Ele é
o guru da nova direita brasileira. Durante anos foi o principal crítico da
intelectualidade de esquerda e do projeto de poder do PT. Sempre implacável nos
embates, comprou brigas com boa parte do establishment cultural do país. Seus
admiradores o classificam como “nosso maior filósofo e educador”. Seus
detratores o relegam à categoria de “astrólogo”.
Eis
Olavo de Carvalho, o autonomeado “filósofo”, que foi militante do PCB nos Anos
de Chumbo e duas décadas mais tarde transmutou-se no mais temível inimigo do
“marxismo cultural”. Ele mesmo explica as razões dessa chrysopoeia filosofal:
“Os
senhores não têm a menor ideia de como é bom, para um sujeito que ajudou a
construir uma mentira na juventude, poder desmontá-la na maturidade, tijolo a
tijolo, com a meticulosidade sádica do demolidor.”
Por um
quarto de século, o autor de O imbecil coletivo (1996) e O mínimo que você
precisa saber para não ser um idiota (2013) tem-se empenhado em dar novos
contornos à práxis nietzschiana da filosofia a marretadas. Sempre enérgico na
denúncia do comunismo, dedicou-se a expor a articulação continental dos
partidos e agremiações de esquerda, que caracterizou como o Foro de São Paulo:
“Um
dos instrumentos mais engenhosos utilizados para isso foi a duplicação das vias
de ação partidária, uma nacional e ostensiva, denominada oficialmente PT ou
‘governo’, a outra internacional e discretíssima chamada ‘Foro de São Paulo’, o
mais importante e poderoso órgão político latino-americano.”
Cedo
também condenou o sistema político da Nova República, apontando a suposta repartição
do poder entre a esquerda moderada e a esquerda radical:
“O PT
e o PSDB foram essencialmente criações de um mesmo grupo de intelectuais
esquerdistas empenhados em aplicar no Brasil o que Lênin chamava de ‘estratégia
das tesouras’: a partilha do espaço político entre dois partidos de esquerda,
um moderado, outro radical, de modo a eliminar toda resistência conservadora ao
avanço da hegemonia esquerdista.”
Outras
obsessões de Olavo de Carvalho têm sido o “globalismo”, que ele acredita ser o
projeto de governo mundial, conduzido por elites transnacionais de inspiração
maçônica; e as “técnicas de manipulação das massas”, desenvolvidas pela
psicologia moderna e por filósofos de esquerda como Antonio Gramsci e os
integrantes da Escola de Frankfurt:
“Os
acontecimentos mais básicos dos últimos 50 anos são: primeiro, a ascensão de
elites globalistas, desligadas de qualquer interesse nacional identificável e
empenhadas na construção não somente de um Estado mundial, mas de uma
pseudocivilização planetária unificada, inteiramente artificial, concebida não
como expressão da sociedade, mas como instrumento de controle da sociedade pelo
Estado; segundo, os progressos fabulosos das ciências humanas, que depositam
nas mãos dessas elites meios de dominação social jamais sonhados pelos tiranos
de outras épocas.”
Conhecido
por seus amores inventados e paixões cruéis desenfreadas, Olavo recusa o rótulo
de “exagerado”. Assim ele justifica seu proverbial destempero vocabular:
“É
verdade que Olavo de Carvalho usa às vezes palavras duras, deprimentes,
humilhantes. Mas jamais elevou a voz em público para condenar qualquer conduta
privada, por abominável que lhe parecesse.”
A
realidade se mostra um tanto distinta. A saraivada de insultos e impropérios
saídos de sua metralhadora giratória já atingiu nomes como Gilberto Gil, Chico
Buarque, Dorival Caymmi, Dias Gomes, Janete Clair, José Américo Pessanha, Gerd
Bornheim, Leandro Konder, José Arthur Giannotti, Wilson Martins e Reinaldo
Azevedo, entre outros. Isso sem contar os inúmeros golpes abaixo da cintura que
desfere diariamente contra os próceres do esquerdismo moreno. Vejamos o que
disse do sempre lúcido e ponderado Fernando Gabeira:
“É uma
vergonha nacional que um sujeito obviamente desqualificado, tolo, descoordenado
de cabeça, seja aceito como intelectual por conta de antigos feitos de armas
que um analfabeto poderia realizar com iguais méritos, e que, aliás, por mais
autênticos que tenham sido, mal o habilitariam ao título de sargento honorário
do exército de libertação da Zâmbia. O prestígio de Gabeira como ‘pensador’ é
exemplo típico do nosso provincianismo cultural, onde popularidade é sinônimo
de elevação intelectual.”
Mas
Olavo não se restringe ao pessoal. Ele, com frequência, desfere ataques ainda
mais ferozes contra seus inimigos coletivos:
“Não
conheço um só líder esquerdista, petista, gayzista, africanista ou feminista
que não corresponda ponto por ponto a essa descrição, que corresponde por sua
vez ao quadro clássico da histeria. (...) A presença de um grande número de
histéricos nos altos postos de uma sociedade é garantia de deterioração de
todas as relações humanas, de proliferação incontrolável da mentira, da
desonestidade e do crime.”
Seu
instinto de criar polêmicas ao estilo do “velho da montanha” se mostra
especialmente virulento no combate às ambições políticas ou culturais de
algumas minorias:
“Alguém
tem de dizer aos negros a verdade: a verdade é que todos os ritos iorubás não
valem uma página de Jalal ad-Din Rumi e a história inteira do samba não vale
três compassos de Bach.”
“Não
se encontrará nas fileiras gays um único santo, místico ou homem espiritual de
elevada estatura. Iguais aos outros no mal, os gays têm escassa folha de
serviços na prática do bem.”
Tão
compassivo ativismo filosófico custou a Olavo de Carvalho não poucos desafetos.
Talvez por isso ele tenha decidido mudar-se, em 2003, para os Estados Unidos.
Estabelecido em Richmond, na Virgínia, surfou com destreza a onda da internet,
tornando-se um pioneiro youtuber. A despeito de seu imenso sucesso de público,
ou talvez por causa dele, passou a lamentar o estado da cultura brasileira:
“Desde
que me distanciei do Brasil, tenho visto a inteligência dos meus compatriotas
cair para níveis que às vezes ameaçam raiar o sub-humano.”
Aos
poucos, Olavo construiu uma verdadeira legião de seguidores on-line. Em seu
Seminário de Filosofia, formou toda uma nova geração de políticos, ativistas e
burocratas de direita. Termos como “engenharia social”, “ideologia de gênero” e
“marxismo cultural” entraram para o léxico político brasileiro. E sua refinada
mensagem ecoou pelo país:
“Há
quatro décadas a tropa de choque acantonada nas escolas programa esses meninos
para ler e raciocinar como cães que salivam ou rosnam ante meros signos. (...)
Um deles ouve, por exemplo, a palavra ‘virtude’. Pouco importa o contexto.
Instantaneamente produz-se em sua rede neuronal a cadeia associativa:
virtude-moral-catolicismo-conservadorismo-repressão-ditadura-racismo-genocídio.
E o bicho já sai gritando: É a direita! (...) De maneira oposta e complementar,
se ouve a palavra ‘social’, começa a salivar de gozo, arrastado pelo atrativo
mágico das imagens: social-socialismo-justiça-igualdade-liberdade-sexo-e-cocaína-de-graça-oba!”
Após
quase três décadas de incessantes combates, Olavo de Carvalho chegou enfim ao
topo do mundo. Ungido sacerdote, profeta e conselheiro-mor do novo governo,
sente-se autorizado a indicar ministros de Estado, passar pitos em deputados
federais, desafiar juízes do Supremo, confrontar generais de quatro estrelas e
espinafrar publicamente o vice-presidente da República:
Logo
após a vitória eleitoral, Olavo recomendou ao presidente eleito “quebrar as
pernas de seus inimigos, impiedosamente”. Desferiu também críticas aos
servidores públicos de inclinação weberiana, vistos como simpatizantes do
“marxismo cultural” e membros do “deep state”. Transcendendo o mero papel de
intelectual engajado, almeja converter-se em ideólogo do novo governo:
“Se
esbarrasse na rua com algum dos nossos políticos ditos ‘de direita’, eu lhe
perguntaria o seguinte: ‘Você quer destruir a esquerda, destruí-la
politicamente, socialmente, culturalmente, de modo que nunca mais se levante e
que ser esquerdista se torne uma vergonha que ninguém ouse confessar em
público?’.”
Olavo
imagina-se, acima de tudo, uma espécie de salvador espiritual da nação:
“Se me
perguntarem quais são os problemas essenciais do Brasil, responderei sem a
menor dificuldade: (...) A destruição completa da alta cultura, num estado
catastrófico de favelização intelectual onde a função de respiradouro para a
grande circulação de ideias do mundo, que caberia à classe acadêmica como um
todo, é exercida praticamente por um único indivíduo, um último sobrevivente.”
Ele
mesmo, obviamente. Mas o conceito que o mago de Richmond nos apresenta de “alta
cultura” tem suas sutilezas. Como herdeiro da augusta tradição do pensamento
metafísico, Olavo não perde uma oportunidade de demonstrar ao mundo a elegância
de sua dialética:
“Combater
o consumo de drogas por meio da liberação é tão inteligente quanto defender-se
da tentação do adultério comendo a mulher do vizinho três vezes por semana, no
intuito de tornar-se imune aos encantos das demais esposas dos arredores.
Pode-se também suprimir o homossexualismo dando o traseiro por aí até que ele
se torne insensível.”
O
trecho acima não é um caso isolado. É antes um traço essencial, um cacoete
ontológico, um jeito de ser nascido da própria natureza do autor de A nova era
e a revolução cultural (1994):
“Aí é
que entra a missão providencial dos intelectuais. Sua função é precisamente pôr
um fim a essa suruba ideológica. (...) São lições de Antônio Só-a-Cabecinha
Gramsci.”
A
incompatibilidade desse modo de ser com o ideal cristão é patente. Mas o
“filósofo” de O jardim das aflições (1995) não compreende os ensinamentos
daquele que agonizou no Getsêmani:
“Quando
reagem aos ataques cada vez mais virulentos que a religião sofre da parte de
gayzistas, abortistas, feministas enragées, neocomunistas, iluministas
deslumbrados etc., certos católicos e protestantes invertem a ordem das
prioridades: colocam menos empenho em vencer o adversário do que em evitar, por
todos os meios, ‘combatê-los à maneira do Olavo de Carvalho’. O que querem
dizer com isso é que Olavo de Carvalho é violento, cruel e impiedoso,
humilhando o inimigo até fazê-lo fugir com o rabo entre as pernas, ao passo que
elas, as almas cristianíssimas, piedosíssimas, boníssimas, preferem ‘odiar o
pecado, jamais o pecador’.”
Exatamente.
Ser cristão requer esse tipo de discernimento. Mas, para explicar ao leitor a
recusa de Olavo de Carvalho em compreender seu próprio insight, será preciso
recuar no tempo e demonstrar de onde veio e em que consiste o pensamento desse
vitriólico filósofo das multidões.
I –
Olavo e a Escola Perenialista
Olavo
de Carvalho é um produto da contracultura. No final dos anos 60, sem ter sequer
o primeiro grau completo, começou a ganhar a vida como jornalista. Após breve
envolvimento com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), optou pelo “desbunde”,
entregando-se de corpo e alma ao esoterismo.
“O
esoterismo é a ciência universal por excelência, é o conhecimento e a
realização da unidade.”
No
final dos anos 70 e início dos anos 80, Olavo foi colaborador da revista
Planeta, principal órgão de divulgação do espiritismo, da astrologia, alquimia,
do hermetismo, tarô, da ufologia e de outros baratos. Esse mergulho na quinta
dimensão levou-o à escola “tradicionalista”, ou “perenialista”, inaugurada por
René Guénon (1886-1951), um ocultista francês com ambições filosóficas, que
mais tarde se converteu ao islã.
Com
base nos ensinamentos de Guénon e seus seguidores, Olavo publicou uma série de
artigos sobre o perenialismo na revista Planeta, além de seis livros sobre
astrologia e esoterismo: A imagem do homem na astrologia (1980), Questões de
simbolismo astrológico (1983), Astros e símbolos (1985), Astrologia e religião
(1986), Fronteiras da tradição (1986) e O caráter como forma pura da
personalidade: elementos para uma astrocaracterologia (1992). Sobre essa fase,
ele explica:
“Os
livros que escrevi sobre Astrologia foram redigidos para um grupo de pessoas
que estavam metidas até a goela no esoterismo islâmico. Para entender-se o que
está escrito, é preciso saber para quem foi escrito.”
Nos
anos 80, por influência do perenialista Frithjof Schuon (1907-1998), Olavo
passou a viver em uma comunidade mística islâmica (tariqa), em São Paulo. Nesse
período, praticou o poliamor, tiranizou a família e aprofundou-se no estudo da
gnose sufi. Os episódios foram relatados por sua filha mais velha, Heloísa de
Carvalho, em entrevista à revista Carta Capital e em carta aberta ao pai,
publicada nas redes sociais. Embora um autor não deva ser criticado por seus
erros passados, o incidente nos remete à passagem de A nova era e a revolução
cultural em que Olavo especula:
“O que
Gramsci fez com a própria filha, por que não o faria com os filhos dos outros?”
Para
entendermos a viagem de Olavo de Carvalho às profundezas do “islamismo
cultural”, é preciso conhecer um pouco mais do perenialismo. René Guénon,
fundador dessa vertente do esoterismo, mudou-se, jovem ainda, para Paris, onde
se tornou discípulo do famoso Papus, criador da linhagem martinista do
ocultismo. Insatisfeito com a demora em ser iniciado nos “mistérios
superiores”, tomou rumo próprio. Aos 24 anos, foi enfim iniciado, durante rito
funesto, no qual invocou o espírito de Jacques de Molay, o último grão-mestre
dos templários, morto na fogueira, em 1314. O episódio é comentado pelo
estudioso do perenialismo Mark Sedgwick, em seu bem documentado livro Against
the modern world: traditionalism and the secret intellectual history of the
20th century:
“As
instruções de Jacques de Molay, comunicadas a Guénon durante sessão em 1908,
foram de restabelecer a Ordem do Templo. Guénon prosseguiu com a criação da
Ordem Renovada do Templo, com a ajuda de cinco outros martinistas.”
A
partir de então, Guénon deu início a intensa atividade intelectual. Em seus
artigos e livros, empenhou-se em criticar maçons, kardecistas e teosofistas,
denunciando-os como adeptos de vertentes contrainiciáticas do esoterismo,
corrompidas pelo evolucionismo darwinista e por ideias socialistas. Nesse
embate, desenvolveu uma lendária paranoia, passando a ver conspirações por toda
parte:
“A
Inglaterra é chamada a ditar suas leis para o mundo inteiro (...). Esta será a
realização dos ‘Estados Unidos do Mundo’, mas sob a égide da ‘nação dirigente’
e para seu exclusivo benefício; assim o internacionalismo dos chefes do
teosofismo se revela no imperialismo britânico levado ao seu grau mais
extremo.”
Nem
sequer os protestantes escapavam às críticas de René Guénon:
“A
propósito das relações entre o teosofismo e o protestantismo, uma questão se
coloca: se estimamos que o teosofismo é anticristão em princípio (...) teremos
então de concluir que o protestantismo, tão logo suas tendências sejam levadas
ao extremo, há de chegar logicamente ao anticristianismo? Por paradoxal que tal
conclusão pareça à primeira vista (sobretudo quando nos lembramos que muitas
seitas protestantes gostam de se dizer ‘cristãs’ sem epíteto, ou ainda
‘evangélicas’), existem fatos que são ao menos suscetíveis de dar verossimilhança
a semelhante conclusão.”
Em sua
busca espiritual, Guénon elaborou uma nova síntese ocultista, supostamente
“metafísica” e influenciada por elementos vindos de doutrinas orientais e da
gnose clássica. Imbuído de fortíssimo idealismo romântico e de igual dose de
revisionismo histórico, passou a fundir todos os caminhos espirituais em uma
única e secreta “filosofia perene”, que tudo engloba e nada explica.
“Por
Gnose aqui se deve entender o Conhecimento tradicional que constitui o fundo
comum de todas as iniciações, cujas doutrinas e símbolos foram transmitidos,
desde a mais remota antiguidade até nossos dias, através de todas as
Confraternidades secretas, cuja longa corrente jamais foi interrompida.”
O
pensamento de René Guénon chegou à maturidade com A crise do mundo moderno
(1927). Nesse volume, ele mescla sua crença em uma “sabedoria perene” com o
pessimismo histórico e o ideário antidemocrático de Oswald Spengler, autor da
obra em dois tomos O declínio do Ocidente (1918 e 1923), que serviu de
inspiração para o nazifascismo. Ao debruçar-se sobre o mal-estar da cultura
moderna, Guénon centra sua crítica na perda de contato do Ocidente com a base
espiritual tradicional:
“O
moderno Ocidente é dito cristão, mas isso não é verdade: a visão moderna é
anticristã, porque é essencialmente antirreligiosa; e é antirreligiosa porque,
de modo ainda mais geral, é antitradicional.”
