segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Música eletroacústica: do erudito ao popular



Mesclando sons naturais e sons sintetizados, a música eletrônica ganhou um grande impulso no final dos anos 1940. A partir daí, músicos e pesquisadores da área de composição musical vêm desenvolvendo trabalhos cada vez mais sofisticados e o resultado prático desses estudos e experimentações atingem públicos cada vez mais amplos.

“O que a música eletroacústica tem de interessante é que foi ela quem chamou atenção para uma série de problemas relacionados com sua existência para além dos limites conceituais da nota, da notação, do anotável e até mesmo do som”. Rodolfo Caesar, professor da Escola de Música da UFRJ, onde coordena o Laboratório de Música e Tecnologia (LaMuT), comenta que quanto mais se vem conhecendo as especificidades da escuta acusmática, ou seja, da escuta cuja fonte causadora do som – no sentido acústico – está oculta pela membrana dos alto-falantes, menos a música parece estar se endereçando a ela. A música eletroacústica (ME) pode ser considerada como um grande quebra-cabeças em que cada peça, cada dado da acústica, provém de áreas diversas como a matemática, a mecânica, a física, a antropologia, entre outras.

Antes de chegar nesse conhecimento multidisciplinar, a ME iniciou em 1948 com a musique concrète (música concreta), representada pelo seu inventor Pierre Schaeffer, nas primeiras tentativas de sistematizar a captação dos sons e o tratamento, ou processamento, de seus espectros. Em seguida, no ano de 1949, surgiu na Alemanha a elektronische musik (música eletrônica), instaurando princípios composicionais mais baseados em métodos de síntese sonora na geração eletrônica de sons. Segundo Flo Menezes, chefe do Departamento de Música da Unesp e formado pela escola alemã, a elektronische musik é diferente do que entendemos hoje por esse termo na música pop. O que ocorreu é que tanto a música concreta quanto a música eletrônica passaram a usar sons gravados (concretos) e sons sintéticos, instituindo o que chamamos de "música eletroacústica ".

Na concepção de Menezes, até o advento da ME, o compositor lidava exclusivamente com os sons que lhe eram proporcionados pelos instrumentos musicais. “A partir da música eletroacústica e das manipulações em estúdio, o compositor passa a interferir nos espectros sonoros, quer seja gravando sons pré-existentes e processando-os, quer seja gerando-os do zero pelos métodos de síntese sonora”, diz ele. Fundador em 1994 do Studio PANaroma e idealizador do Puts (PANaroma/Unesp: Teatro Sonoro), fundado em 2002 com apoio da Fundação Estadual de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Menezes instituiu no Brasil a primeira orquestra eletroacústica, por meio de um projeto que conta com inúmeros alto-falantes para a difusão eletroacústica –reprodução e projeção sonora em concerto. Recentemente, realizou em Bruxelas um importante concerto, a partir de obras do Studio PANaroma, com um total de 42 alto-falantes espalhados pelo teatro Espace Senghor.

Outro exemplo da maneira como se utiliza a escuta sonora no objeto de pesquisa desse gênero musical é a obra “Círculos ceifados”, do compositor Rodolfo Caesar. A criação de sons acusmáticos envolve critérios de massa, textura, luminosidade, acumulação, aceleração, enfim, uma escuta que sugere as mais variadas causalidades à imaginação do compositor e consequentemente do ouvinte. A experimentação dos sons em “Círculos ceifados” são feitas de uma forma que não conseguimos distinguir qual é o som “natural”, gravado, e o som “artificial”, sintetizado. Caesar usa essas duas técnicas de forma complementar, controlando inflexões em altura, acelerações e projeções espaciais dos sons de bichos e outros sons que compõem o ambiente. “Gravamos sapos à beira de um lago com pássaros, motocicleta, etc. Se transpusermos essa amostra de som de sapos uma oitava acima, todo o ambiente acústico virá junto, alterando drasticamente a percepção deles e do entorno”, explica. O registro do som e posterior ampliação dele, como quem dá um close numa imagem, torna audível sons que estavam fora da nossa capacidade auditiva – um micromundo do som até então não alcançado.

Os sons dos bichos e a observação da natureza mostraram que alguns personagens encontram similaridades musicais como as famílias dos grilos e as dos sapos. Por outro lado, a análise dos sons provenientes dos mosquitos, das moscas, das abelhas, aponta para a semelhança entre zunidos e sons de violinos ou outros instrumentos de cordas. No momento da escuta, portanto, sons gravados encontram semelhanças em sons sintéticos, assim como alguns sons sintéticos tentam parecer naturais, realistas, enquanto outros nem tanto. Na composição eletroacústica, muitas vezes o que se apresenta como material ocorre nessa mescla de sua origem em síntese e por gravação.

Antes do surgimento do PC e novas possibilidades do mundo digital, o suporte de registro sonoro na ME era basicamente a fita magnética. Micro-montagens eram feitas cortando e emendando pedaços de fita num processo chamado de boucle, também conhecido como loop. Diferente de uma gravação em disco, o boucle possibilitou a confecção de sons contínuos e ampliou os recursos do sulco fechado no disco – que permitia a repetição de um trecho, tornando-se uma das técnicas favoritas da ME nos anos sessenta e setenta. Caesar fala que hoje a emenda é digital, mas o avanço musical é praticamente o mesmo.

