quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Essência da tecnicidade


Tradução de Du mode d’existence des objets techniques (Gilbert Simondon, Paris: Aubier-Montaigne, 2008 [1958]), por Pedro Peixoto Ferreira (tradução) e Christian Pierre Kasper (revisão). Paginação original e notas dos tradutores (NT) entre colchetes. Notas de rodapé são indicadas no corpo do texto com número entre parênteses e exibidas, em parágrafo separado (logo após o parágrafo no qual elas ocorrem), entre colchetes e em tamanho de fonte menor.
A existência dos objetos técnicos e as condições de sua gênese colocam ao pensamento filosófico uma questão que ele não pode resolver pela simples consideração dos objetos técnicos em si mesmos: qual é o sentido da gênese dos objetos técnicos com relação ao conjunto do pensamento, da existência do homem e de sua maneira de ser no mundo? O fato de que existe um caráter orgânico do pensamento e do modo de ser no mundo obriga a supor que a gênese dos objetos técnicos tem repercussão sobre as outras produções humanas, sobre a atitude do homem com relação ao mundo. Mas esta é apenas uma maneira lateral e muito imperfeita de colocar o problema ao qual conduz a manifestação dos objetos técnicos como realidade submissa à gênese e tendo por essência verdadeira apenas as linhas desta gênese. Com efeito, nada prova que seja aí uma realidade independente, a saber o objeto técnico tomado como tendo um modo de existência definido.
Se este modo de existência é definido porque ele provém de uma gênese, esta gênese que engendra objetos talvez não seja apenas a gênese de objetos, ou mesmo a gênese da realidade técnica: talvez ela venha de mais longe, constituindo um aspecto restrito de um processo mais vasto, e talvez ela continue a engendrar outras realidades depois de ter feito aparecer os objetos técnicos. É, portanto, a gênese de toda a tecnicidade que será preciso conhecer, aquela dos objetos e aquela das realidades não objetificadas, e toda a gênese implicando o homem e o mundo, de que a gênese da tecnicidade talvez não seja mais que uma pequena parte, apoiada e equilibrada por outras gêneses, anteriores, posteriores ou contemporâneas, e correlativas daquela dos objetos técnicos.
É, portanto, em direção a uma interpretação genética generalizada das relações entre o homem e o mundo que é preciso rumar, para entender o alcance filosófico da existência dos objetos técnicos.
Entretanto, a noção mesma de gênese merece ser precisada: a palavra gênese é entendida aqui no sentido definido no estudo sobre A individuação à luz das noções de forma e de informação, como o processo de individuação na sua generalidade. Há gênese quando o devir de um sistema de realidade primitivamente supersaturado, rico em potenciais, superior à unidade e contendo uma incompatibilidade interna, constitua para este sistema uma descoberta de compatibilidade, uma resolução por advento de uma estrutura. Esta estruturação é o advento de uma organização que é a base de um equilíbrio de metaestabilidade. Uma tal gênese se opõe à degradação das energias potenciais contidas num sistema, por passagem a um estado estável a partir do qual nenhuma transformação é mais possível.