Valendo-se
de conceitos da mística hinduísta, Guénon propõe uma visão cíclica da história.
Nesse arcabouço, a cultura ocidental, dominante no planeta, estaria às portas
de um colapso civilizacional:
“De
acordo com todas as indicações fornecidas por doutrinas tradicionais, entramos
de fato na última fase do Kali-Yuga, o mais escuro período da atual ‘idade das
trevas’, o estado de dissolução do qual é impossível emergir senão mediante um
cataclisma, pois não é apenas de um mero reajustamento que necessitamos neste
estágio, mas de uma completa renovação. (...) Não chegamos acaso à terrível era
anunciada nos Livros Sagrados da Índia, em que ‘as castas irão misturar-se, e
em que mesmo a família deixará de existir’? Basta olhar em torno para convencer-se
de que este é o estado do mundo de hoje, e para notar em todos os lados a
profunda degeneração.”
O
trecho citado revela o caráter essencialmente antidemocrático do perenialismo.
No entender de Guénon e seus seguidores, as sociedades são divididas em
“castas”. Nas culturas tradicionais, haveria um sólido pacto de solidariedade
entre a casta sacerdotal e a casta guerreira — e desse pacto derivariam a
vitalidade e a estabilidade dessas sociedades. As sociedades modernas, contudo,
estariam sujeitas à “lei de regressão das castas”. Quem nos explica o conceito
é o mitógrafo italiano Julius Evola (1898-1974), sem dúvida o mais relevante
parceiro de René Guénon na formulação do perenialismo. Eis um trecho de Revolta
contra o mundo moderno (1934), obra na qual Julius Evola aprofunda os aspectos
políticos do pensamento de Guénon:
“Uma
progressiva mudança de poder e de tipo de civilização produziu-se de uma casta
para a outra, desde os tempos pré-históricos (dos líderes sagrados para a
aristocracia guerreira, para os comerciantes, e finalmente para os servos);
estas castas correspondiam, em civilizações tradicionais, à diferenciação
qualitativa das principais possibilidades humanas. Em face desse movimento
geral, tudo o que diz respeito aos vários conflitos entre os povos, a vida das
nações e outros acidentes históricos desempenha um papel apenas secundário e
contingente.”
Comparemos
os textos acima com aquilo que Olavo de Carvalho nos ensina em seu principal
livro, O jardim das aflições, uma obra perenialista de cabo a rabo:
“Acima
das religiões, acima das consciências individuais, é ao Estado — casta
dirigente ou aristocrática — que cabe, sob as bênçãos da intelectualidade —
casta sacerdotal — dirigir o processo de modernização, e portanto, determinar o
sentido da vida coletiva, os valores e critérios morais, o certo e o errado, o
verdadeiro e o falso.” “Essa ideologia (...) não podendo eliminar as castas
governantes, ocultou-as, aumentando assim o seu poderio. E, quando elas
ressurgem sob nomes como ‘burocracia estatal’ e intelligentsia, ninguém as
reconhece, pois todos creem que castas só existem na Índia ou no passado medieval.”
Segundo
os teóricos do perenialismo, as grandes culturas tradicionais começam a decair
no momento em que as castas inferiores de mercadores e servos assumem o poder
político, ocasionando o progressivo declínio dos valores sociais. Diz René
Guénon:
“O
mais decisivo argumento contra a democracia pode ser resumido em poucas
palavras: o superior não pode proceder do inferior, porque o maior não pode
proceder no menor; esta é uma absoluta certeza matemática que nada pode
questionar. (...) O povo não pode conferir um poder que ele mesmo não possui; o
verdadeiro poder somente pode vir de cima, e é por isso que ele apenas pode ser
legitimado por algo pairando acima da ordem social, ou seja, por uma autoridade
espiritual.”
Diante
de tão reacionário credo, não surpreende que René Guénon tenha colaborado com
25 artigos para a revista Il Regime Fascista, editada por Julius Evola, entre
1934 e 1942. A tentativa de alguns dos seguidores de Guénon de ocultar a
natureza antidemocrática de seu pensamento chega a ser risível, especialmente
quando se analisa o conteúdo de suas obras da maturidade. Em O reino da
quantidade e os sinais dos tempos (1945), a fantasia tradicionalista resulta em
uma ruptura completa com a modernidade. Guénon investe contra a sociedade de consumo,
a ciência moderna, o darwinismo, a psicanálise e a filosofia ocidental,
aproveitando o ensejo para denunciar os “sábios do Sião”:
“Por
que será que os principais representantes das novas tendências, como Einstein
na física, Bergson na filosofia, Freud na psicologia, e muitos outros de menor
importância, são quase todos judeus de origem, senão pelo fato de que há algo
envolvido que está intimamente ligado ao aspecto ‘maléfico’ e corrosivo do
nomadismo quanto ele é desviado, e porque esse aspecto deve inevitavelmente
predominar em judeus desgarrados de sua tradição?”
Note-se
que o texto foi publicado em 1945, já com a Segunda Guerra Mundial terminada,
os nazistas vencidos e o Holocausto perpetrado. Sem dúvida, um autor
sintonizado com os sinais dos tempos. Em Metafísica da guerra, uma coletânea de
artigos escritos entre 1935 e 1950, Julius Evola explica o horror que os
membros da escola perenialista sentem das ideologias revolucionárias:
“A
civilização de tipo puramente heróico-sacral somente pode ser encontrada no
período mais ou menos pré-histórico da tradição ariana. Ela foi sucedida por
civilizações no topo das quais já não estava a autoridade dos líderes
espirituais, mas de expoentes da nobreza guerreira — e esta foi a era das
monarquias históricas, que se estendeu até o período das revoluções. Com as
revoluções francesa e americana, o Terceiro Estado tornou-se o mais importante,
determinando o ciclo das civilizações burguesas. Finalmente, o marxismo e o
bolchevismo parecem levar à queda final, com a passagem do poder e da
autoridade às mãos da última das castas na antiga hierarquia ariana.”
Diante
dessa ameaça à harmonia hierática das sociedades, Julius Evola não hesita em
propor:
“O
Fascismo se nos mostra como uma revolução reconstrutiva, dado que afirma um
conceito aristocrático e espiritual da nação, oposto tanto ao coletivismo
socialista e internacionalista quanto à noção democrática e demagógica da
nação.”
A
opção da maior parte dos perenialistas pelo islã deriva sobretudo da
incompatibilidade de suas ideias com a ortodoxia cristã. Sendo gnósticos e
ocultistas, os perenialistas enxergam uma antinomia incontornável entre a
religião oficial, com seus ritos formais e sua moral rígida (modalidade
exotérica), e a espiritualidade superior, marcada pela iluminação intelectual,
pelos ritos iniciáticos e pela teurgia (modalidade esotérica). Eis o que nos
diz Frithjof Schuon, em Gnose: sabedoria divina (1959):
“A
distinção exotérica entre ‘religião verdadeira’ e ‘falsas religiões’ é
substituída para o gnóstico pela distinção entre ‘gnose’ e ‘crença’ ou entre
‘essência’ e ‘formas’. Somente a perspectiva sapiencial é um esoterismo no
sentido absoluto; em outras palavras, somente ela é necessária e integralmente
esotérica, pois somente ela se projeta além de todo relativismo.”
No
entender dos “homens espirituais” — assim os perenialistas chamam a si mesmos
—, a religião oficial seria uma forma superficial da vivência espiritual,
concebida em benefício dos homens inferiores, incapazes de acessar o
conhecimento superior. A philosophia perennis, em contraste, seria a essência
gnóstica da espiritualidade universal. Disse Olavo de Carvalho, em artigo na
revista Planeta:
“Já o
esoterismo, ao contrário, sendo um único em sua essência (ele é a Philosophia
Perennis, a verdade metafísica una, eterna, supraformal e transcendente),
varia, entretanto, nas distintas formas históricas que o expressam, havendo,
portanto, um esoterismo cristão, um islâmico, um judaico, etc.”
Engana-se
Olavo. Enquanto o cristianismo real (seja ele católico, ortodoxo ou
protestante) se funda na humildade, na igualdade entre todos e no amor ao
próximo, a gnose conduz a uma espiritualidade elitista e arrogante, que divide
os seres humanos em diferentes categorias e que advoga a superioridade dos homens
“espirituais” sobre os homens “psíquicos” e “carnais”. Mais importante ainda, a
visão gnóstica da espiritualidade é incompatível com os mistérios da Encarnação
e da Trindade, conforme demonstrou Irineu de Lyon, em Adversus haereses (c. 180
d.C.).
No
cristianismo real, os aspectos exotéricos e esotéricos, imanentes e
transcendentes, formais e místicos da espiritualidade estão reunidos em Cristo
e sua Igreja. Não existe um deus espiritual que se contraponha ao demiurgo do
mundo material nem qualquer conhecimento oculto que permita ao iniciado acessar
magicamente os planos superiores da existência. Há, em contraste, uma Trindade
de amor na própria essência da Divindade. E existe um projeto de redenção do
homem, centrado no sacrifício, na morte e ressurreição de Jesus Cristo. Assim
nos diz o apóstolo São Paulo:
“Nós,
porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo, para os
gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos,
é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus.” (1 Coríntios 1: 23, 24)
O
perenialismo de Guénon, Evola e Schuon, por mais que se esforce em demonstrar a
unidade das grandes tradições, fundindo teísmo e panteísmo em um mesmo amálgama
inconsistente, tende inexoravelmente a aderir ao esoterismo islâmico como única
vertente universal da gnose. Para os cristãos, a gnose é anátema. Para
israelitas, hindus e chineses, ela não é universalizável. Daí a opção de René
Guénon pelo esoterismo sufi. Em 1930, ele se muda para o Cairo e converte-se ao
islã:
“Devemos
outra vez recordar que o significado adequado da palavra islã é ‘submissão à
Vontade Divina’; portanto, diz-se, em certos ensinamentos esotéricos, que todo
ser é muçulmano, no sentido de que claramente ninguém pode escapar a essa
Vontade; e, desse modo, cada um necessariamente ocupa o lugar que lhe cabe no
Universo como um todo.”
A
adesão de Guénon ao islã não representa, contudo, a opção por um exclusivismo
maometano. Desde suas origens, no primeiro século da era cristã, a gnose tem o
vício de atuar como uma espiritualidade parasitária, que vive à sombra de
grandes religiões. Ela se apropria dos símbolos, conceitos, práticas e textos
sagrados formulados pela ortodoxia originária, transmutando-os em uma
religiosidade completamente distinta. Sendo uma perspectiva pseudofilosófica,
ligada à magia e aos cultos de mistérios, a gnose usa as grandes tradições
religiosas para esconder-se. O gnóstico é, antes de tudo, um mago dissimulado,
cuja suposta espiritualidade não passa de pura egolatria. Eis um trecho
sintomático de Olavo de Carvalho:
“Note-se
que essa possibilidade de transitar livremente de uma Tradição a outra é, hoje
como sempre, apanágio exclusivo dos grandes mestres espirituais.”
Ao
envolver-se com o esoterismo perenialista, Olavo de Carvalho converteu-se ao
islã. Foi uma conversão meia-sola, aberta a todo tipo de influência
“metafísica”, mas foi uma conversão. Esse período rendeu-lhe, além de diversos
livros sobre astrologia, um volume sobre o profeta Maomé:
“Meu
livro O profeta da paz: estudos sobre a interpretação simbólica da vida do
profeta Mohammed (Maomé), ainda inédito nove anos após ter recebido um prêmio
do governo da Arábia Saudita, é um estudo sobre a significação da profecia na
História, ilustrado pelo caso do único profeta de cujos atos e palavras restou
para o historiador moderno uma documentação abundante. Foi esse estudo que me
persuadiu, de uma vez para sempre, de que o fenômeno da profecia é o gonzo
sobre o qual gira o portal da compreensão histórica, e de que a história reduzida
às dimensões natural e civil (...) é apenas uma crônica provinciana, sem
qualquer poder de elucidar os fatores decisivos, os retornos cíclicos, as
ascensões e quedas dos impérios e das doutrinas.”
No
cristianismo real, a profecia não se confunde com vidência política ou
determinismo histórico. A profecia, na perspectiva cristã, fala do Cristo e de
seu Reino. Os perenialistas nada entendem do tema. Mas Olavo de Carvalho,
eterno discípulo do mago francês, pensa de modo distinto. Assim ele explica, em
O jardim das aflições:
“O
grande reformador maçônico do século XX, René Guénon, encontrou a organização
num estado de vácuo doutrinal. (...) Guénon preenche esse vácuo com a mais
densa metafísica. (...) A polêmica católica contra René Guénon continua impressionando
pela sua incapacidade de enfrentá-lo no terreno propriamente metafísico. As
célebres objeções de Mons. Daniélou quanto ao simbolismo da cruz mostram apenas
uma inferioridade de QI. Assim como Daniélou, Paul Sérant e outros adversários
católicos de Guénon fogem para o terreno teológico e moral, onde se sentem
abrigados sob pressupostos de fé que, no entanto, não são metafisicamente
válidos.”
Ou
seja, segundo Olavo de Carvalho, a cristologia e o mistério da Trindade não são
temas válidos. Metafísico, para ele, é o “islamismo cultural” de René Guénon.
Em O simbolismo da cruz (1931), livro escrito após sua conversão, o bruxo
francês tece incontáveis loas aos elementos místicos do taoismo, do hinduísmo e
do islamismo, enquanto projeta sobre essas tradições religiosas os conceitos
unificantes inventados por ele mesmo. Quanto ao cristianismo, busca diluí-lo
nessa geleia geral, relegando a figura ímpar do Cristo a uma única menção em
todo o volume:
“A
cruz é um símbolo que, em suas várias formas, pode ser encontrado praticamente
por toda parte, e desde o mais remoto tempo; está, portanto, longe de pertencer
de modo particular ou exclusivo à tradição cristã como alguns podem ser
tentados a acreditar. (…) Em particular, se Cristo morreu na cruz, pode-se dizer
que isso ocorreu em razão do valor simbólico que a cruz possui em si mesma, o
qual foi sempre reconhecido por todas as tradições.”
Em
suma, temos em René Guénon a trajetória exemplar de um herege gnóstico em
upgrade para a classe de apóstata. Sua opção recorda aquelas de Sabbatai Zevi,
mestre cabalista e falso messias, convertido ao islã em 1666; e de seu seguidor
Jacob Frank, nominalmente convertido ao catolicismo em 1759. Conforme
demonstrou o estudioso Gershom Scholem em seu livro Major trends in Jewish
mysticism, ambos os místicos se converteram por mero cálculo político, mantendo
suas práticas gnóstico-cabalistas de modo oculto, enquanto professavam uma fé
pública que lhes era conveniente. Os perenialistas agem exatamente assim.
Alguém
poderá perguntar: e quem se importa com isso? Qual o problema de uma falsa
conversão, de uma religiosidade apenas de fachada? O problema está nas
consequências lógicas da fraude. Uma espiritualidade enganosa e dissimulada
gera, necessariamente, maus frutos. O próprio Cristo nos ensina:
“Guardai-vos
dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados de ovelhas, mas por dentro são
lobos ferozes. Pelos seus frutos os conhecereis.” (Mateus 7: 15,16).
Para o
filósofo esotérico italiano Julius Evola (1898-1974), o fascismo era o melhor
caminho para reafirmar o caráter
O
critério evangélico fica evidente no caso dos principais expoentes do
perenialismo. René Guénon desenvolveu uma paranoia patológica, que deu origem a
toda uma tradição de teóricos da conspiração, além de flertar com ideias
antidemocráticas e antissemitas. Julius Evola uniu o fermento dos fariseus ao
fermento de Herodes, para tornar-se um entusiasta de Mussolini, um colaborador
da SS nazista e o principal teórico do neofascismo europeu no pós-guerra.
Frithjof Schuon, por sua vez, elevou à máxima potência o charlatanismo intelectualizado
da escola perenialista.
Em
1991, um dos discípulos de Schuon deixou a comunidade que ele havia criado nos
EUA, em Bloomington, Indiana. Em seguida, levou o “filósofo” aos tribunais,
acusando-o de haver abusado de três adolescentes, nas cirandas místicas ou
“encontros primordiais” que promovia. A acusação acabou sendo retirada, após
acordo amigável. Mas diversos testemunhos corroboraram a informação de que
havia contatos íntimos entre o mestre e as jovens durante esses eventos. O
escândalo destruiu a reputação de Schuon e amargurou o restante de sua vida.
Igualmente
reveladoras eram as supostas visões místicas do mestre de Olavo de Carvalho.
