sábado, 6 de julho de 2013

Você conhece histórias de amor? (comentado)

Andando pelas ruas, assombro-me. Diariamente assisto paisagens esmagadas pelo cinza sobrepondo algo que um dia teve cor. Botecos com banheiros fedendo a merda, ruas com calçadas tortas abrigando todo tipo de lixo, viciados dormindo em buracos protegidos por papelões, crianças marrons tomando banho em fontes cuspindo água e sabão em pó, restaurantes expelindo gordura e desinfetante. Tudo isso, encrostado em propagandas vendendo uma vida melhor.
A noite desce sobre tudo e todos. A cena impinge uma verdade não vendida em gôndolas. O real tem o pau duro e duas bolas de aço para te asfixiar. Vai escrever com estilete em sua retina: “Nós não nos importamos com seu desespero”. E os circuitos internos de segurança dizem sorrindo: “Nós não confiamos em você!”

Existem lugares onde quase ninguém frequenta. O bar da jacaré é um desses.

A única vez que a Cidade do Sorriso ficou sabendo da existência da bodega foi quando mataram Valtinho, 21 anos, com tacos de sinuca e garrafadas. A cena grotesca dos miolos misturado com azulejão calejado de Q’boa. O cabelo crespo e seboso abraçado no vidro branco da cachaça vagabunda. Jogado ali com olhos semicerrados... Nem sempre Deus tem pena e o Diabo está dormindo.
Na taberna, não vão os moderninhos com suas caras de tartaruga, nem os manos de shopping usando azul bebê, muito menos boêmios metidos a macho discursando sobre seus feitos. No bar da jacaré, a freguesia era formada por moradores do local. Um depósito de fracassados e histórias mal contadas. Geralmente velhos fumando cigarros de marca duvidosa, e o máximo que dispunham para gastar eram parcos três reais e cinquenta centavos por dia. O dinheiro era investido somente em pingas com teor alcoólico que faria um jipe andar. Quando alguém cuspia sangue, os companheiros receitavam uma paçoquinha para curar “aquela frescura”.
A dona do lugar, Jacaré, era a personificação exata de algo que não deu certo. Ninguém sabia exatamente seu sexo, tinham respeito pela feiúra alheia. Sua androgenia era representada por um corpo disforme, sem seios, voz feminina rouca, um boné desbotado, um olhar projetado no vazio e sempre, qualquer momento do ano, usando uma camiseta do PSDB.
Existem centenas de mulheres frutas no Brasil. Mulher melão, melancia, abacaxi, morango, abacate, pera, maçã. Uma verdadeira feira de seios de plástico, bocas com enchimento artificial, nádegas monstruosas e rostos deformados com botox.  Dez entre dez homens, desejariam ter um exemplar em casa, mesmo sabendo que por baixo das roupas coladas essas damas carregam um mapa de cicatrizes, mas existe homem preocupado com conteúdo?  

Antes, muito antes, dessa nova moda. No bar da jacaré frequentava uma tiazinha conhecida como Lindomar Canavial, mais conhecida como “mulher maracujá”.

Enrugada, amarelada devido a hepatite, semi banguela, cabelos  modelo bombril usado, um cheiro singular devido ao excesso de medicamentos e pinga. Dada a vadiagem, sempre carregando o corpo cansado pelas ruas com um cigarro na boca.  Canavial era uma sobrevivente da cidade, uma vira-latas com a dignidade subtraída.
A mulher era um símbolo do bar, pois a maioria dos pinguços tinham passado o ferro na criatura. Eram pouquíssimos os clientes do bar que num momento de delírio e tesão não levaram Lindomar para o mato e fizeram de tudo. Tudo mesmo.
Uma dessas raras exceções era Sandrinho “perna de grilo”, o mimo foi dado porque Sandrinho era deficiente físico e andava com muita dificuldade. O “perna de grilo” já coroa, uns 50 anos, vida sexual quase nula, segundo os putanheiros do bar.

Você conhece histórias de amor? Então, escute essa!

