Tradução de Du mode
d’existence des objets techniques (Gilbert Simondon, Paris: Aubier-Montaigne,
2008 [1958]), por Pedro Peixoto Ferreira (tradução) e Christian Pierre Kasper
(revisão). Paginação original e notas dos tradutores (NT) entre colchetes.
Notas de rodapé são indicadas no corpo do texto com número entre parênteses e
exibidas, em parágrafo separado (logo após o parágrafo no qual elas ocorrem),
entre colchetes e em tamanho de fonte menor.
A existência dos objetos técnicos
e as condições de sua gênese colocam ao pensamento filosófico uma questão que
ele não pode resolver pela simples consideração dos objetos técnicos em si
mesmos: qual é o sentido da gênese dos objetos técnicos com relação ao conjunto
do pensamento, da existência do homem e de sua maneira de ser no mundo? O fato
de que existe um caráter orgânico do pensamento e do modo de ser no mundo
obriga a supor que a gênese dos objetos técnicos tem repercussão sobre as
outras produções humanas, sobre a atitude do homem com relação ao mundo. Mas
esta é apenas uma maneira lateral e muito imperfeita de colocar o problema ao
qual conduz a manifestação dos objetos técnicos como realidade submissa à
gênese e tendo por essência verdadeira apenas as linhas desta gênese. Com
efeito, nada prova que seja aí uma realidade independente, a saber o objeto
técnico tomado como tendo um modo de existência definido.
Se este modo de existência é definido
porque ele provém de uma gênese, esta gênese que engendra objetos talvez não
seja apenas a gênese de objetos, ou mesmo a gênese da realidade técnica: talvez
ela venha de mais longe, constituindo um aspecto restrito de um processo mais
vasto, e talvez ela continue a engendrar outras realidades depois de ter feito
aparecer os objetos técnicos. É, portanto, a gênese de toda a tecnicidade que
será preciso conhecer, aquela dos objetos e aquela das realidades não
objetificadas, e toda a gênese implicando o homem e o mundo, de que a gênese da
tecnicidade talvez não seja mais que uma pequena parte, apoiada e equilibrada
por outras gêneses, anteriores, posteriores ou contemporâneas, e correlativas
daquela dos objetos técnicos.
É, portanto, em direção a uma interpretação
genética generalizada das relações entre o homem e o mundo que é preciso rumar,
para entender o alcance filosófico da existência dos objetos técnicos.
Entretanto, a noção mesma de
gênese merece ser precisada: a palavra gênese é entendida aqui no sentido
definido no estudo sobre A individuação à luz das noções de forma e de
informação, como o processo de individuação na sua generalidade. Há gênese
quando o devir de um sistema de realidade primitivamente supersaturado, rico em
potenciais, superior à unidade e contendo uma incompatibilidade interna,
constitua para este sistema uma descoberta de compatibilidade, uma resolução
por advento de uma estrutura. Esta estruturação é o advento de uma organização
que é a base de um equilíbrio de metaestabilidade. Uma tal gênese se opõe à
degradação das energias potenciais contidas num sistema, por passagem a um
estado estável a partir do qual nenhuma transformação é mais possível.