Schuon afirmava que a “Virgem Maria” lhe aparecera, por diversas vezes,
inteiramente nua, ocasiões nas quais o envolvia em dança inebriante. Em Against
the modern world, Mark Sedgwick conta sobre as fotos que lhe foram enviadas
logo ao início de sua pesquisa. O choque provocado pelas revelações fez com que
o estudioso abandonasse a ideia de escrever apenas um artigo acadêmico e
passasse à tarefa mais exaustiva de um livro sobre a escola perenialista:
“Numa
certa manhã, encontrei em minha caixa de correio um robusto envelope enviado
por Rawlinson, contendo cópias de algumas fotografias. Sentei-me em minha
escrivaninha e pus-me a, alternadamente, enterrar as fotografias debaixo de
outros papéis e tirá-las dali novamente, entre fascinado e horrorizado. Lá
estava Schuon vestido como chefe de uma tribo de índios americanos, cercado de
jovens mulheres em biquínis. Havia também Schuon completamente nu, exceto pelo
que parecia ser um capacete viking. E havia ainda uma pintura feita por Schuon
da Virgem Maria, igualmente nua, com a genitália claramente exposta.”
Tais
revelações, além de repugnantes em si, nos mostram bem em que consiste a
síntese perenialista. O quadro a que se refere Mark Sedgwick nos mostra não a
Virgem Maria real, mas o conceito que Frithjof Schuon tem de uma Grande Deusa,
sensual e devoradora. Ela se mostra sexualizada ao iniciado precisamente porque
vai com ele operar uma hierogamia mística — que o levará a ascender a planos
superiores do conhecimento. Assim atua o misticismo gnóstico: deturpando a
simbologia de todas as religiões, apropriando-se indevidamente e corrompendo o
que elas têm de mais sagrado, apenas para projetar nesse furto “metafísico” os
conceitos inerentes a seu pretenso saber oculto.
Foi
nesse meio extremamente problemático que Olavo de Carvalho se formou. E são
ainda hoje os preconceitos perenialistas que moldam seu pensamento e sua visão
de mundo. Em especial, foram as obsessões guenonianas que informaram sua
principal obra, O jardim das aflições:
“Quando
examinada do ponto de vista de suas consequências psicológicas, culturais e
espirituais, a ascensão do Império mundial é, como vimos ao longo dos últimos
capítulos deste livro, uma ameaça tenebrosa. (...) O que está em jogo no mundo
não é, portanto, um mero conflito entre ideologias, mas sim a possibilidade de
sobrevivência espiritual da humanidade num mundo onde todas as opções
ideológicas díspares e antagônicas se uniram num pacto entre inimigos para
varrer da face da Terra o legado das antigas religiões.”
A
filiação perenialista de Olavo de Carvalho foi examinada à exaustão pelo
professor Orlando Fedeli, historiador competente e tomista de mão-cheia, em seu
devastador artigo “A gnose ‘tradicionalista’ de René Guénon e Olavo de
Carvalho”, publicado em 2001:
“A
doutrina de Guénon, como a de Olavo, não tem apenas alguns pontos gnósticos
isolados, mas os princípios gnósticos que eles adotam formam um sistema
coerente, que exige chamá-los de gnósticos, ainda que eles não explicitem
alguns pontos próprios da Gnose completa. Essa falta de explicitação de alguns
pontos da totalidade do sistema gnóstico se nota especialmente em Olavo, que
tem uma Gnose menos elaborada pela sua inferioridade em relação a Guénon, quer
quanto à inteligência, quer quanto à cultura, quer ainda quanto ao valor de
seus livros.”
Engana-se
quem acredita ser Olavo de Carvalho um filósofo católico, de linhagem
aristotélica. Criado à sombra de René Guénon, Julius Evola e Frithjof Schuon, o
alegado fervor cristão do mago de Richmond se revela mera pantomima. Por detrás
de suas teorias conspiratórias, de seu desconforto com a modernidade, de seu
anticomunismo ferrenho e de sua agressividade verbal reside a gnose obscura da
escola perenialista. Basta notar que sua obra não evoca qualquer das virtudes
cristãs, mas antes aponta para o inverso delas: em lugar da humildade, a
soberba; ao invés da compaixão, o rancor; não havendo mansidão, a violência; na
ausência da caridade, a pura vontade de poder. Assim é Olavo, o demolidor.
No
início dos anos 90, Olavo de Carvalho passou por uma surpreendente metamorfose.
Deixando para trás a persona do jornalista esotérico e astrólogo
intelectualizado, resolveu estudar filosofia no Conjunto de Pesquisa Filosófica
(Conpefil) da PUC-Rio, sob a direção do padre Stanislavs Ladusãns. Após três
anos de estudos, cansado da disciplina acadêmica, abandonou o curso. Mesmo sem
diploma universitário, começou a dar aulas de filosofia, valendo-se de seus
contatos no meio cultural. A quem o acusava de não ter qualificação para isso,
ele retrucava:
“Filósofo, por definição, é quem filosofa, é
quem elabora, bem ou mal, uma resposta pessoal a questões filosóficas, ou pelo
menos uma interpretação original de filosofias antigas”.
Com
base nas aulas que vinha proferindo na Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio de
Janeiro, elaborou um breve estudo sobre a teoria aristotélica do discurso, cujo
manuscrito foi recusado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC). O incidente deu início a um titânico embate entre o “filósofo”
autodidata e o establishment acadêmico brasileiro.
“Há
décadas nossa intelligentsia vive de ficções que alimentam seus ódios e
rancores e a impedem de enxergar a realidade.”
Assim
nascem os grandes conflitos. O parecer da SBPC sobre essa primeira incursão de
Olavo de Carvalho no terreno da filosofia dizia:
“O
autor parece ignorar a imensa produção sobre Aristóteles publicada nos últimos
anos, seja em revistas especializadas, nos anais de congressos, em teses e
livros (...) não tem acompanhado os debates que se desenvolvem em inúmeros
centros de pesquisa”.
Furioso
com o parecer, Olavo publicou a obra por conta própria, com o título de Uma
filosofia aristotélica da cultura (1994). E partiu para o contra-ataque,
divulgando textos em que ridicularizava a SBPC e acusava seus pareceristas de
desconhecerem a filosofia clássica.
“Para
mim, o homem que sabia javanês infiltrado nas universidades e nas instituições
culturais em geral é tão escandaloso, tão daninho para o país quanto um João
Alves ou um PC Farias.”
A
verdade sobre esta teratologia talvez possa ser encontrada na “justa medida”
aristotélica. O parecer da SBPC assinalava um ponto importante: Olavo de
Carvalho não é um filósofo de cátedra nem contribui para o avanço da filosofia
como disciplina acadêmica. No entanto, também o autor esnobado tinha sua dose
de razão: homens como Sócrates, Sêneca, Agostinho, Boécio, Montaigne, Pascal e
Camus tampouco estiveram circunscritos a um meio acadêmico formal. A produção
do pensamento sempre tenderá a transcender o meio universitário.
Como
então classificar o mago de Richmond? Como o faríamos com Voltaire e Diderot,
descontado o talento dos franceses. Olavo de Carvalho é um philosophe à brasileira:
um livre-pensador, no salon littéraire do Cordão do Bola Preta. Ele ama a
polêmica e exerce fascínio sobre muitos de seus ouvintes, porém mistura
elementos caóticos em tudo que diz, sem muita preocupação com a coerência de
seus argumentos ou a civilidade de sua retórica. Garante Olavo, sobre si mesmo:
“Não
sou filósofo, não, apenas um escritor de livros que, por mera coincidência,
tratam de filosofia, professor em cursos privados que, dada minha carência de
outros conhecimentos, tratam também de filosofia, e proprietário de um cérebro
que, por absoluta falta de outros interesses, se ocupa de filosofia
obsessivamente e em tempo integral”.
Essa
autoimagem do autor de O imbecil coletivo (1996) é pura lábia de cigano das
letras. O ofício de Olavo é a polêmica, não o pensamento. Importa-lhe antes
nocautear o adversário do que respeitar os fatos e ater-se à boa lógica. Por
mais que alardeie ser um defensor da filosofia clássica, ele há três décadas
comporta-se como o mais censurável dos sofistas:
“A noção
mesma de ‘intelectual’ no sentido moderno é sobretudo um retórico — um agitador
de ideias, que nada descobre ou cria por si, mas faz um barulho imenso e põe em
movimento a máquina da História”.
Eis um
retrato preciso do que Olavo faz. Igualmente importante é ter em conta que o
autor de O jardim das aflições (1995) formou-se como intelectual na escola
perenialista de René Guénon, Julius Evola e Frithjof Schuon. Nenhum desses
proponentes da “sabedoria perene” era propriamente um scholar. Demasiado irrequietos
para suportar os rigores da vida universitária, simplesmente publicaram suas
obras, criando uma nova linhagem no campo do esoterismo ocultista. Tinham por
hábito chamar a si mesmos de “metafísicos”, mas sabiam estar a meio caminho
entre o guru letrado e o ensaísta delirante. Diz Olavo sobre eles, pensando
talvez no próprio caso:
“As
antigas tradições e mitologias estão repletas de histórias de magos, sacerdotes
e profetas que nomeiam reis e depois sofrem as maiores ingratidões de seus
protegidos. A coisa parece ser uma constante da história humana. Segundo René
Guénon, é mesmo. (...) Não deixa de ser interessante que a disputa de
prioridade espiritual entre as castas sacerdotal e real se reproduza, na escala
discreta que convém ao caso, entre os dois maiores escritores esotéricos do
século XX: René Guénon e Julius Evola”.
Após
sua breve incursão na seara aristotélica, Olavo de Carvalho passou a dar aulas
de filosofia e publicar com sofreguidão. Em um par de anos, firmou-se no debate
nacional como um polemista assombroso. Seus artigos e ensaios não eram
propriamente obras de filosofia, mas peças de crítica cultural, com forte
inclinação para a opinião política. Desde o começo mostrou-se implacável nas
críticas à esquerda, cujos métodos e debilidades conhecia por experiência
própria. Seus textos, contudo, sempre primaram por mesclar o comentário
pertinente às mais extravagantes teorias conspiratórias:
“Há 60
anos nossos escritores e artistas produzem uma cultura de idealização da
malandragem, do vício e do crime. (...) A imagem do crime na nossa cultura
compõe-se em última análise de um conjunto de cacoetes e lugares-comuns cuja
origem primeira está na instrução transmitida pelo Comintern, em 24 de abril de
1933, ao Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro”.
Olavo
notabilizou-se também por seu frequente recurso ao comentário chulo...
“Mao
Tsé-tung, como se revelou há pouco, comia até os guardinhas do Palácio —
entrando, literalmente, para os anais da Revolução.”
...e
ao insulto despropositado:
“E
logo em seguida um cantorzinho como qualquer outro (referindo-se a Gilberto
Gil), cuja máxima originalidade era ter posado de collant ao lado de Roberta
Close e respectivo maridão no baile gay do Scala, era consagrado por um cargo
ministerial como epítome da ‘cultura nacional’ — seja isso lá o que for”.
Nada
disso edifica ou conduz à sabedoria. Pelo contrário, produz no leitor um
aviltamento da alma, um entorpecimento do intelecto. São características
típicas de quem se formou na gnose obscura da escola perenialista, com seu
revisionismo delirante da história, sua nostalgia pelo sistema de castas e seu
desprezo pelos povos africanos e seus descendentes:
“Alguns
supostos amigos do movimento negro parecem empenhados em transformar a luta
antirracista numa cruzada contra a inteligência. (...) Não existe povo bom: e
vocês, se foram escravos por três séculos após terem sido senhores de escravos
por mais de um milênio, devem agradecer a Deus pela clemência do seu destino”.
Vem
também do perenialismo a desenvoltura de Olavo no exercício do preconceito:
“O
direito à preferência (sexual gay) é insensato se não acompanhado pelo
concomitante direito à repugnância; e o direito à expressão de um vem com o
direito à expressão de outra”.
Em
qualquer país mais atento às regras do convívio civilizado, textos dessa
natureza levariam ao encerramento da carreira intelectual do autor. Aqui no
Patropi, terra de Macunaíma e Dercy Gonçalves, a escatologia “filosófica” de
Olavo de Carvalho foi seu cartão de visita.
Em
meados dos anos 90, Olavo publicou três livros que o lançaram para a fama
nacional: A Nova Era e a revolução cultural (1994), O jardim das aflições e O
imbecil coletivo . O primeiro desses volumes começa com uma apreciação crítica do
pensamento de Fritjof Capra, um físico teórico em ponto de mutação para a
lucrativa profissão de guru californiano. Olavo vê nas propostas edulcoradas de
Capra — e demais teóricos da nova era — uma estratégia sutil de dominação
psicológica das grandes massas, destinada a prepará-las para o advento da Nova
Ordem Mundial:
“Ao
prometeanismo revolucionário, ela (a ideologia da nova era) opõe a ‘integração
da natureza”; à aceleração da história, o equilíbrio ecológico da Nova Ordem
Mundial; e ao historicismo absoluto, o fim da História. Capra é inconcebível
sem Fukuyama. (...) Todo o vistoso ‘esoterismo’ da Nova Era, com suas
iniciações secretas, seus gurus, seus magos e seus ritos, não constitui senão o
exoterismo, o aparato externo e social, cujo interior, cujo ‘sentido esotérico’
é na verdade uma ciência bem moderna, racional e profana: o planejamento
estratégico”.
No
entender de Olavo, junto ao capitalismo lisérgico da nova era, outra ameaça
para a civilização ocidental seria o pensamento do marxista italiano Antonio
Gramsci:
“Gramsci
estabeleceu uma distinção das mais importantes entre ‘poder’ e ‘hegemonia’. O
poder é o domínio sobre o aparelho de Estado, sobre a administração, o exército
e a polícia. A hegemonia é o domínio psicológico sobre a multidão. (...) Não é
preciso dizer que o poder, fundado numa hegemonia prévia, é poder absoluto e
incontestável: domina ao mesmo tempo pela força bruta e pelo consentimento
popular”.
Ele
então explica a estratégia gradual de dominação da “revolução cultural gramsciana”:
“O
gramscianismo transforma em propaganda tudo o que toca, contamina de objetivos
propagandísticos todas as atividades culturais, inclusive as mais inócuas em
aparência. (...) O objetivo primeiro do gramscianismo é muito amplo e geral em
seu escopo: nada de política, nada de pregação revolucionária, apenas operar um
giro de 180 graus na cosmovisão do senso comum, mudar os sentimentos morais, as
reações de base e o senso de proporções, sem o confronto ideológico direto que
só faria excitar prematuramente antagonismos indesejáveis”.
Segundo
Olavo, as ameaças à civilização ocidental viriam de duas vertentes. A primeira,
de inspiração maçônica, teria como características o Estado laico e a promoção
de uma cultura individualista e decadente. A segunda, de inclinação marxista,
estaria marcada pela inovação gramsciana, em que a proposta de revolução armada
é substituída pelo gradualismo da revolução cultural:
“Dessas
semelhanças (entre as duas vertentes), a mais significativa é a negação do
conhecimento objetivo e a consequente redução da atividade intelectual à
propaganda e à manipulação das consciências. (...) A função da intelectualidade
é, portanto, gerar essas ilusões e ‘inculcá-las gradualmente’ na cabeça do
povo. Eles divergem somente quanto à identidade do intelectual: para (o
filósofo Richard) Rorty, ele se constitui da comunidade acadêmica; para
Gramsci, é o Partido ou ‘intelectual coletivo’”.
Essa
ideia de uma dupla ameaça — vinda, de um lado, do liberalismo capitalista; de
outro, do socialismo marxista — reproduz, com pequenas modificações, uma tese
central da escola perenialista. Eis o que diz o mitógrafo e ocultista Julius
Evola, em Revolta contra o mundo moderno (1934):
“A
Rússia e a América são como as duas pontas de um mesmo par de tenazes, que se
estão fechando, pelo Oriente e pelo Ocidente, sobre o núcleo da Antiga Europa,
demasiado debilitado em suas energias e em seus homens para opor-lhes efetiva
resistência. Os conflitos externos, as novas crises e as novas destruições
serão apenas os meios para abrir definitivamente o caminho às variedades do
mundo do Quarto Estado (do proletariado)”.
O
raciocínio é levado adiante por Julius Evola, em artigo da antologia Metafísica
da guerra, originalmente publicado em 1937, na revista italiana Il Regime
Fascista , da qual ele era o editor:
“Se as
duas fases mais recentes do processo involucionário que levou ao declínio
moderno foram, primeiramente, a ascensão da burguesia, e, em seguida, a
coletivização não apenas da ideia de Estado, mas também de todos os valores e
da própria concepção de ética, então, a superação de tudo isso e a reafirmação
da visão ‘guerreira’ da vida, no pleno sentido que anteriormente mencionamos,
deve constituir uma precondição de qualquer reconstrução: que o mundo das
massas e das classes médias materialistas e sentimentais dê lugar a um mundo de
‘guerreiros’; então a principal mudança terá sido alcançada, o que tornará
possível o advento de uma ordem ainda mais elevada, aquela da espiritualidade
tradicional”.
