Marcelino Freire
“Eu não sou da paz. Não sou mesmo não. Não
sou. Paz é coisa de rico. Não visto camiseta nenhuma, não, senhor. Não solto
pomba nenhuma, não, senhor. Não venha me pedir para eu chorar mais. Secou. A
paz é uma desgraça. Uma desgraça. Carregar essa rosa. Boba na mão. Nada a ver.
Vou não. Não vou fazer essa cara. Chapada. Não vou rezar. Eu é que não vou
tomar a praça. Nessa multidão. A paz não resolve nada. A paz marcha. Para onde
marcha? A paz fica bonita na televisão. Viu aquele ator? Se quiser, vá você,
diacho. Eu é que não vou. Atirar uma lágrima. A paz é muito organizada. Muito
certinha, tadinha. A paz tem hora marcada. Vem governador participar. E
prefeito. E senador. E até jogador. Vou não. Não vou. A paz é perda de tempo. E
o tanto que eu tenho para fazer hoje. Arroz e feijão. Arroz e feijão. Sem
contar a costura. Meu juízo não está bom. A paz me deixa doente. Sabe como é?
Sem disposição. Sinto muito. Sinto. A paz não vai estragar o meu domingo. A paz
nunca vem aqui, no pedaço. Reparou? Fica lá. Está vendo? Um bando de gente.
Dentro dessa fila demente. A paz é muito chata. A paz é uma bosta. Não fede nem
cheira. A paz parece brincadeira. A paz é coisa de criança. Tá uma coisa que eu
não gosto: esperança. A paz é muito falsa. A paz é uma senhora. Que nunca olhou
na minha cara. Sabe a madame? A paz não mora no meu tanque. A paz é muito
branca. A paz é pálida. A paz precisa de sangue. Já disse. Não quero. Não vou a
nenhum passeio. A nenhuma passeata. Não saio. Não movo uma palha. Nem morta.
Nem que a paz venha aqui bater na minha porta. Eu não abro. Eu não deixo
entrar. A paz está proibida. A paz só aparece nessas horas. Em que a guerra é
transferida. Viu? Agora é que a cidade se organiza. Para salvar a pele de quem?
A minha é que não é. Rezar nesse inferno eu já rezo. Amém. Eu é que não vou
acompanhar andor de ninguém. Não vou. Não vou. Sabe de uma coisa: eles que se
lasquem. É. Eles que caminhem. A tarde inteira. Porque eu já cansei. Eu não
tenho mais paciência. Não tenho. A paz parece que está rindo de mim. Reparou?
Com todos os terços. Com todos os nervos. Dentes estridentes. Reparou? Vou
fazer mais o quê, hein? Hein? Quem vai ressuscitar meu filho, o Joaquim? Eu é
que não vou levar a foto do menino para ficar exibindo lá embaixo. Carregando
na avenida a minha ferida. Marchar não vou, ao lado de polícia. Toda vez que
vejo a foto do Joaquim, dá um nó. Uma saudade. Sabe? Uma dor na vista. Um cisco
no peito. Sem fim. Ai que dor! Dor. Dor. Dor. A minha vontade é sair gritando.
Urrando. Soltando tiro. Juro. Meu Jesus! Matando todo mundo. É. Todo mundo. Eu
matava, pode ter certeza. A paz é que é culpada. Sabe, não sabe? A paz é que
não deixa.”
Adorei! É seu?
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