domingo, 10 de julho de 2011

Artigo: Na improvisação

O problema

A música existe e sempre existirá em todas as culturas e sociedades. Claramente a música é algo importante. Temos também arte literária e pictórica, embora haja uma diferença essencial.
Palavras e imagens carregam significados e, como tal, possuem usos importantes desde seu início. Esses significados, vão desde elementos mais profundos até transmitir mensagens simples para a criação de mitos destinados a moldar um mundo conceitual para determinado grupo. Vem daí as atividades que as artes verbais e pictóricas desenvolvem. No entanto, quando se trata de música pura não há origens comparáveis, pois a história está repleta de diferentes razões e percepções da natureza em função da música.
Este ensaio pretende apenas esboçar tal percepção, especialmente em relação à música improvisada. O esboço não vai assumir a forma de verdade absoluta com dados verificáveis ou falsificáveis algo como “isto é como é”, mas deve ser lido como uma sugestão, no estilo “Vamos olhar para isso desta maneira e vamos ver onde nos leva”.

A função da música


Em oposição às artes verbais e algumas artes pictóricas, a música não transmite conteúdo significativo. A ordem que dá sua consistência e a unidade musical sãos formas puras. No entanto, essas estruturas criadas transformadas em músicas podem ser aplicadas à realidade do ambiente como forma de metáforas vazias e, assim, contribuir para tornar essa realidade significativa e compreensível. Per si não existe significado, mas pode tornar-se um instrumento para a criação de significados.

O modo como percebemos a realidade determina a maneira de pensarmos, sentirmos e agirmos, que por sua vez, produz novos significados em um ciclo interminável. Em outras palavras, a música é uma parte dessas atividades criadoras de significados, servindo como “instrutores” da nossa realidade vivida, o nosso “mundo” e, portanto, nossos pensamentos, sentimentos e atos.  A personalidade de um indivíduo ou a identidade é constituída, por regularidades e semelhanças que encontram-se neste processo constante, contínuo e individual. O processo funciona dentro de uma rede social que também engloba a formação de regularidades e semelhanças dentro de percepções da realidade e padrões de atividades. Esses, constituem uma sociedade ou uma cultura.

Visto dessa maneira, a música é uma criadora de ferramentas para a compreensão e de atitudes para a ação, servindo assim como um poder ativo na formação do homem e da sociedade. Como parte deste processo de modelagem, a música delineia peças e aspectos da realidade muitas vezes além da consciência, das palavras e imagens. Estas peças e aspectos podem facilmente permanecer em trevas na nossa cultura, que habita uma zona cinzenta, onde a linguagem da consciência, verbal e de imagens, se unem para imprimir uma produção de sentido e, assim, perceber a realidade. O ouvido se torna uma ferramenta menos importante para “construir” o que olho vê. O mundo, portanto acaba mais pobre e diminuído do que realmente ele pode ser.  A música é um meio para enriquecer e ampliar o nosso “mundo”, produzindo novos aspectos compreensíveis e tornando nossas vidas mais ricas e nossas identidades mais seguras.

A apreensão da realidade

A capacidade de perceber o sistema no sentido da ordem previsível, como parte da interação humana com o ambiente do mundo sempre foi essencial para a sobrevivência humana. São sucessões de ideias de tal ordem em relação a conhecimentos práticos relativos a situações individualizadas para os modelos do universo, das filosofias, das crenças e das orientações cognitivas fundamentais de um indivíduo ou de toda uma sociedade. Nossas experiências cotidianas nos ensinam que o evento (a) é sempre ou quase sempre seguido pelo evento (b). Esperamos que quando confrontamos (a), (b) deve agir logo em seguida.

Na era pré-científica muito tempo foi gasto na procura de sistemas abrangentes regidos por deuses, demônios, criaturas não-mundanas como espíritos com diferentes características e desejos. Até hoje isto está em curso. Oráculos e outros indivíduos supostamente perspicazes acreditam entrar em contato com o mundo do além, dizendo às pessoas o que aconteceria em diferentes situações, ou se as ordem dos deuses foram desobedecidas.

Nas ciências naturais procura-se variados tipos de sistemas onde a ordem é decidida através de leis naturais. Em certas áreas, leis matemáticas conseguem definir e fornecer previsões muito exatas. Os cientistas sociais trabalham com outros tipos de compreensão, são eles que nos dizem formas de esperar certas situações e, portanto, nos fornecer meios para reagir.

No início da história das ciências do mundo, existia uma visão estritamente determinista. Os limites intelectuais dos seres humanos eram mantidos pelo controle total da existência por meio da compreensão de todas as regras vinculadas. Hoje a ciência nos ensina o oposto – há sequências no mundo que são basicamente imprevisíveis. Nossa vida cotidiana sempre nos leva para situações para as quais não existe sistema de previsão identificáveis. Estar preparado para tais situações é tão importante para nossa sobrevivência como encontrar regras previsíveis. Nossa interação com a realidade exige capacidade de improvisação, para lidar com uma realidade não prevista devido a uma ação não planejada.

A capacidade de prever por sistemas definidos é tão importante como improvisar é necessário para uma interação bem sucedida com o mundo.  Entretanto, a busca desse sistema não deve nunca degenerar-se, utilizando uma rigidez com o intuito exagerado pelo controle, poder, ordem, regras e intolerância contra tudo o que está fora de cena. Uma atitude de improvisação implica uma crítica e uma alternativa para isso.