Os
resultados dessa pomposa reação ao “mundo das massas e das classes médias
materialistas e sentimentais” — representado pelo “par de tenazes” da Rússia e
da América — foram o nazifascismo e o Holocausto. O pensamento de Olavo de
Carvalho vem dessa mesma linhagem teórica e sobre ela aplica modificações
meramente cosméticas. Eis um trecho de O jardim das aflições :
“A
crença no Sentido da História é comum aos comunistas e aos democratas
Ocidentais. Estes não creem no esquema marxista, na revolução ou no advento da
utopia proletária, mas creem no progresso das instituições, no aperfeiçoamento
gradual das leis, na redução progressiva da miséria, na educação universal, na
extensão a todos os homens dos benefícios da economia e da cultura modernas.
(...) Divergem apenas nos meios e no tipo de sociedade a que aspiram, mas,
tanto quanto os comunistas, não concebem que a vida possa ter algum sentido
fora ou acima da História. (...) Socialismo e Capitalismo são, assim, as duas
seitas em que se cindiu uma mesma religião”.
Examinadas
com maior atenção, as ideias de Olavo de Carvalho revelam-se meros derivativos
do “fascismo cultural” de René Guénon e Julius Evola. Em linha com seus mestres,
ele se insurge contra tudo que caracteriza a modernidade: a democracia liberal,
as ideologias igualitaristas, a laicidade do Estado e a própria ciência
moderna. Nesse último caso, seu principal inimigo é o evolucionismo:
“O
darwinismo é uma ideia escorregadia e proteiforme, com a qual não se pode
discutir seriamente. (...) Puramente farsesco, no entanto, é o esforço geral
para camuflar a ideologia genocida que está embutida na própria lógica da
teoria da evolução”.
Mas
ele também investe contra o heliocentrismo e a ciência pós-aristotélica:
“O
dogma da sua própria honestidade intelectual intrínseca parece impedir os
físicos de perguntar se não há algo de errado no que estão fazendo. Mas um
fundo de charlatanismo parece ter sido introduzido na física por Galileu. (...)
Galileu não contestou a física antiga, apenas inventou um modo melhor de provar
que ela tinha razão. (...) Foi este episódio que inaugurou a mania dos
cientistas modernos de tomarem simples mudanças de métodos como se fossem
‘provas’ de uma nova constituição da realidade”.
Em
lugar do método científico, da observação empírica, do teste rigoroso das
hipóteses e da autonomia da pesquisa, Olavo de Carvalho nos oferece o
obscurantismo perenialista:
“(...)
as duas censuras básicas e dificilmente respondíveis que o maior crítico da
modernidade, René Guénon, fez à ciência pós-renascentista: a confusão entre
infinito e indefinido, cujas consequências letais se propagam até hoje, e a
perda do sentido fluido e ambíguo da manifestação cósmica”.
Segundo
Olavo, todas as vertentes filosóficas, políticas e culturais da modernidade
podem ser agrupadas no binômio: revolução americana — burguesa — ou revolução
russa — proletária. Do racionalismo de Descartes e Espinoza até a nova era,
passando por Hobbes, Locke, Hume, Kant, o iluminismo, o utilitarismo, o
positivismo e o pragmatismo americano, tudo que não é propriamente socialista
entra no escaninho “maçônico” das revoluções burguesas.
Por
sua vez, tudo que cheira vagamente a socialismo entra na gaveta do “marxismo
cultural”, seja isso originário do pensamento de Marx e Engels, da
interpretação leninista, da revisão gramsciana, da Escola de Frankfurt, do
existencialismo, do estruturalismo, do desconstrutivismo, do pós-modernismo, do
feminismo ou de qualquer outra proposta de ativismo político-social.
Alguns
intelectuais (Hegel, Nietzsche, Freud, Bertrand Russell) e causas políticas
(defesa da ecologia, promoção dos direitos humanos) podem ser classificados ora
em um grupo, ora em outro, dependendo dos humores de Olavo de Carvalho. Quando
ele está enfezado, vira tudo uma coisa só: “marxismo cultural”. E o pai disso
tudo é Gramsci, não o Antonio Gramsci verdadeiro, mas um Gramsci com
esteroides, vitaminado, dono de uma inteligência diabólica, capaz de alterar os
rumos da história:
“Em
poucas décadas, o marxismo cultural tornou-se a influência predominante nas
universidades, na mídia, no show business e nos meios editoriais do Ocidente.
Seus dogmas macabros, vindo sem o rótulo de ‘marxismo’, são imbecilmente
aceitos como valores culturais supraideológicos pelas classes empresariais e
eclesiásticas (...). Dificilmente se encontrará hoje um romance, um filme, uma
peça de teatro, um livro didático onde as crenças do marxismo cultural, no mais
das vezes não reconhecidas como tais, não estejam presentes com toda a
virulência do seu conteúdo calunioso e perverso”.
Em O
imbecil coletivo, a preocupação de Olavo em denunciar a intelligentsia de
esquerda, os “intelocratas” da indústria cultural, os militantes progressistas
e toda a agenda de transformação social desabrochou em um conjunto eclético de
artigos, em que o gosto pela polêmica se fez como eixo central:
“O
imbecil coletivo não é, de fato, a mera soma de certo número de imbecis
individuais. É, ao contrário, uma coletividade de pessoas de inteligência
normal ou mesmo superior que se reúnem movidas pelo desejo comum de
imbecilizar-se umas às outras. (...) É claro que estabeleço uma distinção entre
os homens letrados em geral e, como foi dito acima, a intelligentsia em
especial, atribuindo exclusivamente a esta última a jurisdição do imbecil
coletivo”.
Nessa
denúncia, Olavo foi especialmente crítico do que ocorria no Brasil:
“Basta
uma geração de ‘intelectuais coletivos’ dominar o mundo para que se perca a
individualização da consciência, prêmio de um esforço evolutivo milenar. (...)
O Brasil é a terra prometida do ‘intelectual coletivo’”.
Apresentando-se
ao país como um conservador ilustrado — na linha de José Guilherme Merquior,
Paulo Francis e Roberto Campos —, Olavo de Carvalho enganou a muitos. Ao leitor
atento, contudo, seus textos sempre evocaram o pensamento vivo de Carlos
Imperial:
“Identifique
logo a minoria discriminada a que pertence — pois todo mundo pertence a alguma
— e exiba-a como um cartão de ingresso: ela dá direito a ser bem recebido
nesses círculos (das pessoas maravilhosas). Não venha com essa de que não tem
nenhuma. Se você não é preto, nem gay, nem judeu, nem baixinho, nem gordo, nem
índio, deve pelo menos ter o peru pequeno”.
Embora
teime em fantasiar-se de defensor da alta cultura, Olavo de Carvalho pouco
entende do assunto. Vejamos sua opinião sobre o artigo 216 da Constituição
Federal, que versa sobre a promoção e proteção do patrimônio cultural
brasileiro:
“Os
constituintes, tendo incorporado em sessão de macumba o espírito de Margaret
Mead, deram vitória aos grafiteiros, atentando que o Brasil não quer educar-se,
nem elevar-se moral e espiritualmente, nem mesmo refinar-se esteticamente: quer
apenas documentar-se, mostrar-se tal como está e, mandando às favas todo ideal
superior, bater no peito como Popeye, num paroxismo de autossatisfação com seu
estado presente: I am what I am what I am what I am. Ou, traduzindo em baianês,
Eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim: Gabriééla!”.
Olavo
parece desconhecer por completo a diferença entre produção cultural efetiva e
preservação do patrimônio histórico e artístico, seja ele material ou
imaterial. Há que imaginar o desalento, lá no Céu, dos três idealizadores da
salvaguarda do patrimônio brasileiro: Mário de Andrade, Carlos Drummond de
Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade. Nosso país já produziu gênios desse
quilate. Hoje vive à sombra dos carvalhos de Olavo — um intelectual versado na
gnose perenialista, mas pouco afeito à salutar interação entre a cultura
erudita e a cultura popular:
“Na
vertical, porém, Guimarães (Rosa) alcança altitudes e profundidades que estão
fora do mundo de (Dorival) Caymmi, e se torna, por isso, universal; qualquer
homem, de qualquer nacionalidade, pode ler Guimarães para conhecer-se a si
mesmo e não só para conhecer o Brasil; ao passo que em Caymmi a referência
local é também o extremo limite de sua significação intelectual”.
Olavo
não entende que é tolice separar as duas coisas. Guimarães Rosa nunca teria
existido sem o linguajar criativo de Manuelão e a vastíssima cultura do sertão.
Do mesmo modo, não teríamos um Villa-Lobos sem o choro carioca ou as modinhas
caipiras. Ambos foram universais por saber mergulhar no que havia de melhor na
cultura nacional. O que emprestaram de complexidade ao substrato popular merece
ser visto como a justa contrapartida pelo que dele receberam em força telúrica.
Diz Riobaldo:
“Sou
só um sertanejo, nessas ideias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja
minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração”.
Olavo
também não entende que, em sua disciplina artística, Caymmi chegou ao mais alto
nível que se possa imaginar. Foi um gênio da canção popular, como poucas vezes
se viu neste planeta Terra. Quanto a sua significação para o mundo, o legado do
autor de “O que é que a baiana tem”, “É doce morrer no mar”, “Só louco”,
“Saudades de Itapoã”, “Doralice” e “Modinha para Gabriela” nada fica a dever ao
de Guimarães Rosa. A obra do mestre baiano é puro espírito e voo existencial.
Se Olavo prestasse mais atenção a Caymmi, talvez pudesse reconhecer-se a si
mesmo:
“O
samba da minha terra deixa a gente mole/Quando se canta, todo mundo bole/Quando
se canta, todo mundo bole/Quem não gosta de samba bom sujeito não é/É ruim da
cabeça ou é doente do pé”.
Ruim
da cabeça ou doente do pé. Assim estava Olavo de Carvalho ao escrever O jardim
das aflições. Trata-se de sua “obra-prima”: seu livro de maior fôlego e aquele
que melhor sintetiza seu pensamento. Mas é também um volume malsão, uma obra ao
negro, de pura alquimia perenialista. Fingindo-se de cristão conservador, Olavo
vende ao leitor uma reflexão esotérica sobre a modernidade, com elevado teor de
obscurantismo.
“Há
uma grande diferença entre o doutrinador que mete simplesmente na cabeça das
pessoas uma ideia errada e o feiticeiro que as adoece, debilitando suas
inteligências para que nunca mais atinem com a ideia certa.”
A obra
começa com um ataque ao filósofo José Américo Motta Pessanha, de virulência
jamais vista na história da inteligência brasileira. O pecado de Pessanha era
ter feito uma palestra sobre o filósofo grego Epicuro, no ciclo de conferências
que a Secretaria Municipal de Cultura, então chefiada por Marilena Chauí,
promovera no Museu de Arte de São Paulo, em 1990:
“As
frases de Pessanha eram um entorpecente, que entrava pelos ouvidos da plateia,
envenenava os cérebros, movia o eixo dos globos oculares, fazendo ver tudo
diferente do que era, num giro louco da tela do mundo. Um público de quinhentas
pessoas submetera-se à intoxicação com sonsa alegria, numa deliquescência
mórbida, como crianças a seguirem um novo flautista de Hamelin”.
Nada
do que Olavo diz sobre Pessanha retrata com fidelidade as propostas do filósofo
carioca, principal responsável pela série Os pensadores , um marco na história
cultural do país. E nada do que diz sobre Epicuro traduz, com precisão, o
pensamento deste defensor da vida pacata, na companhia dos amigos e longe dos
tumultos do mundo. A filosofia epicurista inspirou o poeta romano Lucrécio,
autor do clássico De rerum natura. Vinte séculos mais tarde, deu-nos a canção
“Casa no campo”, de Zé Rodrix e Tavito, uma das maiores joias da MPB:
“Eu
quero uma casa no campo/Onde eu possa compor muitos rocks rurais/E tenha
somente a certeza/Dos amigos do peito e nada mais/Eu quero uma casa no
campo/Onde eu possa ficar do tamanho da paz/E tenha somente a certeza/Dos
limites do corpo e nada mais”.
É uma
proposta materialista, sem dúvida. Ela nos oferece a busca imediata da
felicidade terrena. No entanto, esse pacato escapismo, centrado na amizade
(philia) e no desapego às glórias do mundo, pode ser também visto como um
primeiro passo rumo à proposta cristã de uma vida mais profunda, centrada na
caridade (ágape). Acontece que Olavo não busca o diálogo com os epicuristas, e
sim um confronto de vida ou morte com seus supostos descendentes: o positivismo
cientificista, a esquerda marxista e o relativismo pós-moderno. Ele nunca faz
justiça ao que o outro pensa. Seu mais comum estratagema é distorcer as ideias
alheias, para depois derrotar o espantalho:
“As
ideias, para certas pessoas, não são imagens da realidade: são poções mágicas,
de que se servem para enfeitiçar o público e colocá-lo a serviço de fins com
que, lúcido e informado, ele não se prestaria a colaborar de maneira alguma. E
um feitiço não se discute no plano teórico: um feitiço desfaz-se, mediante a
exibição dos chumaços de cabelos e dos retalhos de roupas da vítima, que o
feiticeiro, em furtiva incursão, escondeu entre restos de cadáveres”.
Esse é
o vodu de Olavo de Carvalho contra seus adversários. Um estratagema
especialmente infesto, tendo em vista que Pessanha falecera dois anos antes de
O jardim das aflições ser publicado. Olavo tem especial predileção pelo jogo
sujo. Acusa os epicuristas de haverem, com seus ataques, forçado Aristóteles a
buscar o exílio, sendo que Epicuro era um rapaz de 19 anos quando o Estagirita
foi expulso de Atenas, em 323 a.C. Afirma também que Pessanha “já vinha, como
editor da série Os pensadores, preparando o terreno para a transformação da
filosofia em arma política a serviço de determinados fins”. O disparate é
complementado por informações errôneas sobre os 52 volumes da coleção original.
Mas nada supera, em vocação para o absurdo, o comentário a seguir:
“A
coleção incluía obras que só exerceram influência em círculos bem delimitados,
como por exemplo as de (Ludwig) Wittgenstein e Adorno, e omitia outras que
produziram verdadeiras revoluções, como as de (Carl Gustav) Jung e René Guénon,
que arrombaram as portas do Ocidente para a invasão das ideias orientais. (...)
Sem falar, é claro, de Lênin ou (George) Gurdjieff”.
Olavo
deve ter confundido a coleção Os pensadores com sua contemporânea, a Biblioteca
planeta . Acontece que René Guénon e Gurdjieff nem nos 20 volumes dos clássicos
do esoterismo conseguiram entrada: foram considerados bruxos de segunda classe.
Desconsolado, o autor de O jardim das aflições coloca toda a culpa no
esquerdista falecido:
“José
Américo Motta Pessanha mergulhou até o fundo do erro, bebeu até o fim a taça da
falsidade universal, com uma espécie de heroísmo do autoengano. Isto fez dele o
emblema das dores e da insânia de uma época”.
Finda
a diatribe contra os arautos do materialismo epicurista, Olavo dedica-se a
vender seu peixe: a gnose perenialista. Seguem-se 90 páginas de uma mistura
enjoativa de hermetismo, I Ching, cabala e sufismo, fazendo-se passar por
autêntica mística cristã. Tudo isso embalado por um pastiche de história da
Igreja Católica, repleto de equívocos, e uma releitura irracionalista da
filosofia moderna. Nesse exercício, Olavo apresenta uma distinção enganosa
entre gnose (saber esotérico genuíno) e gnosticismo (suposta nostalgia
anticristã da religião cósmica), que apenas repete o estratagema de Guénon em O
teosofismo: história de uma pseudo-religião (1921), ao propor uma diferenciação
artificial entre o esoterismo correto (teosofia) e o esoterismo corrompido pelo
evolucionismo (teosofismo).
Uma
das marcas de O jardim das aflições está nas paráfrases de textos clássicos do
perenialismo. Em especial, Olavo retira seus argumentos de dois livros de René
Guénon: O simbolismo da cruz (1931) e A grande tríade (1946). No primeiro,
Guénon investe contra o mistério da Encarnação; no segundo, contra o dogma da
Trindade. São os dois passos indispensáveis a sua opção pelo esoterismo
islâmico. Vejamos este trecho da “obra-prima” de Olavo de Carvalho:
“Para
me fazer entender, devo recorrer a um diagrama, onde a vertical simboliza a
eternidade e a horizontal a temporalidade, como aliás todo o simbolismo
universal da cruz. Na simbologia chinesa, a vertical corresponde a khouen, a
‘perfeição ativa’, ou o princípio metafísico do qual tudo se origina; e o horizontal
a khien, a ‘perfeição passiva’ ou manifestação cósmica desse princípio. Note-se
que o homem aqui designado é o Homem Universal, molde do cosmos — transcendente
ao cosmos, portanto — e não a individualidade empírica. De outro lado, porém, o
Homem Universal é a essência mesma da individualidade concreta, da
singularidade humana”.
