Mentícidio¹ e normopatia² são dois termos
usados na psicologia, e acredito que podem ser ampliados para outras searas,
como economia, religião, entre outros. O subtítulo é obviamente a limitação
destes dois termos para um campo específico, o mundo libertário, a música, e
como muitas pessoas que se intitulam libertários comportam-se como policiais.
A música, o som e o ouvinte: Por que quase não há discussão sobre o
motivo de escutarmos punk (ou qualquer outro subgênero do punk) no meio dito
anarquista? Por que os anarquistas (uma parte deles) escutam música punk? Por
que a música de protesto jovem hoje, quase em sua totalidade, está associada ao
rock and roll, punk, etc. O que está sendo comemorado em apresentações com
bandas ditas de protesto/punk? Existem limites dentro do gênero punk?
Essas questões dariam, cada uma delas, longas
discussões. Assim, coloco-as como ponto de partida para podermos pensar mais
especificamente, o que é música, som e escuta e como muitas vezes esses
conceitos são utilizados como pretexto para reforçar o capitalismo, incentivar
o consumismo nonsense. O som não tem o mesmo sentido para todos os que o
escutam. A música, mais ampla, coletânea de sons, muito menos. Assim sendo, conseguimos
fazer uma primeira diferenciação de música e som.
O som é uma construção lógico-subjetiva do
ouvinte, uma percepção de fenômenos físicos. A música é a construção da ideia
sobre sons, uma representação racional que constrói uma estrutura contendo
valores semânticos e linguísticos, entre outros. Já o ouvinte é o resultado da
interpretação dos dois primeiros conceitos, o resultado de uma ideia musical. É
aqui, na escuta – ato do ouvinte - ouvir, que por meio de uma idealização
musical, o som entra na seara político-moral e torna-se música.
Partindo dessas proposições e muitas outras
que caberiam aqui³ podemos agora pensar nosso comportamento diante de uma gig e
como ela, muitas vezes, é a reprodução dos nossos comportamentos no cotidiano.
Cabe a quem está lendo o texto refletir sobre onde está a hierarquização na gig
(cantor, vendedores de apetrechos, dono do lugar), separação por gêneros (meninas
e meninos organizados em grupos), entre outros aspectos, e porque são dessa
forma.
É claro que quase nada no mundo é oferecido
de graça, mas para quem favorece o dinheiro gasto? Quem está no fim lucrando
com uma gig? Uma ponta certamente é o dono da empresa que fabrica cervejas, as
empresas que fabricam instrumentos musicais, o dono do local, e várias pessoas
de shoppings centers fabricando apetrechos bonitos, acredito que você já
entendeu onde quero chegar. Aqui devemos nos questionar o motivo de ser assim e
a razão disso ser aceito/tolerado dentro de um contexto que pretende agir de
maneira diferente de um evento extremamente opressor; como os festivais de
música brasileiros. Por exemplo, porque não tentar entender e construir seus
próprios instrumentos, construir amplificadores, criar novas maneiras de fazer
música, é verdade que vamos chegar a um ponto que somente a indústria tem
controle, como produção de chips, capacitores, etc. Mas mesmo assim podemos ter
mais liberdade em não ser enganados e difundir conhecimento ao contrário de
pagar por fetiches inventados pela Korg ou Marshall. Ou seja, se apropriar dos
instrumentos antes que eles se apropriem da gente. Deve-se, antes de tudo,
pensar nosso mundo para querer fazer parte de outros, ou você constrói sua vida
ou sua vida será construída por um publicitário anarco-capitalista da Nike.
Acredito que podemos romper com a sociedade de consenso, reflexo desta
sociedade é encontrado muitas vezes, por exemplo, quando um vocalista de 40
anos de cena faz um discurso moralista usando técnicas de cooptação afetivas e
o público aplaude porque gosta da música por ele vomitada. Percebe-se que só
porque se criaram medidas sociais (40 anos de cena, música barulhenta, tocando
em gigs) a pessoa sempre estará defendendo um mundo livre. Pelo contrário,
muita música considerada de protesto/inteligente/libertária é apenas um reforço
positivo para esse mundo porco.
Vamos invadir o
palco e limpá-lo quando tudo estiver destruído!
A arte perigosa não é aquela admirada pelo
ouvido doente que deseja ouvir com outro ouvido, quem faz isso morre cedo ou
cairá em depressão. A arte perigosa te faz querer tomar a guitarra, o
microfone, o baixo, a bateria e tudo o mais e criar sua própria experiência
sonora.
Se a função de uma gig organizada
que não é patrocinada por empresas, por editais governamentais, mas realizada
por gente que acredita na liberdade e frequentada por pessoas que desejam ser
livres, então a função do artista deve ser comunal, sem barreira alguma, sem
massagem egoica. Pois o contrário seja banda grindcore ou noisecore, sempre
será apenas um mediador de experiência para o consumo. Música consumível com
rótulo bonito. No entanto, esvaziada de valores semânticos.
Nem todos precisam ser músicos,
tocar, etc... Mas é importante que a relação artista-público seja construída de
forma não hierarquizada, só assim, podemos começar a falar em liberdade.
1.
Mentícidio:
Sistemática e intencional
destruição da mente consciente pessoal com o propósito de instilar dúvida e
substituí-la por idéias e atitudes diretamente opostas às idéias e atitudes
normais, sujeitando as pessoas a torturas mentais e físicas, a extensos
interrogatórios, sugestões, treinamentos e narcóticos. 2 Tipo de aculturação de
povos primitivos que os leva a perderem seus valores mentais característicos e
a desaparecerem como grupo étnico definido.
2.
Normopatia
O psicanalista Christopher Bollas criou a
ideia da normopatia para descrever pessoas que tem tal nível de fixação em se
integrar socialmente e de acordo com as normas que isso se torna um tipo de
vício. Uma pessoa normopata geralmente tem uma fixação não-saudável em não ter
uma personalidade própria, e age exatamente de acordo com as expectativas da
sociedade. Normopatia extrema é caracterizada por revoltas com as normas,
quando o normopata cede à pressão do conformismo e se torna violento ou tem
atitudes bastante perigosas. Muitas pessoas experimentam uma normopatia amena
em diferentes fases da vida, especialmente quando tenta se adequar a uma nova
situação social, ou quando tentam esconder comportamentos que eles acreditam
que outras pessoas condenarão.:
3.
Leia
artigo já publicado neste blog: Improvisação livre na música e capitalismo: a
resistência à autoridade e o culto pelo cientificismo e a celebridade
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