes.
[1] Huyssen, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio
de Janeiro: Aeroplano, 2000. p.7.
[2]
Borges, Jorge Luis. Obras Completas. 1923-1972. Buenos Aires: Emecé, 1981.p.490
[3]
Giberti, Eva. Memoria Activa. Publicado en Pagina 12, diciembre de 1992.
http://spot.net.ar/evagiberti/artículos
[4]
Cf. Terán, Oscar. Tiempos de Memoria. In Punto de Vista n.68, p.12.
[5]
Cf. Vezzetti, Hugo. La memoria nos involucra. www.pagina12.com.ar/
[6] Newman, Marisa. Chess Players Stripped Bare by the
Scientists, Even . http://residence.aec.at/rhizome/12.html.
[7] Virilio, Paul. A Bomba Informática. São
Paulo: Estación Liberdade, 1999. p.53.
[8] Foster, Hal. The Return of the Real. Cambridge:
The MIT Press, 1997. p.153.
[9] Kristeva, Julia. Poderes de la perversión.
Buenos Aires: Catálogos/Século XXI, 1988. p10.
[10] Witkin, Joel-Peter. Joel-Peter Witkin. Coleción
Photo Poche. Introdución por Eugenia Parry Janis. Paris: Centre National de la
Photographie, 1991.s/n
[11] Cf. Adorno, Theodor W. e Horkheimer, Max. Dialética do Esclarecimento:
fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985. p.217.
[12]
Entrevista concedida por Edgardo-Antonio Vigo à autora, junho de 1997.
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