E
comparemos com o que Guénon diz em seu libelo anticristão, O simbolismo da
cruz. Primeiramente, em respeito aos conceitos de khien (ou Ch’ien) e khouen
(ou Ch’uan):
“A
concepção inteligível é ‘perfeição ativa’ (Ch’ien), a possibilidade da vontade
na Perfeição, e naturalmente da onipotência, que é idêntica ao que se denomina
‘Atividade Celeste”. Mas, de modo a podermos falar sobre ela, a concepção
inteligível precisa tornar-se sensível (porque a linguagem, como toda outra
expressão externa, pertence necessariamente à ordem sensível); e ela é então
‘perfeição passiva’ (Ch’uan)”.
Em
seguida, vejamos o que René Guénon nos diz sobre o conceito de “Homem
Universal”:
“A
efetiva realização dos múltiplos estados do ser está relacionada à concepção
que várias doutrinas tradicionais, incluindo o esoterismo muçulmano, denotam
pelo termo ‘Homem Universal’, uma concepção que estabelece uma analogia
constitutiva entre a manifestação universal e a modalidade humana individual
ou, para usar a linguagem do Hermetismo ocidental, entre o ‘macrocosmo’ e o
‘microcosmo’”.
Em
suma: Olavo copiou. Copiou e não citou. Parece também haver trocado as bolas
com respeito ao binômio ativo-passivo. Para Olavo, khien é “perfeição passiva”,
mas Guénon nos diz que Ch’ien é “perfeição ativa”. Do mesmo modo, para Olavo,
khouen é perfeição ativa, porém seu mestre, de quem copiou esses conceitos,
assegura que Ch’uan é perfeição passiva.
O
constrangimento é ainda maior com respeito ao termo Homem Universal. Como o
texto de Guénon deixa claro, estamos diante de um conceito do esoterismo
islâmico, que vem diretamente do hermetismo. Algo que nos remete ao homem de
Vitrúvio, retratado por Leonardo da Vinci, ou ainda ao arcano do Mago no tarô
de Waite-Smith. É o homem divinizado, que reúne em si o macrocosmo e o
microcosmo, o transcendente e o imanente. Prossegue Guénon:
“A
maioria das doutrinas tradicionais simboliza a realização do ‘Homem Universal’
por um signo que é em toda parte o mesmo, porque (...) está ligado diretamente
à Tradição Primordial. Esse signo é o sinal da cruz, que muito claramente
representa a maneira de chegar a essa realização por meio de uma perfeita
comunhão de todos os estados do ser, dispostos de modo harmonioso e conforme,
em expansão integral, no duplo sentido de ‘amplitude’ e de ‘exaltação’”.
No
entanto, o próprio Guénon nos explica que nada disso é cristão:
“De
acordo com a forma tradicional tardia, ‘Homem Universal’, enquanto representado
pelo casal “Adão-Eva’, tem o mesmo número que Allâh, o que pode ser tomado como
um meio de expressar a ‘Suprema Identidade’”.
Olavo
Mohammed Trismegistus reproduz o resultado dessa mistificação
hermético-islâmica, proposta por René Guénon, em três livros: A Nova Era e a
revolução cultural (pág. 13), O imbecil coletivo (pág. 30) e O jardim das
afliçõe s (pág. 251). É um diagrama em cruz, que sintetiza para o leitor a
interpenetração entre a vida espiritual e a vida política.
Obviamente,
o bruxo de Richmond nos oferece uma cruz sem Cristo. Uma cruz que ignora os
temas do sacrifício e da redenção. Uma cruz que não nos livra de nossas culpas
nem nos abre para o amor-caridade. Pelo contrário, Olavo nos oferta uma cruz
gnóstica, que nos lança nas trevas do orgulho, da alta magia e da pura vontade
de poder. Olavo de Carvalho não é apenas um falso cristão. É uma pedra de
tropeço para os leitores que buscam a verdadeira espiritualidade.
A
epopeia perenialista de O jardim das aflições prossegue com um percorrido histórico,
filosófico e político, em que Olavo de Carvalho denuncia o projeto materialista
da modernidade e seu culto ao progresso. Por trás disso, estariam algumas
poderosas vertentes espirituais:
“A
ideologia progressista muito deve ao ocultismo, à teosofia e ao espiritismo no
que tange à aceitação mundial do evolucionismo, já não como simples teoria biológica,
mas como explicação geral do cosmos”.
A
denúncia aponta, igualmente, para o ressurgimento do Império Romano, como força
opressora paganizada, na figura do Império Americano:
“A
história do ocidente é marcada pelas sucessivas reencarnações da ideia de
Império Romano, culminando no Império Americano (...) um Império que fora
criado sob inspiração maçônica, com a ideia de neutralizar as diferenças entre
as religiões mediante o recurso do Estado laico”.
Esse
novo império tenderia a tornar-se um império mundial, a partir da expansão do
poderio americano e da universalização dos valores da revolução americana, a
“revolução maçônica”:
“O
único lugar do mundo onde os ideais iluministas foram realizados na máxima
extensão possível das faculdades humanas foram os Estados Unidos. (...) O
nazifascismo e a URSS não foram, dentro do curso maior da História, senão
momentos dialeticamente absorvidos na linha perfeitamente nítida de
desenvolvimento que leva da Revolução maçônica à mundialização do Estado leigo
e à americanização do mundo”.
Junto
ao ressurgimento do império, emergiria um novo culto ao imperador, na forma do
crescente agigantamento do Estado. Isso adviria da própria dinâmica interna do
ideário progressista:
“A
dialética do poder do Estado moderno é diabolicamente simples: incentivados a
fazer uso de seus direitos, os cidadãos reivindicam mais e mais direitos; os
novos direitos, ao serem reconhecidos, transformam-se em leis; as novas leis,
para poderem ser aplicadas, requerem a expansão da burocracia fiscal, policial
e judiciária; e assim o Estado se torna mais poderoso e opressivo quanto mais se
multiplicam as liberdades e direitos humanos”.
Esse
projeto de criação de um Estado todo-poderoso, quase divinizado, seria
favorecido tanto pela linhagem capitalista-maçônica do culto ao progresso
quanto pela falange socialista-revolucionária do “marxismo cultural”. Em ambos
os casos, as estruturas tradicionais da sociedade estariam sendo dissolvidas,
dando lugar a uma multidão amorfa de indivíduos impotentes:
“A
sociedade moderna caminha decisivamente para a destruição desses poderes
intermediários e das associações humanas que os sustentam, de modo que o
indivíduo fique sem conexões orgânicas em torno, impotente e solitário no oceano
do mercado livre, e ligado diretamente ao Estado”.
No
entender de Olavo, tudo estaria conspirando no sentido da expansão inexorável
do poder do Império Americano, cujas características primordiais seriam o
Estado laico e a ideologia maçônica:
“O
Estado leigo tem religião, sim. (...) invisível e onipotente, a Religião do
Império, perpetuada no culto discreto oficiado por uma nova casta sacerdotal
colhida nos escalões superiores da aristocracia maçônica”.
Tudo
isso é feito com marcada violência aos fatos históricos e à evolução do
pensamento ocidental. Em Olavo de Carvalho, os dados da realidade são revistos
e adaptados livremente, para poderem ajustar-se às propostas perenialistas.
Também não faltam teorias conspiratórias:
“Como
dizia Guénon, o poder é secreto por natureza. (...) Se o leitor acompanhou
minha argumentação até aqui, há de ter certamente compreendido o peso imenso
que terá, na decisão do destino do mundo, a disputa entre os homens de religião
e os homens de governo. Ironicamente, a opinião pública, inclusive letrada, não
tem a menor ideia de que se trata do velho conflito de castas”.
Em
linha com o esoterismo de René Guénon e Julius Evola, Olavo sustenta que a
crise da civilização ocidental deriva da “ruptura entre os Pequenos e os
Grandes Mistérios”. Partindo de análise da simbologia maçônica no romance Os
anos de aprendizagem de Wilhelm Meister , do poeta alemão Goethe, ele comenta
as consequências do progressivo afastamento entre a visão histórico-cósmica
(típica da ideologia progressista) e a tradicional busca pela transcendência:
“A
extraordinária beleza desta imagem (que Goethe nos oferece) da ordem universal
não deve porém fazer-nos esquecer que nela se trata apenas daquilo que se chama
de uma iniciação de ‘Pequenos Mistérios’, isto é, a revelação da ordem
histórico-cósmica; e que tão logo os Pequenos Mistérios se fazem passar por uma
finalidade em si mesmos, se tornam um entrave ao desenvolvimento espiritual do
homem, barrando-lhe o acesso aos ‘Grandes Mistérios’ onde a ordem cósmica é
transcendida pelo conhecimento do infinito e do divino”.
Olavo
então conclui, com um alerta dramático:
“A
ruptura entre os Pequenos e os Grandes Mistérios, ocasionando o predomínio
unilateral da ideologia prometeica desvinculada de todo contato com o Espírito,
representa um corte ao meio do corpo do Homem Universal, a mais dolorosa e
trágica experiência espiritual já vivida pelo homem sobre a Terra”.
A
completa secularização da vida social e o fortalecimento desmedido do Estado
nos levariam, segundo Olavo, a um mergulho na tirania e ao colapso da
civilização ocidental:
“A
vitória da elite maçônica traz em si os germes de sua própria destruição, na
medida em que, quanto mais se laiciza a sociedade, menos coerência, menos
credibilidade e menos funcionalidade têm os valores democráticos em nome dos
quais essa elite chegou ao poder e governa. O menos inviável dos regimes
terminará por inviabilizar-se quando terminar de corroer, em nome da
democracia, os princípios religiosos a que a ideia democrática deve toda a sua
subsistência”.
Desses
perigos, somente os “homens espirituais” poderiam nos salvar, assegura-nos o
mago de Richmond. Eles não se confundiriam com a hierarquia de nenhuma igreja,
obviamente, pois seriam “filósofos”, de linhagem perenialista:
“O
indivíduo que chega à verdade tem, ao proclamá-la, uma autoridade superior à da
sociedade, pois fala em nome do universal, absoluto e supraquantitativo, ao
passo que a sociedade fala apenas em nome do geral, forma quantitativa e
meramente simbólica do universal. (...) O portador da verdade esotérica (...) é
o porta-voz de um Deus verdadeiro, do qual aqueles deuses que aparecem no culto
público não são senão ecos e imagens distantes”.
Aí
está uma perfeita definição de como pensa um gnóstico. Ele acredita que chegou
a uma verdade superior e que paira acima da sociedade, à qual deve uma lealdade
apenas formal, epidérmica. Olavo esclarece como os homens espirituais poderão
nos resgatar da crise da modernidade:
“De
acordo com Guénon, a civilização do Ocidente, se não conseguisse reunificar
Maçonaria e Cristianismo — Pequenos e Grandes Mistérios —, restaurando o corpo
cindido da espiritualidade tradicional, não teria alternativa senão cair na
barbárie ou islamizar-se”.
Ele
também nos diz onde podemos encontrar esses fabulosos homens espirituais:
“É
ainda nos Estados Unidos que se encontra hoje o mais poderoso núcleo de
resistência ao avanço do ateísmo oficial (...) a elite espiritual, concentrada
em torno de figuras como Seyyed Hossein Nasr — exilado iraniano — Huston Smith,
Victor Danner e outros, profundamente influenciada pelo pensamento de Frithjof
Schuon, homem espiritual de primeiro plano e inventor do único método válido já
concebido para a comparação e aproximação das religiões”.
Bingo.
Olavo de Carvalho conclui sua “obra-prima” colocando as esperanças de salvação
do decadente mundo ocidental nas mãos da “elite espiritual” perenialista, sob o
comando do principal discípulo de René Guénon, Frithjof Schuon (1907-1998), que
ainda estava vivo quando O jardim das aflições foi publicado. Sim, o libidinoso
Schuon, aquele que confundia as visitas de um súcubo com supostas aparições da
Virgem Maria. Homem espiritual de primeiro plano! Sobre intelectuais dessa
natureza, alertou-nos Tomás de Kempis, na obra Imitação de Cristo :
“Melhor
é, por certo, o humilde camponês que serve a Deus do que o filósofo soberbo que
observa o curso dos astros, mas se descuida de si mesmo”.
O
pensamento de Olavo de Carvalho é um beco sem saída. Mesmo quando aponta
problemas reais na agenda liberal-progressista — a questão do aborto, a tirania
do politicamente correto — ou no projeto de poder das esquerdas — o viés
antidemocrático, o mergulho na corrupção —, ele o faz motivado por ideias que
não representam uma alternativa, mas um retrocesso, uma perigosa ameaça às
conquistas da sociedade democrática. O autor de O jardim das aflições é incapaz
de dialogar com a modernidade. Tudo cai por terra diante da fúria de Olavo, o
demolidor.
Essa
sanha destrutiva advém de seus mestres perenialistas. Segundo René Guénon, será
preciso implodir o mundo moderno, de modo a encerrar o Kali-Yuga e inaugurar um
novo tempo. Eis o que afirma, na conclusão de O reino da quantidade e os sinais
dos tempos (1945), sua “obra-prima”:
“Por
um lado, se essa manifestação (do fim dos tempos) for tomada simplesmente em si
mesma, sem estar relacionada a um todo muito maior, o inteiro processo, do
começo ao fim, é claramente uma ‘descida’ progressiva ou ‘degradação’, e isso
pode ser chamado de seu aspecto ‘maléfico’. Mas, por outro lado, essa mesma
manifestação, quando colocada de volta no todo ao qual pertence, produz
resultados que têm um efeito verdadeiramente ‘positivo’ na existência
universal. Seu desenvolvimento deve ser levado até o fim, para que inclua o
desenrolar das possibilidades inferiores da ‘idade das trevas’, de modo que a
‘integração’ desses resultados seja possível e possa tornar-se o princípio
imediato de outro ciclo de manifestação; e isso é o que constitui o seu aspecto
propriamente ‘benéfico’”.
É um
pensamento mórbido, doentio e fatalista, baseado em visão cíclica da história.
Nada disso diz respeito ao cristianismo. O fantasma que informa a gnose
perenialista não guarda a menor semelhança com o Espírito que guiou a Constituição
pastoral Gaudium et spes. Nesse documento, o Concílio Vaticano II indica como a
Igreja deve situar-se diante dos problemas da modernidade:
“O
Concílio, testemunhando e expondo a fé do Povo de Deus congregado por Cristo,
não pode manifestar mais eloquentemente a sua solidariedade, respeito e amor
para com a inteira família humana, na qual está inserido, do que estabelecendo
com ela diálogo sobre esses vários problemas, aportando a luz do Evangelho e
pondo à disposição do gênero humano as energias salvadoras que a Igreja,
conduzida pelo Espírito Santo, recebe do seu Fundador. Trata-se, com efeito, de
salvar a pessoa do homem e de restaurar a sociedade humana. Por isso, o homem
será o fulcro de toda a nossa exposição — o homem na sua unidade e integridade:
corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade”.
Assim
pensam e agem os verdadeiros homens espirituais. Com humildade e amor ao
próximo. Com respeito ao gênero humano e abertura ao diálogo. Sem ilusões
quanto ao mundo da política ou às promessas da modernidade, mas cientes de que
Cristo nos chama para ajudarmos a “salvar a pessoa do homem” e “restaurar a
sociedade humana”. São mensagens de fé, esperança e caridade — que o leitor
jamais encontrará na obra de Olavo de Carvalho.
Até o
final dos anos 90, Olavo de Carvalho seguia em voo de cruzeiro sua rota como o
mais implacável crítico da esquerda brasileira. Com artigos publicados
regularmente em diversos meios de comunicação, participações em debates
públicos e aparições na televisão, o autor de O imbecil coletivo (1996)
demonstrava haver conquistado a boa vontade dos meios conservadores
brasileiros. A entrevista que concedeu a Boris Casoy, em 20 de setembro de
1998, no programa Passando a limpo, registrou seu auge intelectual e
psicológico. Diante das câmeras da Record, Olavo se apresentou com distinção:
não fumou, não insultou ninguém nem deixou raciocínios incompletos. Seu apelo a
teorias conspiratórias mostrou-se contido e a forma como enunciou suas teses
centrais foi bem mais comedida do que nos livros que vinha publicando:
“O
preconceito é simplesmente um resíduo da burrice humana. Nós não podemos fazer
uma lei que proíba a burrice humana, que proíba a covardia, que proíba a
maldade interior. É melhor conviver com um pouco de preconceito do que você
fazer um super-Estado que, a pretexto de proteger uns contra os outros, oprima
a todos igualmente”.