Nossa hipótese geral sobre o
sentido de devir da relação do homem com o mundo consiste em considerar como um
sistema o conjunto formado pelo homem e o mundo. Esta hipótese não se limita,
entretanto, a afirmar que o homem e o mundo formam um sistema vital, englobando
o vivo e seu meio; a evolução poderia, com efeito, ser considerada uma
adaptação, isto é, a busca de um equilíbrio estável do sistema por redução da
distância entre o vivente e o meio. Ora, a noção de adaptação, com a noção de
função e de finalidade funcional que lhe está ligada, levaria a conceber o
devir da relação entre o homem e o mundo como tendendo para um estado de
equilíbrio estável, o que não parece correto no caso do homem, e talvez nem
mesmo no de qualquer ser vivo. Se quisermos conservar um fundamento vitalista
para esta hipótese do devir genético, poderíamos apelar à noção de impulso
vital apresentada por Bergson. Ora, esta noção é excelente para mostrar aquilo
que falta à noção de adaptação frente a uma interpretação do devir vital, mas
ela não concorda com ela, e subsiste um antagonismo sem mediação possível entre
a adaptação e o impulso vital. Estas duas noções opostas parecem poder ser
substituídas, no par que elas formam, pela noção de individuação dos sistemas
supersaturados, concebida como resoluções sucessivas das tensões por
descobertas de estruturas no seio de um sistema rico em potenciais. Tensões e
tendências podem ser concebidas como existindo realmente num sistema: o
potencial é uma das formas do real, tão completamente quanto o atual. Os
potenciais de um sistema constituem seu poder de devir sem se degradar; eles
não são a simples virtualidade dos estados futuros, mas uma realidade que as
impulsiona a ser. O devir não é a atualização de uma virtualidade, nem o
resultado de um conflito entre realidades atuais, mas a operação de um sistema
possuindo potenciais em sua realidade: o devir é a série de acesso de
estruturações de um sistema, ou as individuações sucessivas de um sistema.
Ora, a relação do homem com o
mundo não é uma simples adaptação, regida por uma lei de finalidade autorreguladora
encontrando um estado de equilíbrio cada vez mais estável; a evolução desta
relação, da qual participa a tecnicidade entre outros modos de ser, manifesta
ao contrário um poder de evolução que vai crescendo de etapa em etapa,
descobrindo formas e forças novas capazes de fazê-lo evoluir mais, ao invés de
estabilizá-lo e fazê-lo pender para flutuações cada vez mais restritas; a
própria noção de finalidade, aplicada a este devir, parece inadequada, pois
podemos certamente encontrar finalidades restritas ao interior deste devir
(busca de alimento, defesa contra as forças destrutivas), mas não há um fim
único e superior que possamos sobrepor a todos os aspectos da evolução para
coordená-los e dar conta de sua orientação pela busca de um fim superior a
todos os fins particulares.
É por isso que não é proibido
apelar a uma hipótese que faz intervir um esquema genético mais primitivo do
que os aspectos opostos da adaptação e do impulso vital, e que inclui ambos
como casos limite abstratos: aquele das etapas sucessivas de estruturação
individuante, indo de estado metaestável em estado metaestável por meio de
invenções sucessivas de estruturas.
A tecnicidade se manifestando
pelo emprego de objetos pode ser concebida como aparecendo numa estruturação
que resolve provisoriamente os problemas colocados pela fase primitiva e
originária da relação do homem com o mundo. Podemos chamar esta primeira fase
de fase mágica, tomando esta palavra no sentido mais geral e considerando o
modo mágico de existência como aquele que é pré-técnico e pré-religioso,
imediatamente acima de uma relação que seria simplesmente aquela do vivente com
seu meio. O modo mágico de relação com o mundo não é desprovido de toda
organização: pelo contrário, ele é rico em organização implícita, ligada ao mundo
e ao homem: nele, a mediação entre o homem e o mundo ainda não está
concretizada e constituída à parte por meio de objetos ou de seres humanos
especializados, mas ela existe funcionalmente numa primeira estruturação, a
mais elementar de todas: aquela que faz surgir a distinção entre figura e fundo
no universo. A tecnicidade aparece como uma estrutura resolvendo uma
incompatibilidade: ela especializa as funções de figura, enquanto as religiões,
por outro lado, especializam as funções de fundo: [157] o universo mágico
originário, rico em potenciais, se estrutura ao se desdobrar. A tecnicidade
aparece como um dos dois aspectos de uma solução dada ao problema da relação do
homem com o mundo, o outro aspecto simultâneo e correlativo sendo a instituição
das religiões definidas. Ora, o devir não para com a descoberta da tecnicidade:
de solução, a tecnicidade se torna novamente um problema quando ela reconstitui
um sistema pela evolução que conduz dos objetos técnicos aos conjuntos
técnicos: o universo técnico se satura e depois se supersatura ao mesmo tempo
em que o universo religioso, como o havia feito o universo mágico. A inerência
da tecnicidade aos objetos técnicos é provisória; ela constitui apenas um
momento do devir genético.