Nossa hipótese geral sobre o sentido de devir da relação do homem com o mundo consiste em considerar como um sistema o conjunto formado pelo homem e o mundo. Esta hipótese não se limita, entretanto, a afirmar que o homem e o mundo formam um sistema vital, englobando o vivo e seu meio; a evolução poderia, com efeito, ser considerada uma adaptação, isto é, a busca de um equilíbrio estável do sistema por redução da distância entre o vivente e o meio. Ora, a noção de adaptação, com a noção de função e de finalidade funcional que lhe está ligada, levaria a conceber o devir da relação entre o homem e o mundo como tendendo para um estado de equilíbrio estável, o que não parece correto no caso do homem, e talvez nem mesmo no de qualquer ser vivo. Se quisermos conservar um fundamento vitalista para esta hipótese do devir genético, poderíamos apelar à noção de impulso vital apresentada por Bergson. Ora, esta noção é excelente para mostrar aquilo que falta à noção de adaptação frente a uma interpretação do devir vital, mas ela não concorda com ela, e subsiste um antagonismo sem mediação possível entre a adaptação e o impulso vital. Estas duas noções opostas parecem poder ser substituídas, no par que elas formam, pela noção de individuação dos sistemas supersaturados, concebida como resoluções sucessivas das tensões por descobertas de estruturas no seio de um sistema rico em potenciais. Tensões e tendências podem ser concebidas como existindo realmente num sistema: o potencial é uma das formas do real, tão completamente quanto o atual. Os potenciais de um sistema constituem seu poder de devir sem se degradar; eles não são a simples virtualidade dos estados futuros, mas uma realidade que as impulsiona a ser. O devir não é a atualização de uma virtualidade, nem o resultado de um conflito entre realidades atuais, mas a operação de um sistema possuindo potenciais em sua realidade: o devir é a série de acesso de estruturações de um sistema, ou as individuações sucessivas de um sistema.
Ora, a relação do homem com o mundo não é uma simples adaptação, regida por uma lei de finalidade autorreguladora encontrando um estado de equilíbrio cada vez mais estável; a evolução desta relação, da qual participa a tecnicidade entre outros modos de ser, manifesta ao contrário um poder de evolução que vai crescendo de etapa em etapa, descobrindo formas e forças novas capazes de fazê-lo evoluir mais, ao invés de estabilizá-lo e fazê-lo pender para flutuações cada vez mais restritas; a própria noção de finalidade, aplicada a este devir, parece inadequada, pois podemos certamente encontrar finalidades restritas ao interior deste devir (busca de alimento, defesa contra as forças destrutivas), mas não há um fim único e superior que possamos sobrepor a todos os aspectos da evolução para coordená-los e dar conta de sua orientação pela busca de um fim superior a todos os fins particulares.
É por isso que não é proibido apelar a uma hipótese que faz intervir um esquema genético mais primitivo do que os aspectos opostos da adaptação e do impulso vital, e que inclui ambos como casos limite abstratos: aquele das etapas sucessivas de estruturação individuante, indo de estado metaestável em estado metaestável por meio de invenções sucessivas de estruturas.
A tecnicidade se manifestando pelo emprego de objetos pode ser concebida como aparecendo numa estruturação que resolve provisoriamente os problemas colocados pela fase primitiva e originária da relação do homem com o mundo. Podemos chamar esta primeira fase de fase mágica, tomando esta palavra no sentido mais geral e considerando o modo mágico de existência como aquele que é pré-técnico e pré-religioso, imediatamente acima de uma relação que seria simplesmente aquela do vivente com seu meio. O modo mágico de relação com o mundo não é desprovido de toda organização: pelo contrário, ele é rico em organização implícita, ligada ao mundo e ao homem: nele, a mediação entre o homem e o mundo ainda não está concretizada e constituída à parte por meio de objetos ou de seres humanos especializados, mas ela existe funcionalmente numa primeira estruturação, a mais elementar de todas: aquela que faz surgir a distinção entre figura e fundo no universo. A tecnicidade aparece como uma estrutura resolvendo uma incompatibilidade: ela especializa as funções de figura, enquanto as religiões, por outro lado, especializam as funções de fundo: [157] o universo mágico originário, rico em potenciais, se estrutura ao se desdobrar. A tecnicidade aparece como um dos dois aspectos de uma solução dada ao problema da relação do homem com o mundo, o outro aspecto simultâneo e correlativo sendo a instituição das religiões definidas. Ora, o devir não para com a descoberta da tecnicidade: de solução, a tecnicidade se torna novamente um problema quando ela reconstitui um sistema pela evolução que conduz dos objetos técnicos aos conjuntos técnicos: o universo técnico se satura e depois se supersatura ao mesmo tempo em que o universo religioso, como o havia feito o universo mágico. A inerência da tecnicidade aos objetos técnicos é provisória; ela constitui apenas um momento do devir genético.