O
problema disso, obviamente, está nos diferentes conceitos que a burrice humana
tem do que venha a ser “um pouco de preconceito”. Olavo, por exemplo, sempre
teve uma concepção infinitamente elástica dessa pouquidade. Longe das câmeras,
ele escrevia:
“Os
intelectuais de elite — brancos, negros ou mestiços — são culpados de cultivar
no povo negro, por oportunismo ou perversidade, ilusões quase demenciais quanto
ao valor da cultura afro. A contribuição básica dos negros ao Brasil foi dada
através do trabalho escravo (...): foi uma contribuição material, não
cultural”.
Ou
seja: no país do Carnaval, do samba, do frevo, do jongo, do maracatu, da congada,
do afoxé, da capoeira, do bumba meu boi, do maculelê, da Folia de Reis, da
feijoada, do vatapá, do acarajé, do caruru, do mungunzá, da malagueta, do
quiabo, da couve e do dendê; na pátria de Aleijadinho, de André Rebouças, Luís
Gama, José do Patrocínio, Cruz e Souza, Lima Barreto, Caymmi, Pixinguinha,
Cartola, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Baden Powell,
Agostinho dos Santos, Jorge Benjor, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Tim Maia,
Grande Otelo, Milton Gonçalves, Zezé Motta, Mussum, Abdias do Nascimento,
Milton Santos, Didi, Garrincha e Pelé — o povo negro prestou apenas uma
“contribuição material, não cultural”, pois a isso foi compelido “através do
trabalho escravo”. A mais pura metafísica. Assim é Olavo de Carvalho.
“E nada
mais confortável para um cara de pau do que poder contar com a sonsa aprovação
de uma plateia novata, incapaz de atinar com a extravagância do seu
procedimento.”
Na
virada do século, tudo mudou para Olavo. Dois fatos marcantes o levaram a rever
algumas de suas ideias e opções de vida. O primeiro foi o atentado contra as
Torres Gêmeas do World Trade Center, em 11 de setembro 2001, que o confrontou
com o lado obscuro do fundamentalismo islâmico. O segundo foi a vitória de Lula
nas eleições de 2002, que o colocou à mercê de seus arqui-inimigos:
“A
esquerda brasileira — toda ela — é um bando de patifes ambiciosos, amorais,
maquiavélicos, mentirosos e absolutamente incapazes de responder por seus atos
ante o tribunal de uma consciência que não tem”.
Dizem
alguns que Olavo foi jurado de morte pela esquerda radical. A lenda alternativa
sustenta que teria sido contratado pela CIA e/ou pelo Mossad. Nada impede que
ambas as hipóteses estejam corretas, mas talvez tudo isso não passe de mera
fantasia. O fato primário é que Olavo se mudou, em 2003, para os EUA,
estabelecendo-se em Richmond, no estado da Virgínia. Protegido pela distância,
pôde continuar a filosofar, com a elegância costumeira:
“Para
o revolucionário, todo discurso público, sobretudo eleitoral, é apenas
utensílio. Utensílio tão provisório, tão descartável quanto uma tira de papel
higiênico ou uma camisinha”.
Os
fatos secundários nos informam que Olavo conseguiu visto de residência, arrumou
uma casa para viver e reuniu os recursos necessários para sustentar a família.
Quem já morou no exterior sabe que isso não é fácil nem barato. O mais provável
é que tenha sido auxiliado pela rede de intelectuais e comunidades
perenialistas nos EUA. Após a morte de Frithjof Schuon, em 1998, os
perenialistas americanos ficaram sem uma liderança clara e passaram a atuar no
âmbito da nascente ultradireita local, a chamada “alt-right”. Com isso,
ampliaram sua influência, ainda que com a mensagem um pouco diluída. Tais
circunstâncias fizeram com que Olavo passasse por nova mutação. O perenialismo
aberto de suas obras anteriores teve de recuar um pouco, para acomodar os
dogmas da direita americana. Temas como a defesa do Estado de Israel, o combate
ao terrorismo islâmico, o direito ao porte de armas e a necessidade de reafirmar
o poderio dos EUA ante seus rivais infiltraram-se em seu pensamento,
mesclando-se ao substrato original. Outros temas, que já trazia de origem, como
o repúdio à imigração, a crítica às pautas ecológicas e a aversão ao sistema
multilateral, ganharam força ainda maior:
“Há
pelo menos dez anos a ONU já declarou oficialmente sua intenção de
consolidar-se como administração planetária. (...) A autoridade avassaladora
desse projeto constitui hoje a fonte única e central de onde jorram sobre toda
a população terráquea legislações uniformes em matéria de indústria, comércio,
ecologia, saúde, educação, quotas raciais, desarmamento civil, etc. (...) As
únicas resistências que tem encontrado vêm dos EUA e de Israel. Mas os EUA
permanecem num constante vaivém entre o desejo de afirmar sua independência
contra as pretensões do globalismo e a tentação de tomar as rédeas do processo
para conduzi-lo a seu modo”.
Dessa
fusão nasceu o Olavo tardio, de títulos como Os EUA e a Nova Ordem Mundial
(2012), A filosofia e seu inverso (2012), O mínimo que você precisa saber para
não ser um idiota (2012) e O império mundial da burla (2016). A principal
inovação dessa última fase é a hipótese dos três blocos globalistas:
“Embora
a interpretação que apresentei sobre a história da ideia de Império em O jardim
das aflições esteja correta, ela está incompleta no que diz respeito aos EUA.
(...) Eu precisava ampliar o quadro e foi então que me surgiu a teoria dos três
blocos globalistas: o anglo-saxônico ocidental, o comunista russo-chinês e o
islâmico”.
A nova
proposta, em lugar de promover um ajuste na formulação antimoderna de O jardim
das aflições , trouxe ainda maior incoerência a uma tese essencialmente
problemática. No que era, originalmente, um programa maçônico de
universalização dos valores da revolução americana e de criação de um Império
mundial, Olavo passa agora a ver o projeto globalista das elites ocidentais,
pós-cristãs e alienadas de suas raízes nacionais. Onde antes estava o
socialismo derrotado, com grupos de intelectuais e ativistas de esquerda
tentando acoplar-se ao projeto maçônico, ele passa a ver um ressurgimento do
comunismo, sob a batuta dos serviços secretos da Rússia e da China. Para
completar, eleva o atual caos político, social e cultural do Oriente Médio ao
status de “bloco globalista”:
“O
esquema russo-chinês privilegia o ponto de vista geopolítico e militar, o
ocidental o ponto de vista econômico, o islâmico a disputa de religiões. (...)
Assim, pela primeira vez na história do mundo, as três modalidades essenciais
do poder — político-militar, econômico e religioso — encontram-se
personificadas em blocos supranacionais distintos, cada qual com seus planos de
dominação mundial e seus modos de ação peculiares”.
A
proposta subordina uma versão simplificada da tese de Samuel P. Huntington, em
O choque das civilizações (1996), ao perenialismo de René Guénon e Julius
Evola. Assim, Olavo cria seu próprio Cérbero globalista: um formidável monstro
de três cabeças, disposto a arrastar o mundo para as profundezas do Tártaro. No
bloco islâmico, ele projeta suas fantasias sobre a “casta sacerdotal”. No bloco
russo-chinês, vislumbra a prevalência da “casta guerreira”. No bloco ocidental,
enxerga o domínio da “casta mercantil”, com sua ideologia histórico-cósmica,
típica da iniciação maçônica nos pequenos mistérios, conforme se viu na análise
de O jardim das aflições . Esse ajuste da realidade do século XXI a uma visão
delirante do funcionamento das sociedades humanas apresenta inúmeros problemas.
De um
modo um tanto arbitrário, Olavo passa por cima das complexas e conflitivas
relações no interior dos três grandes projetos globais. No bloco ocidental,
ignora as rivalidades e diferentes perspectivas dos subgrupos anglo-saxão,
germânico, latino-mediterrâneo e eslavo, além de fazer pouco-caso das
especificidades dos países latino-americanos e do Extremo Oriente. Trata tudo
de forma monolítica e determinista, sem espaço para as perspectivas nacionais
ou para o debate no interior de cada sociedade específica. Ao indivíduo
autônomo, dotado de livre-arbítrio e consciência moral, resta apenas escolher
entre ser conduzido pelas forças do globalismo ou juntar-se ao projeto
perenialista de uma resistência antimoderna. É uma visão de mundo maniqueísta
em sua essência.
No
bloco islâmico, Olavo novamente comete o erro de ver uma unidade de propósitos
artificial. Numa penada, passa por cima das contradições de um conjunto
heterogêneo de 50 países. Ignora as enormes diferenças econômicas, geográficas,
históricas e culturais entre países árabes e não árabes, países da África
Subsaariana e do Levante, do Magrebe e do Golfo, da Ásia Central e do Sudeste
Asiático. Desconsidera também as rivalidades milenares entre sunitas e xiitas,
bem como o interesse específico de potências regionais, como Nigéria, Egito,
Arábia Saudita, Turquia, Irã, Paquistão e Indonésia. Além disso, coloca seitas
obscuras, grupos insurgentes e facções terroristas no mesmo plano que Estados
nacionais.
No
bloco eurasiano, Olavo passa a borracha nos acontecimentos posteriores à
perestroika e à queda do Muro de Berlim. Toma também como irrelevantes as
transformações ocorridas na China desde a abertura econômica promovida por Deng
Xiaoping. Ele não concebe que os últimos 40 anos possam ter propiciado o
ressurgimento das vocações imperiais da Rússia e da China, projetos milenares
de poder, para os quais as décadas vermelhas não passaram de um breve
interregno. Olavo não entende o cesaropapismo da Igreja Ortodoxa russa e sua
natural parceria com o regime de Vladimir Putin. Não aceita, igualmente, as evidências
de reconstrução da burocracia imperial chinesa, com sua tradicional visão
confuciana, por sobre a estrutura formal do partido comunista. Pelo contrário,
confunde o autoritarismo atávico desses antigos impérios com a persistência das
vertentes leninista e maoista do comunismo.
Olavo
teme a expansão do globalismo marxista, fechando os olhos para a inevitável
colisão do interesse nacional russo com o interesse nacional chinês. Isso sem
falar nas perspectivas europeia, ucraniana, cazaque, indiana, japonesa,
coreana, turca, iraniana, paquistanesa e dos países da Associação das Nações do
Sudeste Asiático (Asean, na sigla em inglês), que parecem haver sido deletadas
dos devaneios perenialistas sobre o projeto “eurasiano”. O xadrez geopolítico
euroasiático nunca foi simples. Qualquer projeto imperial sempre haverá de
criar resistências a sua implantação. Voltasse a ler Dom Casmurro , Olavo veria
que as ambições hegemônicas russas não foram concebidas pela KGB e que a
resistência a elas vem de longe. Eis um trecho do episódio em que Bentinho se
envolve em caloroso debate com o jovem Manduca sobre a Guerra da Crimeia:
“Fui
sempre um tanto moscovita nas minhas ideias. Defendi o direito da Rússia,
Manduca fez o mesmo com o dos aliados, e o terceiro domingo em que entrei na
loja tocamos outra vez no assunto. Então Manduca propôs que trocássemos a
argumentação por escrito, e na terça ou quarta-feira recebi duas folhas de
papel contendo a exposição e defesa do direito dos aliados, e da integridade da
Turquia, concluindo por esta frase profética: ‘Os russos não hão de entrar em
Constantinopla!’”.
Seria
Machado de Assis um agente do Kremlin, um intelocrata na folha de pagamentos do
Comintern, um adepto do marxismo cultural avant la lettre? Ou, quem sabe, um
propagandista maçom, um criptoteosofista, respondendo aos comandos de
superiores desconhecidos? Melhor estaremos se enxergarmos em Olavo um bisneto
de Quincas Borba, ou melhor, seu arquirrival. Ao vencedor do globalismo
humanitista, as batatas!
“O
projeto do governo mundial é originariamente comunista, e os grupos econômicos
ocidentais que se deixaram seduzir pela ideia, esperando tirar proveito dela,
sempre acabam financiando movimentos comunistas ao mesmo tempo que expandiam
globalmente seus próprios negócios. (...) Nos anos 70 e 80, a globalização
parecia favorecer os EUA, mas, na década seguinte, ela tomou o rumo bem claro
de uma articulação mundial antiamericana e, por tabela, anti-israelense. (...)
Lutando contra a mera possibilidade teórica de um domínio mundial americano, as
nações de cretinos tudo cedem ante uma ditadura global já praticamente
vitoriosa no presente”.
Olavo
parece sentir saudades do Império maçônico-americano, tão criticado em O jardim
das aflições , diante da perspectiva de um globalismo ainda mais agressivo. Mas
essa é apenas a camada superficial de sua proposta. Em um plano mais profundo,
ele mescla sua recém-adquirida subserviência ao nacionalismo ianque ao velho
fatalismo da “lei de regressão de castas”, formulada pelo mitógrafo perenialista
e ideólogo fascista Julius Evola. Vejamos, primeiramente, este trecho de Olavo:
“Se o
sistema medieval havia durado dez séculos, o absolutismo não durou mais de
três. Menos ainda durará o reinado da burguesia liberal. Um século de liberdade
econômica e política é suficiente para tornar alguns capitalistas tão
formidavelmente ricos que eles já não querem submeter-se às veleidades do
mercado que os enriqueceu. Querem controlá-lo e os instrumentos para isso são
três: o domínio do Estado, para a implantação das políticas estatistas
necessárias à eternização do oligopólio; o estímulo aos movimentos socialistas
e comunistas que invariavelmente favorecem o crescimento do poder estatal; e a
arregimentação de um exército de intelectuais que preparem a opinião pública
para dizer adeus às liberdades burguesas e entrar alegremente num mundo de repressão
onipresente e obsedante (...), apresentado como um paraíso adornado ao mesmo
tempo com a abundância do capitalismo e a ‘justiça social’ do comunismo”.
Comparemos
agora as ideias de Olavo com o que Julius Evola diz na edição revista de
Revolta contra o mundo moderno , publicada em 1969, na qual incorpora suas
reflexões sobre a Guerra Fria:
“Em
sua aliança com a União Soviética, concebida para derrubar os poderes do Eixo,
e ao perseverarem em seu radicalismo insensato, os poderes democráticos
repetiram o erro daqueles que pensam poder utilizar, com impunidade e para seus
próprios fins, as forças da subversão. Ao seguir essa lógica fatal, ignoraram o
fato de que, quando dois diferentes graus de subversão se encontram ou colidem,
aquele correspondente ao mais elevado grau irá eventualmente prevalecer. Em
realidade, podemos ver claramente agora (...) que a ‘cruzada democrática’ fora
concebida apenas como um estádio preparatório para os planos globais do
comunismo”.
Novamente,
tomemos nota do que Julius Evola diz em seu livro Homens entre ruínas (1953),
no qual reflete sobre o mundo que começava a emergir após a Segunda Guerra
Mundial:
“Consideremos
a lei de regressão de castas, que empreguei como ferramenta hermenêutica em
Revolta contra o mundo moderno, de modo a avaliar o significado efetivo da
história. De uma civilização comandada por líderes espirituais e pela realeza
sagrada, uma mudança ocorreu nas civilizações, sob a liderança das
aristocracias guerreiras; estas, por sua vez, foram eventualmente substituídas
pela civilização do Terceiro Estado. O último estágio é o da civilização
coletivista do Quarto Estado”.
A
semelhança com o pensamento político de Olavo de Carvalho é inegável e
perturbadora. Vejamos como Julius Evola conclui seu raciocínio:
“Esta
fase, o ciclo da civilização democrática e capitalista do Terceiro Estado, dará
lugar eventualmente à última fase, a fase coletivista, para a qual
inadvertidamente abriu caminho. É lógico, portanto, que o papel de força
condutora central da subversão global, neste último período, não seja mais
desempenhado pelo judaísmo ou pela maçonaria, e que a principal corrente se
volte contra esses dois grupos, como se fossem resíduos a serem liquidados de
uma vez por todas; afinal, isto já pode ser visto nos países em que regimes
marxistas controlados pelo Quarto Estado estão começando a se consolidar”.