Onze da noite, no local impera uma orquestra de grilos e pernilongos. Dentro do bar o rádio chia algo que lembra música ruim. O clima é tranquilo e os poucos presentes estão completamente bêbados, ou tentando chegar lá. Um delirando com olhos lacrimejantes olhando para a modelo do pôster de cerveja. Outro jogando sinuca e prometendo se vingar do filha da puta que o enganou, enquanto seu companheiro de sinuca escutava e apoiava.
O bar grita angústia, e a música é misturada no palavreado dos distintos vagabundos.
Em algum canto desse esterqueiro estava Sandrinho “perna de grilo”, cabisbaixo, com metade da dose, aparentemente, sonhando acordado.
Num ímpeto o silêncio recai, momento em que o franceses dizem: “um anjo está passando no lugar”. Surge do escuro, Lindomar Canavial “a mulher maracujá” catarrando e cuspindo, bebaça, falando com fantasmas, insultando o mundo e tentando seduzir algum companheiro de bebida. Todos tentam sair da reta da velha, pois ninguém está afim de gastar dinheiro com “essa vagabunda da terceira idade”, como eles mesmos diziam.
A tia estaciona seu corpo trucidado pelos anos, ao lado do “perna de grilo”, e diz: “Ai Sandro, me paga uma garrafa de conhaque que a gente brinca hoje”. Sandrinho com o juízo avariado devido a cachaça grita para Jacaré: “Dá um garrafa de conhaque para a princesa aqui do lado, uma porção de morcela e põe na conta”. O preço da garrafa de conhaque e a porção de morcela, o chorume da mortadela, corresponde para Sandrinho a não poder beber o resto do mês. Quem pensa nisso quando está bêbado e quer fazer amor?
Os dois pombinhos saem cambaleantes na penumbra do bairro procurando uma rua escura, o paraíso da lama.
Encontrado o ninho do amor, Canavial fala para “perna de grilo”: “Abaixa as calças para eu fazer o motor funcionar”.
Sandrinho tem muita dificuldade para abaixar as calças. Seu problema físico juntamente com sua ebriedade, pioram as coisas. Demorados minutos são levados para executar o que uma criança de cinco anos consegue em segundos.
Lindomar dá uma risada macabra , dá um gole duplo no conhaque e grita: “Seu aleijado de merda, assim a gente vai levar a noite inteira!”.
O “perna de grilo” fica vermelho, irascível desfere um soco na cabeça da “maracujá” que cai desmaiada na rua deserta.
Não satisfeito levanta as calças e dá três pisões brutais na cabeça da mulher desacordada. Após, pega a garrafa de conhaque para si e grita: “puta”. Sua imagem some na escuridão.
Um fio de sangue desce do nariz da senhorita estirada no chão, a respiração fica forte e intensa, o corpo inteiro treme chacoalhando costelas frágeis. A boca abre voluntariamente e começa a soltar suco de abacate, sangue, saliva e pedaços de dentadura. A calça com o fecho aberto anuncia uma calcinha com dois ursinhos sorrindo e uma frase pode ser lida: “com carinho”. 
Às vezes, histórias de amor, começam assim....

Comentários:
Quando dois anos atrás fiz uma oficina de texto na Fundação Cultural a fim de conseguir a carga horária para me formar na faculdade, rolou um "gentiii, vamos publicar nossos textos no jornal da FCC". Como de costume já comecei a matutar merda, mas nada me agradava. Estava sem uma ideia boa para avacalhar aquela galera xarope, cujo o objetivo único era galgar emprego (como de fato conseguiram nos Faróis do saber).
Não foi Chuck Palahniuk, Will Self, Augusto dos Anjos, Rubens Fonseca, Peter Sotos, Lima Barreto, Houellebecq, Boaventura Durruti, Burroughs, Martin Amis entre tantos outros caras e minas que botam o terror nessa realidade desgraçada que me inspiraram para escrever um conto para ironizar aquela parada chata. O que me inspirou foi um flyer de um puteiro que eu vi na rua e como atração apresentava uma mulher fruta (damas colecionadoras de cirurgia plástica e relacionamentos). Conectei esta ideia a experiência real de ter colado num boteco no bairro Santa Cândida, o boteco era tão destruído que eu fui o único a pedir uma cerveja (o resto do bar inteiro tava na cachaça) o que fez a dona do estabelecimento a me oferecer um copo chique. Sim tomar cerveja Glacial na parada era coisa sofisticada, e merecia copos delicados.
Assim eu escrevi este conto, obviamente o conto não saiu em jornal nenhum e uma velhinha dos cabelos brancos me chamou de nojento, horroroso e estuprador da arte literária e que de literatura eu tinha uma visão distorcida.  Meu objetivo foi cumprido, obrigado tia!






 











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