Outra evolução significativa da ME é marcada pela invenção do sampler (equipamento que armazena sons de arquivos equivalentes a um CD). Popularizado no meio musical a partir do início dos anos 1980, o sampler grava o som do instrumento musical e dá chance ao músico de editar o som nota por nota. Na concepção de Matthew Lovett, Professor da Universidade de Wales, Newport, e pesquisador do Future Music Lab, na Inglaterra, o uso da tecnologia sampling foi iniciada pelo músico Pierre Schaeffer e, em termos do desenvolvimento da ME, os samplers foram uma das tecnologias chaves que permitiram aos compositores irem além em suas composições, usando instrumentos de música convencional como fonte de som.

De acordo com Lovett, a ME (em oposição à música acusmática, a qual permite escutar sons movidos de seu contexto original) tem sua base na construção de sons sintéticos, por exemplo, sons criados pelo uso de osciladores. Contudo, ficaram cada vez menores as distinções entre essas duas formas: gravação e síntese. Lovett também considera que é realmente interessante, nos desenvolvimentos atuais de composição na música eletrônica, a junção de abordagens no trabalho do som. “O fato de haver atualmente uma troca entre os músicos que trabalham com síntese pura de som, gravação de campo, ao mesmo tempo em que exploram as possibilidades proporcionadas pelas ferramentas digitais e interativas como forma de controlar e desenvolver novos sons, tem criado um campo cada vez mais diverso de práticas”, disse.

A atual proliferação de novas ferramentas também é um fator relevante uma vez que, finalmente, começou a mover os músicos além do paradigma de tempo linear em termos de construção de um trabalho baseado no som. A forma convencional de arranjar a música eletrônica e digital dentro de um tempo linear (tanto na fita magnética como nos sequenciadores digitais) está finalmente sendo questionada em uma escala significativa. “Cada vez mais os músicos estão criando um trabalho não linear, que não é projetado para uma repetição exata, mas ao invés disso, que explore a geração de processos interativos, algorítmicos e aleatórios para gerar seu material”, conclui Lovett.

Popularização da ME

Na segunda metade da década de 1970, a repetição contínua do mesmo som caracterizou o gênero dance music (música de disco), responsável por construir uma continuidade sonora em práticas habituais de misturar, de maneira sincrônica, duas gravações. Pedro Peixoto Ferreira, pesquisador do CTeMe (Conhecimento, Tecnologia e Mercado) da Unicamp e professor de sociologia da Universidade Federal de Alfenas (Unifal), afirma que esse processo de garantir às músicas uma precisão de regular o compasso nas composições musicais, tornando habitual a sobreposição, sincronização e execução ininterrupta de músicas diferentes, deveu-se à disseminação do uso dos sintetizadores de ritmo – ou “baterias eletrônicas”. Além disso, a acoplagem de duas máquinas, o sintetizador de ritmos e o toca-discos, abriu um novo campo de experimentações com relação ao som e ao movimento.

A noção de movimento pode ser ainda mais significativa ao entrar em jogo um novo elemento na música eletrônica: o disc jockey (DJ). A cena da música eletrônica de pista (MEP) pode ser analisada como um processo cíclico, onde o DJ é um canal de ligação entre a música tocada e o movimento ininterrupto proveniente da pista de dança. Podemos dizer que desde o momento em que o DJ organiza o som em seu estúdio, ele já está de acordo com os efeitos virtuais da pista de dança. A performance musical, entretanto, só passa a ser construída em tempo real, conforme responde o público. Até mesmo a presença da repetição que condiciona o ritmo sonoro mais pulsante, causa uma sensação física no corpo como um “transe”, isto é, a ideia do corpo como uma extensão da música. O efeito mecânico que o ritmo da música ocasiona no movimento da dança coletiva é capaz de fazer a pessoa se mover como uma marionete cujos cordões se conectam com cada compasso da música, cada batida e frequência sonora. Nas palavras de Ferreira, a MEP é uma “experiência da convergência maquínica do som e do movimento”.

Em termos acústicos, a experiência sonoro-motora da MEP caminha por tortuosos trajetos dos movimentos da pista de dança e o som que sai dos alto-falantes. O próprio uso do disco vinil pelos DJs implica num fenômeno sonoro diferente da mídia digital. A vibração da agulha do toca-discos (energia mecânica) provocada pelos sulcos do disco sofre interferências da vibração de todo o ambiente onde o som que ela mesma produziu é reverberado (energia mecânica), ocorrendo a transdução (passagem de energia mecânica para elétrica) de frequências sonoras, pelo fato da reverberação desse som ser experienciada pelo ouvinte. “A pista de dança também é um elemento de transdução”, acrescenta Ferreira ao tentar explicar esse integrado sistema de “som coletivo” composto pelo DJ, as tecnologias, e o público dançante.

De uma forma geral, a música, seus instrumentos e performances podem ser considerados uma extensão do corpo humano. Da mesma forma não sabemos ainda o que faz a música ser música. Assim como também não é uma exclusividade da ME sua correspondência às necessidades tecnológicas, técnicas e estéticas de seu tempo porque isso se aplica a todos os gêneros musicais. Então, o que justificaria pesquisar música e em especial a ME? Caesar considera que a pesquisa em ME vai muito além da utilização de software e hardware, e ela só tem interesse para ele quando problematiza noções adquiridas e circulantes no senso comum, no mundo artístico e no acadêmico.

Autoria de Carolina Simas - Com Ciência.  

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