Seguindo
os passos de Julius Evola, Olavo acredita que o globalismo ocidental — guiado
pela agenda iluminista da maçonaria e pelo cego interesse das elites financeiras,
de quem o“judeu errante” George Soros é o protótipo — tenderá, inexoravelmente,
a sucumbir diante da ferocidade revolucionária. No seu entender, os projetos de
governo mundial da elite ocidental e dos burocratas da ONU pavimentariam o
caminho para o advento do comunismo globalista. Ele supõe, por conseguinte, que
uma confrontação entre os dois blocos seja iminente, na disputa pela hegemonia
na cena internacional:
“A
Guerra Fria foi, em grande parte, puro fingimento: a elite ocidental concorria
com o comunismo sem nada fazer para destruí-lo. Ao contrário, ajudava-o
substancialmente. Putin não é um concorrente: é um inimigo de verdade, cheio de
rancor e sonhos de vingança. A verdadeira Guerra Fria só agora está começando,
e aliás já veio quente. A concorrência entre ‘capitalismo’ e ‘socialismo’ foi
um véu ideológico para uso das multidões, mas a luta entre Oriente e Ocidente é
para valer. Não por coincidência, o fiel da balança é o Oriente Médio, a meio
caminho entre os dois blocos”.
Olavo
retém pouquíssimos elementos da tese original de Huntington, preferindo tomar o
rumo das teorias conspiratórias e da “lei de regressão de castas”. Vejamos como
explicou sua fantasia perenialista, no debate que travou com Aleksandr Dugin,
em Os EUA e a Nova Ordem Mundial (2012):
“O
Consórcio é a organização de grandes capitalistas e banqueiros internacionais,
empenhados em instaurar uma ditadura mundial socialista. (...) O Consórcio
formou-se há mais de cem anos, por iniciativa dos Rothschild, uma família
multipolar, com ramificações na Inglaterra, na França e na Alemanha desde o
século XVIII pelo menos. O Consórcio reúne algumas centenas de famílias
bilionárias para a consecução de planos globais que assegurem a continuidade e
expansão do seu poder sobre todo o orbe terrestre. São planos de longuíssimo
prazo. (...) O Consórcio é uma organização dinástica, cuja continuidade de ação
é assegurada pela sucessão de pais a filhos, desde há muitas gerações”.
Nesse
vertiginoso delírio paranoide, muitos fios estão soltos. No esquema de Olavo
não existe lugar para as grandes fortunas que desaparecem em duas ou três
gerações, sem deixar vestígios; tampouco para as novas fortunas, que surgem a
reboque de revoluções tecnológicas e inovações empresariais. Tivesse lido
Joseph Schumpeter e outros economistas da escola austríaca, seria mais atento à
constante transformação da base produtiva e dos mecanismos financeiros das
economias capitalistas. Mas Olavo prefere o alarmismo psicótico das
simplificações conspiratórias:
“O
Consórcio atua por meio de uma multiplicidade de organizações subsidiárias
espalhadas pelo mundo todo, como por exemplo o Grupo Bilderberg ou o Council on
Foreign Relations, mas não tem ele próprio uma identidade jurídica. Isso é uma
condição essencial para a sua atuação no mundo, permitindo-lhes comandar
inumeráveis processos políticos, econômicos, culturais e militares sem poder
jamais ser responsabilizado diretamente pelos resultados. (...) Toda
bibliografia existente sobre o Consórcio atesta que o objetivo dele é a instauração
de uma ditadura socialista mundial”.
Uma
bibliografia que ninguém leva a sério, vale recordar. Olavo desdenha da
constante renovação das forças políticas nas democracias ocidentais, assim como
da notória subordinação das iniciativas multilaterais aos interesses dos
Estados nacionais. Outros fatores que deixa de lado são o peso da opinião
pública nos processos decisórios; o papel desempenhado pelas tradições
culturais e religiosas; a pluralidade dos meios de comunicação; e a reflexão no
interior de instituições acadêmicas e think tanks, numa rede cuja complexidade
supera em muito o alcance de entidades como o grupo Bilderberg e o Council on
Foreign Relations, editor da revista Foreign Affairs .
Igualmente
notória é a incapacidade de Olavo de demonstrar por que a elite capitalista
mundial deseja tanto conduzir-nos a uma ditadura socialista. Nesse esforço, ele
lança mão de argumentos que lembram as surradíssimas teorias sobre o
capitalismo monopolista de Estado. Segundo diversos autores, todos eles marxistas,
de Lênin a Chomsky, passando pelos inevitáveis Baran & Sweezy, os
capitalistas precisariam de Estados fortes e crescentemente autoritários para
assegurar seus lucros e sua tendência a formar oligopólios e monopólios. Tudo
isso já foi refutado, seja no plano acadêmico, seja pela própria realidade, nas
últimas décadas do século XX.
Olavo
sustenta, no entanto, que os ardilosos comunistas estariam controlando todo o
processo, por baixo das barbas dos capitalistas gananciosos e decadentes. No
Oriente, eles se valeriam de estratégias violentas de tomada e manutenção do
poder. No Ocidente, teriam optado por “métodos graduais e incruentos, usando o
próprio aparato jurídico-político da sociedade burguesa”:
“Nas
áreas onde fosse possível tomar o poder pela violência, a ditadura era a única
via admissível; nos demais países, era preciso promover a ascensão progressiva
do controle estatal da economia, sem fazer do Estado o proprietário legal dos
meios de produção, o que o tornaria sujeito a responsabilidades jurídicas e
cobranças que poderiam retardar e obstaculizar a própria caminhada rumo ao socialismo”.
Cegado
por sua fé perenialista e pela assídua leitura da mais baixa literatura
conspiratória, Olavo ignora o caráter imprevisível da mudança nas sociedades
democráticas abertas. No campo das ciências exatas, a teoria do caos nos ensina
que sistemas complexos e dinâmicos apresentam um fenômeno fundamental de
instabilidade que os torna, na prática, não previsíveis a longo prazo. Assim
ocorre também na vida das sociedades, para horror das ideologias de
extrema-esquerda e extrema-direita. Todo determinismo só funciona como análise
do passado, em geral com o auxílio de doses insalubres de revisionismo
histórico. Em termos de sua clarividência sobre o futuro, as hipóteses
mecanicistas costumam ser humilhadas pela criatividade dos homens e pelos caprichos
da Providência.
A
obscura visão de mundo de Olavo de Carvalho nos remete às invenções
conspiratórias de uma obra anônima, publicada na Rússia czarista do começo do
século XX e difundida no Ocidente durante o conturbado período do
entre-guerras: Os protocolos dos sábios do Sião (1903). No Brasil, o livro foi
lançado em 1936, com tradução do acadêmico e ideólogo integralista Gustavo
Barroso. Eis o que Julius Evola, guru de Olavo, nos ensina sobre os Protocolos
em sua obra Homens entre ruínas (1953):
“Há um
documento interessante conhecido como Os protocolos dos sábios do Sião (...)
Este escrito é parte de um grupo de textos que, de diversos modos (mais ou
menos fantásticos e, por vezes, até ficcionais), expressaram o sentimento de
que a desordem dos tempos recentes não é acidental, mas corresponde a um plano,
cujas fases e instrumentos fundamentais estão descritos com precisão nos
Protocolos”.
Como
se sabe, esse livro apócrifo, contendo protocolos supostamente subtraídos de
uma organização secreta judaico-maçônica, contribuiu imensamente para a eclosão
do surto antissemita do entre-guerras e sua mais trágica consequência, o
Holocausto. Evola resume o tal plano secreto:
“As
ideologias primárias responsáveis pela desordem moderna não surgiram
espontaneamente, mas foram evocadas e apoiadas por forças que sabiam de sua
falsidade e tinham em mente apenas o seu efeito destrutivo e desmoralizante.
Isto se aplicaria às ideias democráticas e liberais; o Terceiro Estado foi
propositadamente mobilizado para destruir a anterior sociedade feudal e
aristocrática, ao passo que, numa segunda fase, os trabalhadores foram
mobilizados para minar o domínio da burguesia. Outra ideia básica dos
Protocolos é que, apesar de tudo, as internacionais capitalista e proletária
estão de acordo, sendo duas colunas com ideias distintas, mas que atuam em
uníssono no plano tático para chegar à mesma estratégia”.
Compreende
o leitor que Olavo de Carvalho tem utilizado o mesmo raciocínio ao longo de
toda a sua obra? De um lado, temos a denúncia de uma suposta aliança entre PSDB
(capitalista) e PT (socialista), para repartir o poder e pavimentar o caminho
da revolução comunista no Brasil. De outro lado, temos o alerta sobre uma
imaginária atuação conjunta dos globalismos anglo-saxão (capitalista) e
russo-chinês (socialista), com vistas a implantar o comunismo planetário.
Vejamos, então, como Julius Evola conclui seu resumo do plano maligno:
“Entre
outras coisas, menciona-se o sucesso que esse front secreto obteve não apenas
com o marxismo, mas também com o darwinismo e o niilismo nietzschiano. Os
Protocolos por vezes encorajam a difusão do antissemitismo, enquanto em outros
casos fazem menção ao monopólio da imprensa e da mídia nos países democráticos,
assim como o poder de paralisar ou destruir os mais prestigiosos bancos. Este
poder concentra a riqueza desenraizada em poucas mãos, e por meio dela controla
povos, partidos e governos. Um dos principais objetivos é remover o apoio que
os valores espirituais e tradicionais conferem à personalidade humana, sabendo
que, quando isso é conseguido, não é difícil tornar o homem um instrumento
passivo das forças diretas e influências do front secreto”.
Mais
uma vez, encontramos aos borbotões elementos centrais na obra de Olavo de
Carvalho. Suas alterações na formulação original são meramente cosméticas. Em
lugar de uma conspiração judaico-maçônica, ele nos oferece uma conspiração
maçônico-gramsciana, adaptada ao clima político atual e às peculiaridades de
quem depende de um visto de permanência nos EUA. De resto, o próprio Julius
Evola descarta como um “óbvio exagero” o antissemitismo do texto original:
“A
despeito do fato de que muitos judeus estão entre os apóstolos das principais
ideologias vistas pelos Protocolos como instrumentos da subversão global (i.e.
liberalismo, socialismo, cientificismo e racionalismo), também é evidente que
essas ideias não teriam nunca surgido e triunfado sem antecedentes históricos,
como a Reforma, o Humanismo, o naturalismo e o individualismo da Renascença, e
a filosofia de Descartes”.
Exatamente
o que Olavo sustenta em O jardim das aflições . Para arrematar o raciocínio,
nada como recorrer aos textos do mago de Richmond. Vejamos esta pérola, saída
de O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota :
“As
notícias, na quase totalidade da mídia, já não são selecionadas por nenhum
critério de importância objetiva, mas pelo serviço que prestem à programação
mental das multidões, de modo a fazê-las aceitar passivamente mudanças
drásticas que em condições normais suscitariam explosões de ódio e revolta. A
supressão e a manipulação tornaram-se gerais e sistemáticas, a ponto de atentar
diariamente contra a dignidade da inteligência humana e de transformar os
mecanismos eleitorais da democracia num mero jogo de aparências”.
Obviamente,
é tudo uma grande conspiração. A mídia malvada está toda na mão dos
judeus-maçons, quer dizer, dos maçons-gramscianos. Ou talvez dos
metacapitalistas controlados pela KGB, alguma coisa assim. Roberto Marinho
muito possivelmente era agente secreto do Comintern. E Silvio Santos um
descendente oculto da maléfica família Rothschild. Ou talvez não, vá lá saber.
Vejamos outra esmeralda filosófica, na qual o mago de Richmond revela sua
capacidade de perscrutar os planos mais ocultos das principais organizações
secretas do planeta:
“Pelo
menos algumas organizações secretas devem ser realmente secretas, o que
significa que nem mesmo se parecem com organizações. Por exemplo, os acordos
discretos entre famílias arquipoderosas, os pactos informais entre
megaempresários, o juramento de obediência de um fiel islâmico a um sheikh que
ninguém de fora conhece, as seções mais interiores dos serviços de inteligência
(ignorados até pela massa de seus servidores oficiais), as esferas mais altas e
reservadas de algumas sociedades ocultistas, as conexões discretas entre
organizações criminosas e entidades legalmente constituídas: nada disso tem
sequer um nome, nada disso é propriamente uma ‘organização’ ou ‘entidade’, mas
um pouco de estudo basta para mostrar que aí estão as fontes invisíveis de muitas
decisões históricas, frequentemente catastróficas”.
A
conclusão é inevitável: foi Olavo quem escreveu os Protocolos dos sábios do
Sião . Mistério solucionado, após mais de um século de especulações sobre sua
autoria. Talvez alguns racionalistas ainda teimem em sustentar que um autor
nascido no Brasil, em 1947, não poderia ter escrito um texto publicado na
Rússia em 1903. A explicação é elementar: sua certidão de nascimento é mais
falsa que a de Barack Obama. Sendo Olavo um prodigioso astrólogo, alguém que
conhece a história do princípio ao fim, com toda certeza nasceu há dez mil anos
atrás.
Epílogo:
Olavo no poder
Em um
reino distante, há muitos e muitos anos, um valoroso filósofo, guardião da alta
cultura e último sobrevivente da tradição ameaçada, foi obrigado a refugiar-se
nas florestas do Império do norte, onde resistiu bravamente, durante 16 anos,
até que, enfim, liderou as forças da liberdade, salvando o reino encantado do
apocalipse zumbi e inaugurando uma nova era de paz e prosperidade. Só que não é
bem esse o enredo do Brasil atual.
Sim,
Olavo resistiu. Durante quatro mandatos, foi o mais ácido crítico de tudo que
ocorria no país e no mundo. Valendo-se da tribuna da internet, investiu contra
o mandarinato petista, contra a corrupção da Nova República, contra o governo
Obama, contra o globalismo de três cabeças e contra todos os sinais de crise da
modernidade. No processo, arrebanhou toda uma legião de seguidores. Não
obstante, três problemas básicos se colocam.
Em
primeiro lugar, a pregação de Olavo de Carvalho não liberta ninguém. Tampouco
conduz a uma saudável religiosidade. O que Olavo tem feito em seus cursos se
assemelha à terapia do grito primal. Ele se fantasia de filósofo-taumaturgo,
alega defender a tradição metafísica e começa a incutir em seus alunos a
repulsa por tudo que caracteriza a modernidade. Exagerando os problemas da
atualidade e estabelecendo nexos causais onde não existem, xinga com gosto e
sem qualquer pudor, demonizando seus adversários reais e imaginários. Com isso,
desperta em seus aprendizes os mesmos sentimentos que a ele mesmo atormentam,
as mesmas paixões mórbidas que o dominam há décadas.
Desses
mistérios dionisíacos on-line, saem as hordas de olavetes, qual mênades em
êxtase, brandindo seus tirsos e preconceitos, denunciando 32 conspirações ao
dia e entupindo de memes belicosos as redes sociais. Tudo isso em nome do
combate ao globalismo opressor. As aulas de Olavo são uma escola do ódio. E o
ódio escraviza, corroendo a alma de quem o cultiva. Diante dessa cólera
compulsiva, vêm à lembrança as palavras de Jesus Cristo:
“O
homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração. Mas o homem mau tira
coisas más do seu mau tesouro, pois sua boca fala do que seu coração está
cheio” (Lucas 6: 45).
A
incompatibilidade do credo de Olavo de Carvalho com a fé cristã é patente. Ele
se apresenta como o portador de um conhecimento esotérico superior, mas não
passa de um adepto particularmente grosseiro da mais abismal gnose ocultista.
Muitos de seus alunos o imitam nessa má-fé e saem por aí gritando: “ Deus vult!
”, apenas para legitimar suas pautas políticas, enquanto se esquecem de ir à
missa, frequentar os sacramentos e seguir os mais básicos preceitos da ética
cristã. Igualmente triste é ver olavetes atacando com ferocidade a hierarquia
da Igreja, sem prestar a devida atenção aos mandamentos do respeito filial e do
amor ao próximo. Acaso algum discípulo de Olavo já meditou sobre a parábola do
fariseu e do publicano, já pensou em retirar a trave que está diante de seus próprios
olhos antes de acusar a farpa no olho do irmão? Nunca.
O
segundo problema, igualmente grave, está no fato de que Olavo investe contra
tudo e contra todos, indiscriminadamente. Ele vê conspirações globalistas nas
medidas antitabagistas, nas campanhas de vacinação, na proteção do meio
ambiente, na defesa dos direitos das minorias, na valorização da mulher, no
acolhimento aos migrantes e no combate aos maus-tratos de animais, entre outros
temas.
“Para
impor a obrigatoriedade da vacinação, o governo americano e a OMS promoveram
uma campanha alarmista, com forte apoio de jornais, TVs, universidades,
instituições científicas e artistas de Hollywood, exagerando brutalmente os
riscos da gripe suína. Agora, que as vacinas estão matando muito mais gente do
que a própria gripe, a mídia e as autoridades se calam ominosamente, mostrando
que não estão interessadas na saúde do público, mas em proteger os autores de
uma fraude genocida.”
