O fato de que a pintura e a música serem artes silenciosas não quer dizer que não contenham uma experiência de audição
que não possa escutar nelas alguma informação sonora, além da metáfora que nos
autoriza a falar, por exemplo, de “cores estridentes”. Porém, a percepção desta
informação, dado que transcorre silenciosamente, requer imaginação; é dizer que
é a própria invenção daquilo que se deve escutar.
Em “Ressonância sinistra, o ouvinte como
medium”, livro que Caja Negra publicará na Argentina nos próximos dias. O
inglês David Toop isolando os cenários de arte e literatura encontrando uma
situação, digamos assim, de “escuta”. Pode ser uma passagem de James Joyce, mas
também de Virgínia Woolf, de Poe ou de Kawabata, ou um quadro de Vermeer ou de
Mark Rothko.
Toop é músico, mas não é sua primeira
instância fazer um ensaio sobre música, mas sim uma tentativa de imaginar modos
de escutar isso que não está ali para ser ouvido. O título “Ressonância
sinistra” provém de uma peça de Henry Cowell, figura tutelar do
experimentalismo musical estadunidense, e alguém que não só ocupou de descobrir
ou mesmo inventar sons – se é que um som pode ser realmente inventado – mas
também, em uma linha que seguiria depois John Cage, de orientar a audição para
outras direções, de propiciar novas maneiras de perceber o mundo sonoro.
“Cowell foi um pioneiro que detectava em cada
som uma espécie de voz do espírito” – explica Toop enfaticamente. “Depois
projetava meios que serviram para dar expressão a essa percepção; Sua peça
Sinister Resonance usa uma das técnicas que ele descobriu e que consiste em
ativar a ressonância interna do piano e das cordas. Pareceu-me um título
perfeito porque encerra a ideia de que há algo terrível na reverberação do som
e do espaço, e um ponto que meu livro volta uma ou outra é o porquê o som
possui esta qualidade bem mais sinistra”.
Poderia dizer-se que Ressonância sinistra é
uma tentativa de resolver a assimetria postulada por Marcel Duchamp nessa
ocorrência segundo a qual podemos “ver ver mas não ouvir ouvir?
- Bom, desde já essa é uma maneira de pensar.
Propicia nos sentidos uma reação que se opõe aos efeitos distorcidos de uma
cultura “visucêntrica” na qual se pensa que as coisas que vemos representam a
realidade. Um dos aspectos fascinantes de trabalhar no campo da escuta é
descobrir a importância que vem tendo na história dos sons e o ato de ouvir. É
um tema que começa a aparecer nos estudos de muitas disciplinas; isto nos
revela que na Europa dominou durante séculos uma cultura predominantemente
visual que a impulsionou como um modo de pensamento. A experiência da escuta
não havia se perdido, simplesmente, não era levada a sério e, portanto, não era
reconhecida nem estudada. A ideia de Ressonância sinistra foi rastrear exemplos
de cultura “áudio” na literatura, na pintura e outras formas “silenciosas” de
comunicação e expressão, sobretudo aquelas anteriores a invenção da tecnologia
de gravação. Mas a inteligente observação de Duchamp no conta talvez toda a história.
Creio que quando somos sensíveis ao som e desenvolvemos nossa capacidade de
audição existe algo parecido a ouvir e ouvir. Em um ambiente silencioso podemos
acreditar que essa dimensão da escuta está viva, que ouvimos ativamente. É pura
imaginação ou podemos, com uma sensibilidade muito aguda, capturar este ato
inobservável da percepção? Há que dirigir esta pergunta à escuta mesma, ao
corpo, e não somente ao ouvido.
Até onde modos de ver de John Berger foi um
modelo de trabalho?
