Começo do ano veio parar em minhas mãos o livro Dom Quixote. Na verdade era uma adaptação feita por Walcyr Carrasco. Fazendo jus a seu sobrenome, destruiu a obra de Miguel de Cervantes. Tudo que a história original tem de reflexão, a adaptação subtrai. Carrasco também é responsável por escrever supostos livros infantis cheio de moral cívica nas linhas e entrelinhas – na literatura isso é conhecido como livros paradidáticos. Não bastasse, Carrasco há anos vem produzindo drogas, mais conhecidas como novelas. Segue abaixo uma crítica maravilhosa, não sobre Carrasco, mas sobre a genial obra de Cervantes.
VOCÊ JÁ LEU DOM QUIXOTE?
Miguel de Cervantes |
Embora nem todas as pessoas saibam quem foi Miguel de Cervantes, decerto quem é leitor contumaz reconhece o nome de Dom Quixote e o associa imediatamente ao amigo Sancho Pança. Com pouco mais logo se lembra que o principal romance de Cervantes, “O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha”, é considerado o melhor romance de todos os tempos.
Entretanto, se perguntarmos a esse leitor se leu esse romance, talvez ele diga que o leu na escola, sem atentar que teve em mãos apenas uma “adaptação de clássicos para jovens” e não o romance “verdadeiro”, com seus dois volumes e cerca de mil páginas. Uma das principais maneiras de estimular a ignorância reside nesse crime de lesa-literatura chamado “adaptação para jovens”, pelo qual se convencem as pessoas de que leram o livro que nunca leram.
A segunda maneira reside na própria inércia dos leitores modernos, que adiamos a leitura dos clássicos para quando tivermos tempo – isto é, para o dia de São Nunca. A leitura de “Dom Quixote”, porém, não pode ser adiada. Ela representa a diferença entre a sabedoria e a arrogância.
Exagero?
Bem, talvez eu esteja sendo um pouco quixotesco, mas é quixotescamente que nos aproximamos da verdade humana. Como a verdade humana é sempre trágica e ridícula ao mesmo tempo, apenas aquele que consegue enxergar essa combinação paradoxal reconhece o seu espelho. Para consegui-lo, a leitura das aventuras desse personagem magro e envelhecido, que é ao mesmo tempo um louco, um bobo, um filósofo e um santo, torna-se imperiosa.
Muito antes de qualquer “pós-modernismo”, Cervantes já borrava a distinção entre autor e narrador, multiplicando vozes narrativas e possibilidades de autoria. Os diversos narradores de “Dom Quixote” ainda se mostram inseguros quanto ao nome “verdadeiro” do próprio protagonista da história: seria Quijada, Quesada ou Quijana? Se o leitor não sabe muito bem quem escreveu, quem narra e quem atua, como ele fica? No íntimo, talvez desenvolva uma dúvida séria sobre a sua própria identidade.
Foram dúvidas como estas que moveram Dom Quixote: ele nem sabia como se chamava mas sabia como queria se chamar. Nesse romance, tudo o que parece é e não é ao mesmo tempo. O personagem parece louco, posando de herói com uma bacia na cabeça, mas é também um sábio. A loucura cumpre um papel metafórico, representando compreensão e transformação profundas.
O personagem se inventa como cavaleiro andante na época em que já não existem mais cavaleiros andantes. No entanto, a invenção se dá entre muitos engodos. Os engodos divertem nos dois sentidos: fazem rir e enganam, como quando os amigos e parentes do fidalgo perturbado se unem para queimar os romances da sua biblioteca, considerando-os responsáveis pela loucura do dono. A ideia já não era original, se naquele mesmo século a Santa Inquisição adorava queimar tanto carne de herege quanto página de livro. Mas a originalidade de Cervantes residia em defender a queima de livros, principalmente romances, onde? Dentro de um romance. A ironia seria óbvia hoje, mas na época os inquisidores não a perceberam, para sorte do autor.
O cavaleiro justifica todas as derrotas frente à realidade atribuindo-as a feitiços malvados dos encantadores. Os encantadores representam bem os poetas, cuja função é a de garantir a coexistência e a compatibilidade dos diversos universos de significado. Os encantadores existem para proteger os paradoxos e os enigmas. O mundo precisa se ver como um jogo, o jogo dos infinitos erros. O tema do fidalgo doido dá a Cervantes a possibilidade de mostrar o mundo através de uma neutralidade original porque múltipla, através de uma combinação de perspectivas que interroga, sim, mas não julga.
A história de Dom Quixote pode ser lida como o supra-sumo da filosofia porque: ela nos faz pensar, rindo; ela nos faz rir, pensando; ela nos conta que é preciso saber, mas não saber tudo. Em outras palavras, é preciso proteger o enigma, em especial quando se trata do enigma representado pelo outro. A aceitação da necessidade de não resolver ou de não desfazer o enigma é reforçada pelo próprio Quixote, quando critica o curto entendimento do seu roliço escudeiro:
“Pois é possível que, andando comigo há tanto tempo, ainda não tenhas reconhecido que todas as coisas dos cavaleiros andantes parecem quimeras, tolices e desatinos, e são ao contrário realidades? E donde vem este desconcerto? Vem de andar sempre entre nós outros uma caterva de encantadores, que todas as nossas coisas invertem, e as transformam, segundo o seu gosto e a vontade que têm de nos favorecer ou destruir-nos. Ora aí está como isso, que a ti parece bacia de barbeiro, é para mim elmo de Mambrino, e a outros se figurará outra coisa.”
A mesma coisa é: o elmo de Mambrino e uma bacia de barbeiro. A mesma coisa pode ser outra. A loucura de Dom Quixote não é patética, mas sim corajosa: ele leva a sério suas verdades e abdica de julgar a verdade dos demais.
A fantasia quixotesca não nos afasta do verdadeiro conhecimento, mas todo o contrário: ela é precisamente a via para esse conhecimento.
Escrito por: Gustavo Bernardo.
Escrito por: Gustavo Bernardo.
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