Ora, segundo esta hipótese, a tecnicidade não deve jamais ser considerada uma realidade isolada, mas parte de um sistema. Ela é realidade parcial e realidade transitória, resultado e princípio de gênese. Resultado de uma evolução, ela é depositária de um poder evolutivo, precisamente porque ela possui como solução de um primeiro problema o poder de ser uma mediação entre o homem e o mundo.
Esta hipótese implica em duas consequências: primeiro, a tecnicidade dos objetos ou do pensamento não poderia ser considerada como uma realidade completa ou como um modo de pensar possuindo sua verdade própria a título independente; toda forma de pensamento ou todo modo de existência engendrado pela tecnicidade exigiriam ser completados e equilibrados por um outro modo de pensamento ou de existência proveniente do modo religioso.
Segundo, uma vez que a aparição da tecnicidade marca uma ruptura e um desdobramento na unidade mágica primitiva, a tecnicidade, como a religiosidade, herda um poder de divergência evolutiva; no devir do modo de ser do homem no mundo, esta força de divergência deve ser compensada por uma força de convergência, por uma função relacional mantendo a unidade apesar desta divergência; o desdobramento da estrutura mágica não seria viável se uma função de convergência não se opusesse aos poderes de divergência.

É por estas duas razões que é necessário estudar de onde vem a tecnicidade, aonde ela chega e quais relações ela mantém com os outros modos de ser no mundo do homem, isto é, como ela se oferece às funções de convergência.
Ora, o sentido geral do devir seria o seguinte: as diferentes formas de pensamento e de ser no mundo divergem quando elas acabam de aparecer, isto é, quando elas não são saturadas; depois elas reconvergem quando estão supersaturadas e tendem a se estruturar por novos desdobramentos. As funções de convergência podem se exercer graças à supersaturação das formas evolutivas do ser no mundo, no nível espontâneo do pensamento estético e no nível reflexivo do pensamento filosófico.
A tecnicidade se supersatura ao incorporar, pela segunda vez, a realidade do mundo ao qual ela se aplica; a religiosidade, ao incorporar a realidade dos grupos humanos para os quais ela intermedia a relação primitiva com o mundo. Assim supersaturada, a tecnicidade se desdobra em teoria e prática, como a religiosidade se separa em ética e em dogma.
Existiria, assim, não somente uma gênese da tecnicidade, mas também uma gênese a partir da tecnicidade, por desdobramento da tecnicidade original em figura e fundo, o fundo correspondendo às funções de totalidade independentes de cada aplicação dos gestos técnicos, enquanto que a figura, feita de esquemas definidos e particulares, especifica cada técnica como maneira de agir. A realidade de fundo das técnicas constitui o saber teórico, enquanto que os esquemas particulares geram a prática. São, ao contrário, as realidades de figura das religiões que se constituem em dogma coerente, enquanto que a realidade de fundo se torna ética, desligada do dogma; entre a prática proveniente das técnicas e a ética proveniente das religiões, como entre o saber teórico das ciências, vindo das técnicas, e o dogma religioso, existe ao mesmo temo uma analogia, vinda da identidade do aspecto representativo ou ativo, e uma incompatibilidade, oriunda do fato de que estes diferentes modos de pensamento vêm, seja de realidades de figura, seja de realidades de fundo. O pensamento filosófico, intervindo entre as duas ordens representativas e as duas ordens ativas do pensamento, tem por sentido fazê-las convergir e instituir entre elas uma mediação. Ora, para que esta mediação seja possível, é preciso que a própria gênese dessas formas do pensamento seja completamente conhecida e realizada a partir das etapas anteriores da tecnicidade e da religiosidade; o pensamento filosófico deve, portanto, retomar a gênese da tecnicidade, integrada no conjunto dos processos genéticos que a precedem, a seguem e a rodeiam, não apenas para poder conhecer a própria tecnicidade, mas a fim de entender, em suas próprias bases, os problemas que dominam a problemática filosófica: teoria do saber e teoria da ação, em relação com a teoria do ser.

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