Ora, segundo esta hipótese, a
tecnicidade não deve jamais ser considerada uma realidade isolada, mas parte de
um sistema. Ela é realidade parcial e realidade transitória, resultado e
princípio de gênese. Resultado de uma evolução, ela é depositária de um poder
evolutivo, precisamente porque ela possui como solução de um primeiro problema
o poder de ser uma mediação entre o homem e o mundo.
Esta hipótese implica em duas consequências:
primeiro, a tecnicidade dos objetos ou do pensamento não poderia ser
considerada como uma realidade completa ou como um modo de pensar possuindo sua
verdade própria a título independente; toda forma de pensamento ou todo modo de
existência engendrado pela tecnicidade exigiriam ser completados e equilibrados
por um outro modo de pensamento ou de existência proveniente do modo religioso.
Segundo, uma vez que a aparição
da tecnicidade marca uma ruptura e um desdobramento na unidade mágica
primitiva, a tecnicidade, como a religiosidade, herda um poder de divergência
evolutiva; no devir do modo de ser do homem no mundo, esta força de divergência
deve ser compensada por uma força de convergência, por uma função relacional
mantendo a unidade apesar desta divergência; o desdobramento da estrutura
mágica não seria viável se uma função de convergência não se opusesse aos
poderes de divergência.
É por estas duas razões que é
necessário estudar de onde vem a tecnicidade, aonde ela chega e quais relações
ela mantém com os outros modos de ser no mundo do homem, isto é, como ela se
oferece às funções de convergência.
Ora, o sentido geral do devir
seria o seguinte: as diferentes formas de pensamento e de ser no mundo divergem
quando elas acabam de aparecer, isto é, quando elas não são saturadas; depois
elas reconvergem quando estão supersaturadas e tendem a se estruturar por novos
desdobramentos. As funções de convergência podem se exercer graças à
supersaturação das formas evolutivas do ser no mundo, no nível espontâneo do
pensamento estético e no nível reflexivo do pensamento filosófico.
A tecnicidade se supersatura ao
incorporar, pela segunda vez, a realidade do mundo ao qual ela se aplica; a
religiosidade, ao incorporar a realidade dos grupos humanos para os quais ela
intermedia a relação primitiva com o mundo. Assim supersaturada, a tecnicidade
se desdobra em teoria e prática, como a religiosidade se separa em ética e em
dogma.
Existiria, assim, não somente uma
gênese da tecnicidade, mas também uma gênese a partir da tecnicidade, por
desdobramento da tecnicidade original em figura e fundo, o fundo correspondendo
às funções de totalidade independentes de cada aplicação dos gestos técnicos,
enquanto que a figura, feita de esquemas definidos e particulares, especifica
cada técnica como maneira de agir. A realidade de fundo das técnicas constitui
o saber teórico, enquanto que os esquemas particulares geram a prática. São, ao
contrário, as realidades de figura das religiões que se constituem em dogma
coerente, enquanto que a realidade de fundo se torna ética, desligada do dogma;
entre a prática proveniente das técnicas e a ética proveniente das religiões,
como entre o saber teórico das ciências, vindo das técnicas, e o dogma
religioso, existe ao mesmo temo uma analogia, vinda da identidade do aspecto
representativo ou ativo, e uma incompatibilidade, oriunda do fato de que estes
diferentes modos de pensamento vêm, seja de realidades de figura, seja de
realidades de fundo. O pensamento filosófico, intervindo entre as duas ordens
representativas e as duas ordens ativas do pensamento, tem por sentido fazê-las
convergir e instituir entre elas uma mediação. Ora, para que esta mediação seja
possível, é preciso que a própria gênese dessas formas do pensamento seja
completamente conhecida e realizada a partir das etapas anteriores da
tecnicidade e da religiosidade; o pensamento filosófico deve, portanto, retomar
a gênese da tecnicidade, integrada no conjunto dos processos genéticos que a
precedem, a seguem e a rodeiam, não apenas para poder conhecer a própria
tecnicidade, mas a fim de entender, em suas próprias bases, os problemas que
dominam a problemática filosófica: teoria do saber e teoria da ação, em relação
com a teoria do ser.
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