Emprestei um livro e nunca
mais devolveram.
Todas as cidades que morei
me presentearam com uma cena de filme de terror. Presidente Prudente, uma vez
voltando pra casa vi um carro com a bandeira da Inglaterra escondendo a placa traseira
do veículo atirar com uma pistola 380 numa república de universitários de
medicina. Treta de drogas. Atente-se,
não foi o carro, mas sim quem estava dentro. Odeio a gramática e adoro desobedece-la
em narrativas.
Em São Paulo, quando morei
no Belenzinho, pegava o metrô perto do Brás diariamente e um surfista de trem
tinha falecido no lugar. O IML levou uns cinco dias para tirar o cara jogado
perto dos trilhos. Desta forma, ainda moleque, vi o mesmo defunto numa postura
pitoresca quase uma semana.
Quando mudei para Curitiba,
lá estava a sina perpetuando-se. Um cara com dívida impagáveis pulou do teto do
HSBC bem no meio do Calçadão da XV, tinha miolo colado até no bondinho
histórico que fica próximo. O mais incrível pra mim sempre foi a desumanidade
destes e de todas outras situações. A maioria não se importa com uma vida
alheia ceifada de forma tão violenta. Talvez isso mostra porque aceitamos uma
guerra civil com 60 mil homicídios por ano e mais do que isso em mortes no
trânsito.
Existem acontecimentos
infelizes que não saem em jornal nenhum. Talvez você já tenha presenciado um e
não achou nenhuma nota explorando o caso midiaticamente. É o underground da
tragédia, a maior parte da população, incluindo eu e você, não merece nem nota
em jornal do dia que se fodemos. Principalmente quando você se mata.
Um camarada meu é exemplo
disso. Saca esta notícia “Polícia prende integrante de quadrilha que rendeu
família e usou arma com mira a laser em assalto” e “Polícia prende mais cinco
integrantes de quadrilha que aterroriza famílias e usa armas com mira laser”.
Saiu a notícia que pegaram a quadrilha, mas não o que o camarada passou na mão
destes filhos da puta no Campo Comprido, em Curitiba.
Oito horas da noite,
quarta-feira, 2016. O mano está chegando de mais um dia do trampo que paga mal,
busão lotado e esperanças de um dia melhor. “Se deus quiser”.
Abriu o portão da casa e já
ouviu “Perdeu caralho!” e o terror começa.
Quatro caras invadem a casa
deste camarada que mora com três familiares e um lhasa apso, gritam: “Nóis vai
mata todo mundo porra!” A irmã começa a chorar e o infeliz do cachorro chega no
momento do assalto. Um do bando fez questão de pegar o dócil pet e quebrar o
pescoço e atirar contra a parede.
Depois amarram os três com
cadarços e levaram até as calcinhas da irmã dele. Anos trabalhando oito horas e
quarenta e quatro minutos para perder tudo em uma hora e meia. Bicicleta,
tênis, carro, televisão, esperança e o livro que emprestei do Nietzsche –
Humano demasiado humano.
A irmã desesperada começou a
rezar o Pai nosso baixinho. O assassino do cachorrinho apontando a arma para
cabeça dela gritava: “Com quem você está falando porra?” O cunhado do camarada
começou a reclamar que tinha diabetes o cadarço estava muito apertado e iria
matar ele, a resposta foi: "É assim que a polícia nos trata filha da puta!”.
O maluco chorou brutalmente
no dia seguinte, foi um dia ruim para quem conhece ele. O patrão até adiantou
uma grana para ele comprar roupas, pois levaram tudo, tudo mesmo. As vezes a
humanidade surge de quem a gente menos espera.
Uma semana depois, como você
pode notar acima, pegaram os malacos. Ligaram para ele fazer o reconhecimento
na Delegacia. Ele reconheceu um do bando. A polícia sempre coloca o cara que
cometeu crime em meio a estagiários e policiais para ver se você acerta. No
caso, ele passou no teste de tragédia pessoal. Daí você vai pra segunda fase,
reconhecer os teus pertences. Finaliza na terceira e só os recupera
apresentando nota fiscal.
No dia apareceram onze
famílias na delegacia e quando ele foi olhar os pertences tinha carrinho de
bebê, fraldas, roupas infanto-juvenis, televisores, liquidificadores, meias,
celulares e um pinto de borracha gigantesco long dong marrom.
Disto tudo tenho algumas
certezas. Este caras serão soltos em breve, o pinto de borracha e o livro do
Nietzsche nunca mais serão recuperados.
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