Mais
um para a lista dos marxistas culturais, avant la lettre: o médico e sanitarista
Oswaldo Cruz, agora suspeito de haver integrado a folha de pagamentos dos avós
de George Soros. Para Olavo de Carvalho, é tudo ou nada. Não há espaço para o
diálogo entre diferentes grupos sociais ou para o discernimento de cada
indivíduo. Alguém que seja contra a legalização do aborto, mas queira defender
a Mata Atlântica e os oceanos, só pode ser um imbecil; alguém que coloque seus
filhos no ensino religioso, mas se recuse a abraçar a causa armamentista, é
tachado de traidor.
“Nos
anos 1950, grupos globalistas bilionários — os metacapitalistas, como os chamo,
(...) tomaram a iniciativa de contratar algumas dezenas de intelectuais de
primeira ordem para que escolhessem a vítima das vítimas. (...) Depois de
conjeturar várias hipóteses, os estudiosos chegaram à conclusão de que ninguém
se recusaria a lutar em favor da Terra, da mãe natureza. Foi a partir de então
que os subsídios começaram a jorrar para os bolsos dos ecologistas. (...) O
salvacionismo planetário é o maior engodo científico de todos os tempos.”
Essa
fúria paranoide com frequência se volta contra os intelectuais, jornalistas e
ativistas de inclinação conservadora ou liberal. Como típico elemento de
extrema-direita, Olavo é incapaz de respeitar as regras do convívio respeitoso.
Quem não concorda com seus métodos, leva chumbo. Que o digam Marco Antônio
Villa, Rodrigo Constantino e Reinaldo Azevedo. Olavo envenena o campo
conservador, além de alienar todo o centro. Sua verve doentia tem um vitriol
corrosivo, que apequena o espírito:
Igualmente
sintomática é a frequência com que Olavo investe contra o vice-presidente da
República. A seus olhos, o general Mourão encarna o laicismo iluminista da
Maçonaria e o positivismo desenvolvimentista do Exército Brasileiro. O mago de
Richmond gostaria de varrer do mapa essas duas tradições, que obstaculizam a
plena implementação de seus devaneios perenialistas no Brasil. Mourão é uma
pedra no sapato dos entusiastas tupiniquins do “fascismo cultural”:
O
terceiro e maior problema está na chegada de Olavo de Carvalho ao poder. Um
pensador com ideias extravagantes e linguajar grosseiro é incômodo, porém esse
tipo de esquisitice faz parte de um ambiente plural, com ampla liberdade de
expressão. No embate propriamente intelectual, quem não concorda com suas
postulações pode simplesmente refutá-lo. Com um pouco de paciência, qualquer
estudante universitário encontrará as fragilidades de sua obra.
Bem
mais difícil será enfrentar Olavo na sua qualidade de ideólogo do novo governo.
Não resta dúvida de que ele foi uma das figuras centrais da vitória eleitoral
de outubro de 2018. Sua crítica ao establishment da Nova República e suas
legiões de seguidores nas redes sociais ajudaram a pavimentar o caminho para a
vitória da coalizão de centro-direita que elegeu Jair Bolsonaro. No combate à
candidatura petista, seus exageros monumentais e o jogo sujo de sua tropa de
choque foram convenientes pesticidas. O problema está agora em fazer do veneno
o prato principal, trazendo para dentro do governo uma turma que só se sente em
casa no campo de batalhas. E, como ensina o mestre:
“Para
o fanático, só há um objetivo autêntico: as metas do seu partido ou seita”.
Olavo
de Carvalho é incapaz de conviver em um ambiente democrático. Derrotada a
esquerda, ele irá, inexoravelmente, partir para o embate com o centro liberal e
a direita moderada. Buscará radicalizar a agenda do governo, atacando os
setores que não se curvem a suas propostas; fomentará um confronto com o
Legislativo, dificultando a aprovação da pauta reformista; e jogará a fúria de
seus seguidores contra os segmentos legalistas do Judiciário. Ao final, dirá
que a repartição dos Poderes é um instrumento do establishment. Como na fábula
O sapo e o escorpião , aplicará seu ferrão venenoso sobre o anfíbio benevolente
que acreditou que poderia ajudá-lo a atravessar o rio:
“Esta
é a minha natureza, meu amigo sapo. E eu não posso mudá-la”.
Já de
início, Olavo abocanhou duas posições estratégicas no novo governo: o Itamaraty
e o MEC. A comparação é inevitável com o ocorrido durante o Estado Novo. Ao
tornar-se ditador, Getulio Vargas teve o bom senso de colocar no MEC o
ilustrado Gustavo Capanema e, no Itamaraty, o liberal Osvaldo Aranha. Eram
homens cosmopolitas e honrados, que sabiam dialogar com a sociedade brasileira
e com o mundo. Capanema protegeu os “marxistas culturais” da época e gestou no
MEC alguns dos principais elementos que floresceriam no grande auge cultural
brasileiro, de 1945 a 1975. Aranha, por sua vez, construiu no Itamaraty uma
fortaleza contra o ideário integralista, logrando inserir o Brasil na aliança
“globalista” de combate aos poderes do Eixo.
O
atual governo, constrangido por sua dívida eleitoral com Olavo de Carvalho,
decidiu fazer o contrário disso. Colocou Plínio Salgado no MEC e Gustavo
Barroso no Itamaraty. As consequências vieram a galope. Na última
segunda-feira, após incontáveis crises no MEC, o governo demitiu o titular da
pasta, apenas para colocar em seu lugar outro Plínio-olavista, ainda mais
salgado. Não vai dar certo. Não há como dar certo. O vitriol do mago de
Richmond destruirá tudo aquilo em que tocar:
“As
universidades tornaram-se instrumentos do crime organizado, empenhados em tapar
bocas, paralisar consciências, destruir talentos, perverter vocações, secar
todas as fontes de uma restauração possível e, é claro, gastar dinheiro
público. Custam caro e só servem para o mal”.
Não há
diálogo possível com um pensamento assim. Com um dos maiores orçamentos da
República nas mãos da brigada demolidora olavista, o desastre será inevitável.
E a guerra ideológica que se anuncia causará imensos danos ao país.
“O
profeta do engano também se engana: ele imagina trazer ao mundo a sabedoria,
quando traz o obscurecimento e a confusão. Imagina trazer uma nova profecia,
quando traz o cumprimento de uma velha maldição.”
A
catástrofe deverá igualmente rondar a política externa do novo governo. Foi
colocado no Itamaraty um jovem discípulo de Olavo de Carvalho, sem experiência
de chefia de missão no exterior, empenhado em subverter a hierarquia da
carreira diplomática e fazer terra arrasada das tradições diplomáticas
brasileiras. Seu artigo “Trump e o Ocidente” é uma peça alarmante. Nesse texto,
Ernesto Araújo projeta sobre o atual ocupante da Casa Branca o pensamento do
estrategista político Steve Bannon, um dos expoentes da chamada “alt-right”, a
ultradireita americana. Como se sabe, Bannon foi afastado da administração
Trump pouco após o discurso de Varsóvia, que escreveu para o presidente. Araújo
faz de conta que ele continua a dar as cartas. O motivo é óbvio: Bannon, tal
como Olavo, é ligado à escola perenialista de René Guénon e Julius Evola.
“Para
tentar entender Trump em Varsóvia convém ler, além de Spengler e Onfray, também
o mestre tradicionalista René Guénon (importante influência de Steve Bannon,
ex-estrategista-chefe da Casa Branca e ainda central no movimento que levou
Trump à presidência). Guénon, escrevendo nos anos 1920, acredita que o Ocidente
moderno havia-se (sic) distanciado completamente da ‘tradição’ (o núcleo
espiritual de todas as civilizações e que se manifesta diferentemente, mas de
forma coerente em cada uma delas), tornando-se um poço de materialismo e
ignorância, cujo único princípio é a negação de qualquer espiritualidade. (...)
É impossível não ouvir ecos guénonianos no Trump de Varsóvia.”
O
artigo do atual chanceler é pródigo em mistificações gnósticas, revisionismo
histórico e manipulações da verdade. Ao criticar as tendências materialistas
que estariam a destruir o Ocidente, Araújo vê no discurso de Varsóvia um apelo
à formação de uma coalizão de nacionalismos pró-Ocidente. Esse Eixo
antiglobalista teria como missão defender a tradição ocidental, supostamente
iniciada no confronto das cidades gregas contra o Império Persa. O diplomata
cita Ésquilo, mas pensa com a cabeça de Frank Miller e Zack Snyder, em sua
releitura anacrônica da saga de Leônidas e os 300 de Esparta. Após tecer loas
ao nacionalismo de Trump, ele se queixa de que a esquerda chama todo mundo de
“fascista”:
“Essas
expressões de Trump parecerão a muitos, no mínimo, manifestações de mau gosto,
a outros parecerão laivos de fascismo. Sim, vivemos em um mundo onde falar dos
heróis, dos ancestrais, da alma e da nação, da família e de Deus é, para grande
parte da ideologia dominante, uma indicação de comportamento fascista. (...) Os
capangas de Stálin, os de Mao Tsé-tung e os de Pol Pot também chamavam tudo de
fascista: ter um livro era fascista, amar os pais ou os filhos era fascista,
venerar os símbolos tradicionais era fascista”.
Essas
generalizações apressadas da esquerda, de fato, ocorrem. E costumam ser
contraproducentes. Quando todos são fascistas, os gritos de alerta perdem
credibilidade. Desse modo, como na fábula de “O pastor mentiroso”, um dia o
lobo vem e pega a cidade de surpresa. Tal é o caso de Ernesto Araújo. Em resposta
a possíveis acusações de que sua visão do nacionalismo seria ‘fascista’, ele
nos oferece um menu de pensadores em que pululam os simpatizantes do
nazifascismo.
Seus
elogios ao pensamento de Oswald Spengler, por exemplo, contam apenas uma parte
da verdade. O autor dos dois volumes de O declínio do Ocidente (1918 e 1922)
foi um dos principais ideólogos do fascismo. Desprezava a democracia liberal,
assim como a influência da cultura “magiana” (originária do Levante), que teria
enfraquecido a alma “faustiana” da cultura ocidental. Como solução para o
declínio dos países europeus, propunha o “Cesarismo”: governos personalistas e
autoritários, cujo líder servisse como catalisador da tradição, injetando
renovado vigor na cultura. Spengler foi um admirador de Mussolini. Suas ideias
serviram também de esteio ao nazismo, embora ele mesmo se tenha dissociado, em
1934, do antissemitismo. Eis o quadro enganoso que Araújo nos apresenta:
“O
pensamento de Spengler e a corrente de pessimismo ocidentalista que ele inaugura,
há que dizê-lo, nada tem de racista como tantas vezes se apregoa. Spengler não
despreza ou odeia as outras civilizações ou os povos não ocidentais. Apenas
sustenta que a vida de cada ser humano só faz sentido dentro de uma determinada
civilização, de uma comunidade cultural ou — poderíamos acrescentar aqui —
dentro de uma nação”.
O
logro continua nas referências a Heidegger e Jung, que reforçam os aspectos
mistificadores e supostamente nacionalistas do pensamento desses intelectuais,
cujo inegável brilho estará para sempre maculado por sua colaboração com o
nazismo. Porém, a prova definitiva das más intenções do diplomata, o verdadeiro
batom nas suas ceroulas de renda, está nesta citação:
“O
patriotismo pertence, portanto, à essência do Ocidente. Não foi pensado pelos
filósofos, foi sentido pelos homens diante do perigo da morte — e não
esqueçamos que, para os que conhecem a ‘metafísica da guerra’ conforme a
expressão de Julius Evola, o grito que nasce no peito de um homem na hora da
batalha é sagrado, não provém dele, mas lhe é inspirado pelo deus (sic).”
Este
sim é um “perigoso segredo de família, cuidadosamente guardado”. Julius Evola:
mitógrafo e ocultista italiano, ideólogo do regime de Mussolini; homem que
colaborou com a SS de Hitler; editor da revista Il Regime Fascista ; autor de
Revolta contra o mundo moderno (1934), onde propõe a “teoria da regressão de
castas”; de O mistério do Graal (1937), em que substitui o cálice da última
ceia pela “pedra luciferiana”; de Homens entre ruínas , onde faz a crítica do
nazifascismo, para lançar o neofascismo; e de Metafísica do sexo (1958), obra
na qual prega a subordinação da mulher e o retorno à poligamia. A coletânea de
artigos Metafísica da guerra (1996), a que Araújo faz referência, reúne textos
escritos entre 1935 e 1950, todos eles de elogio ao fascismo e à vocação
guerreira da raça ariana. Nesse volume, pode-se ler:
“O
mais alto instrumento para o despertar interior da raça é o combate, e a guerra
é sua mais alta expressão. Que o pacifismo e o humanitarismo são fenômenos
ligados de perto ao internacionalismo, à democracia, ao cosmopolitanismo e ao
liberalismo, isso é perfeitamente lógico — o mesmo instinto antirracial
presente em alguns é refletido e confirmado nos outros (...) A indignação do
judeu humanitário [Emil] Ludwig, que se tornou o belicoso propagador da ‘nova
Santa Aliança’ contra o Fascismo, é impotente contra o que é verdadeiro em
considerações deste tipo. Se a próxima guerra mundial for uma ‘guerra total’
ela também significará um ‘teste total’ das forças raciais sobreviventes do
mundo moderno. Sem dúvida, algumas raças irão colapsar, enquanto outras irão
despertar e levantar-se. Catástrofes indizíveis poderão inclusive ser o preço —
elevado, porém necessário — de cumes heroicos e de novas liberações de forças
primordiais entorpecidas por séculos cinzentos. Esta é condição fatal para a
criação de qualquer mundo novo, e é esse mundo novo que buscamos para o
futuro”.
Eis a
metapolítica do perenialismo: uma metafísica do racismo e do genocídio, uma
incontida vontade de poder, travestida de busca espiritual e romantismo
heroico. Esse é o lixo intelectual com que Ernesto Araújo espera salvar o
Ocidente. Sua recente afirmação de que o nazismo seria um “movimento de
esquerda” não é fruto de eventual ignorância histórica e sociológica, mas nasce
da necessidade imperiosa que tem o atual chanceler brasileiro de ocultar sua
própria filiação ao “fascismo cultural” perenialista. Deve-se reconhecer, no
entanto, que os artigos do ambicioso diplomata meramente reproduzem o
pensamento de Olavo de Carvalho. Não há nada de original em “Trump e o
Ocidente”, assim como não há nada de autêntico em seus textos mais recentes.
Araújo escreve o que lhe foi ensinado. Após evocar o “Deus de Trump”, sai-se
com esta pérola sobre a política externa brasileira:
“Assim
também, ao lado de uma política externa, o Brasil necessita de uma metapolítica
externa, para que possamos situar-nos e atuar naquele plano cultural-espiritual
em que, muito mais do que no plano do comércio ou da estratégia
diplomático-militar, estão-se definindo os destinos do mundo. Destinos que
precisaríamos estudar, não só do ponto de vista da geopolítica, mas também de
uma teopolítica”.
A
teopolítica de Araújo não passa de uma bel-política, uma visão delirante das
relações internacionais, nascida de sua devoção a um Baal das profundezas. Essa
psicose obscurantista vem diretamente de Olavo de Carvalho. Ao que parece, os
escolhidos para ingressar no círculo mais íntimo do mago de Richmond passam por
uma lavagem cerebral, na qual são iniciados nos mistérios perenialistas de René
Guénon e Julius Evola. Em seguida, põem-se a repetir mecanicamente os
ensinamentos do mestre e a promover o culto de sua personalidade. É um
comportamento típico de seitas ocultistas. Com o tempo, a verdade virá à tona:
“Pois
nada há de oculto que não venha a ser manifesto, e nada em segredo que não
venha à luz do dia” (Marcos 4: 22).
Elevado
ao posto de ideólogo do novo governo, Olavo de Carvalho talvez hoje se imagine
um misto do que o profeta Samuel representou para o Reino de Israel; e
Aristóteles, para a expansão da Macedônia. A realidade nos indica que estamos
diante de algo bem mais sombrio. Olavo anseia por um governo autoritário, de
cunho personalista, que imprima marcha à ré na modernidade. Quer atrelar o
interesse nacional brasileiro a um projeto temerário de Eixo antiglobalista e
comandar uma Blitzkrieg anticomunista na América Latina, sem qualquer apoio em
cálculos estratégicos minimamente realistas. Quer um regime de força, em que
ele e seus discípulos operem como “casta sacerdotal” e exerçam tutela sobre a
“casta guerreira” policial-militar. Não quer, note-se bem, um retorno ao
nazifascismo dos anos 30, com seu apelo às massas e sua política econômica
estatizante, que considera traços “coletivistas”. Mas quer um renovado
despotismo, pautado pelas fantasias esotéricas da escola perenialista. O nome
desse pesadelo é neofascismo. Deus nos livre da gnose obscura de Olavo, o
demolidor.
Artigo originalmente publicado na Revista Época