- Eu diria em três aspectos. Primeiro foi o
título que me levou a perguntar-me por que não existia modos de ouvir. Havia
ali um vácuo. O segundo foi a afirmação de Berger de que ver é um ato
primário. Ele pensa que a visão é o
primeiro ato do ser humano, mesmo quando um bebê ouve sem ver, inclusive antes
do nascimento. O terceiro foi o uso que Berger faz da palavra “silêncio”, o
silêncio, por exemplo, em Vermeer. Em princípio isto parece discutível. Certos
pintores, Vermeer entre eles, criaram cenas que emanam uma quietude e um
silêncio palpáveis. Uma vez mais: se toda pintura é silenciosa, por que algumas
seriam mais que outras? Tudo isto me fez considerar a pintura do silêncio como
uma representação consciente e a buscar outras pinturas nas quais o silêncio
tem uma função significativa. Encontrei o exemplo perfeito, uma série de
pinturas de Nicholas Maes, artista holandês do século XVII. Estas pinturas
mostram explicitamente uma pessoa no ato de escutar; ocorreu-me então a ideia
de conceber a pintura como registro, como um gravador de fitas ou digital de
seu tempo. Esta singularidade acústica abriu uma dimensão além da “ocularidade”
da pintura.
E qual foi, em semelhantes circunstâncias, a
maior dificuldade de conseguir que “escutemos” uma pintura ou uma novela?
- Devo dizer que a maior dificuldade consiste
em persuadir as demais pessoas de que se trata de uma abordagem verossímil.
Falei com alguns historiadores da arte e não se mostraram muito entusiasmados
com a conversa. O problema reside na certa condição de inverificável; não posso
provar que há som ou escuta em uma pintura, só posso desdobrar observações e
evidência que sugerem que existam. A literatura é um caso um pouco distinto
devido ao vínculo que existe entre o som da poesia e por aqueles escritores que
usam o ouvido mediante a evocação da música em seus textos. Resultou bastante
natural identificar momentos de som e audição na literatura. E um torna-se
consciente disso, eles aparecem por todas as partes.
Joyce, justamente, acreditava que havia
música em todas as partes. Se assim for, como haveria de escutar o ruído como
música ou, em sua especificidade, como “o outro” da música?
- Estou de acordo com Joyce, porém inclusive
ele fazia uma distinção entre a música e o ruído de uma porta. Uma vez que se
cruza esta linha e começa-se a escutar o mundo como um complexíssimo instrumento
musical, tudo depende das circunstâncias. Escuto agora mesmo o som das gotas da
chuva e isso instala um fundo para o pensamento. Mas se eu saio à rua e estarei
preocupado pelo clima e em não me molhar. Aos seres humanos não interessa
estabelecer categorias, separar os tipos de experiência, mas estas categorias
estão submetidas a uma revisão contínua. Seus limites são móveis segundo as circunstâncias.
Para mim existe um modo de ouvir que é musical e que não tem haver com as
atividades humanas. Logo existe um modo focalizado de escutar música que
respeita os limites impostos pelo artista e logo um modo de ouvir pragmático
que faça que eu corra da rua quando escuto que vem um carro. Mas todos estes
modos podem sobrepor-se, são fluídos e podem ocorrer simultaneamente.
Ressonância sinistra não omite a menção de
Cage e de Luigi Russolo, mas eles que expandiram o horizonte do audível, não
são em nenhum momento o assunto principal.
- Não queria escrever um livro sobre música.
Meus livros anteriores se ocuparam da escuta e do som, mas dentro do contexto
das formas musicais. Queria dirigir-me aos leitores que não compartilham nem
com meus interesses nem com meus gostos, mas que compartilham a preocupação
pelas ressonâncias do mundo.
De todo modo seu livro seria inconcebível sem
a experiência de vanguarda e experimentalismo, é como se ambos permitiram
pensar também problemas anteriores.
Sim, concordo. As ideias que tenho acerca do
som e da escuta são o resultado de 45 anos de trabalho como músico e
compositor. A teoria procede a prática; o conhecimento, da experiência. Isto
nos leva de novo a questão de realinhamento dos sentidos. Isso começou no fim
do século XIX com a tarefa de artistas, compositores e escritores
experimentais. Agora temos muitíssimos teóricos que escrevem sobre som, ruído,
arte sonora, mas os artistas que chegaram primeiro. São eles os primeiros a
pensar o impensável.
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