“Improvisação”, a palavra vem do latim que significa improvisus, ou seja, algo imprevisto ou inesperado. Uma grande parte de toda a música existente tem sido improvisada, incluindo, raga indiando, flamenco espanhol e as várias tradições musicais africanas. Mesmo a nossa música ocidental clássica anterior, continha improvisação significativa, embora hoje em dia é quase que inteiramente escrita. Vários dos mestres da tradição eram improvisadores soberbos, incluindo Bach, Mozart, Liszt e Chopin.  Na cultura do jazz, a música improvisada é a forma claramente dominante.

Pode ser que os seres humanos de diferentes épocas e culturas desenvolveram diferentes formas de música improvisada, em parte pela necessidades de ferramentas que não possuíam e compreensão de situações imprevisíveis e, em parte, para questionar  e quebras sistemas rígidos.
  
Um exemplo

Era início dos anos 50. A Segunda guerra mundial terminada tinha colocado limitações na vida das pessoas. Uma vida melhor, mais rica, começa a ganhar forma. Uma parte importante é a expansão do sistema educacional com suas novas oportunidades. Pessoas com poucos recursos para obter livros escolares, agora conseguem ter acesso, devido às taxas reduzidas. Refeições escolares gratuitas são oferecidas. O talento intelectual torna-se a condição mais importante para o sucesso, ao invés da economia do país.

Um grande número de jovens na sociedade sabia que eles estariam mudando de classe social.  Seus pais eram trabalhadores, agricultores com pequenas propriedades  ou funcionários de nível social inferior. Não havia uma tradição de aprendizagem em suas casas. Mas pensava-se que os jovens tinham boa cabeça para estudar e após enfrentarem uma longa viagem de classe, o objetivo maior, na maioria das vezes, era ser a “classe média educada”.

Mudanças de classe não é um processo simples. Você não pode sacudir um contexto social com o estilo de vida que pressupunha e mudar-se para outra, definindo uma. Uma pessoa que só faz isso torna-se apenas uma imitação pobre ou uma caricatura. Para “ser aceito” na nova classe, deve contribuir com algo novo, que por sua vez , ocorrem chamadas para construções conceituais, esses processos significam  formas de comportamentos que não existem nem na velha classe nem na nova classe. Tudo isso deve ser criado em uma terra de ninguém entre as classes. Uma mudança de classe de sucesso coloca grandes exigências à vitalidade e criatividade.

Tanto do ponto de partida, na meta e jornada, a classe em questão sempre existiu em sistemas bastante rígidos. Especialmente na “classe média educada”, pois era algo bastante tacanho, possuía normas petrificadas em relação a modos de comportamento. E mesmo quem se rebelasse e não quisesse aceitar tudo isso, ainda tinha que encontrar alguma maneira de se relacionar com ela. Para atingir isso, foi preciso uma preparação para enfrentar o novo e imprevisível, era um entendimento comum e, isso é importante para construir um novo significado. O mundo que estavam criando era necessariamente mais rico e mais abrangente do mundo que estavam saindo e do mundo que estavam indo.  Isso coloca uma grande pressão sobre a capacidade para a vitalidade da libertação, e criatividade, bem como a preparação para lidar com o imprevisível. Essas demandas não podem ser atendidas no vazio.

O jazz continha muito do que precisávamos. Toda a história do jazz pode ser vista como uma libertação cada vez mais completa em relação ao material que queríamos. Muito do jazz foi, na década de 50,  utilizado em musicais e filmes. As estruturas foram analisadas pelo jazz e a resposta foi um melódica livre, ritmos sincopados, harmonias novas e mais avançadas e, acima de tudo improvisação.
Novas melodias tecnicamente e harmonicamente complicadas foram criadas usando como base batidas padrões. Essas, tomadas em conjunto, criaram uma atmosfera de auto-confiança e atrevimento.

A libertação da base melódica, harmônica e rítmica foi muitas vezes bastante ajudada pela ironia. Isso não só afetou sua base popular, mas também o próprio jazz em suas mais antigas formas estabelecidas. A versão irônica foi considerada superior ao original de acordo com uma estética compartilhada não só entre os praticantes, mas também por outras pessoas.

Ironia geralmente trabalha de forma implícita, com dois sentidos, o que sugere uma coisa, muitas vezes é claramente o oposto. Através dessa escolha em muitas melodias o jazz pareceira estar com a música convencional, mas mudando a apresentação melódica, os ritmos e harmonias resultavam em outra, permitindo expressar uma crítica à alienação e repúdio. Além da música, essa distância irônica muitas vezes tornou-se não apenas um meio para a libertação de nossas origens, mas também uma arma em nossa nova situação de classe.

Ainda, a parte mais importante foi o processo criativo. Você poderia fazer o que você quisesse com uma melodia, alterando sua apresentação, ritmo, andamento e harmonia – nada era prescrito. Os ritmos sincopados e sons dissonantes parecia mais vital e poderoso do que a música doce e suave do que as músicas populares que crescemos ouvindo. O mais importante da improvisação e a colaboração musical em nós, foi a capacidade para entender e desenvolver o imprevisível.

Saímos do nosso meio original, não aceitamos um estilo de vida completamente formado. Ganhamos novas possibilidades e as usamos. Nosso mundo era para ser maior do que o deixamos e não estávamos satisfeitos com apenas entrar na nova classe. Nos transformamos. Desta forma a música clássica perdeu seu monopólio e não era mais evidente que os acadêmicos seriam conservadores. A classe média educada nunca mais voltará a ser o que era.

O jazz foi uma parte importante deste processo. Isso nos mostrou que a liberdade pode existir em paralelo com regras e limites, as fronteiras podem ser ultrapassadas, velhas estruturas quebradas e novos modelos criados.

O jazz tornou-se os campos de nossa prática.

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