Reposto um texto muito interessante
escrito por João Bernardo e publicado no sítio do Passa Palavra. Originalmente
ele foi publicado em quatro partes, aqui seguem todas juntas. É um texto longo,
mas faz uma interessante reflexão sobre a esquerda. Neste blogue você também
encontra um texto, mesmo que distinto deste, mas com temática semelhante
relacionado à música. Você pode lê-lo aqui.
Por
que motivo continua a chamar-se esquerda àquela que hoje existe com este nome?
I
As grandes derrotas que temos sofrido
não se deveram principalmente aos ataques vindos de fora, aos inimigos
explícitos, mas sobretudo ao inimigo insidioso, gerado pelo desenvolvimento das
contradições internas da esquerda. Por isso a crítica da esquerda pela esquerda
é pelo menos tão urgente como a crítica da direita pela esquerda.
Reina na esquerda um conformismo que
garante o conforto mental, enquanto a grande preocupação deveria ser o estudo
das causas das derrotas.
O capitalismo goza hoje de uma indisputada
hegemonia.
Por todo o mundo, a esquerda
governamental perdeu a identidade e nada de significativo a diferencia da
direita. Abandonando quaisquer transformações económicas substanciais e
restringindo-se nesse campo aos paliativos, a esquerda governamental
concentrou-se nas questões de costumes, mas mesmo aí deixa a desejar. Numa
época recente ela ainda se singularizava por adoptar uma certa latitude moral,
enquanto a direita era moralmente restritiva. Agora já nem isto sucede. Ao
confundir-se com o politicamente correcto, a esquerda começou a pautar os
comportamentos por normas muito mais estritas do que aquelas que o
conservadorismo impõe. Até a defesa do direito ao aborto esqueceu a sua
justificação originária, decorrente da má situação económica das mães que
pretendiam recorrer a essa prática, e, pior ainda, em vez de assinalar uma
progressão das fronteiras da imoralidade, invoca os argumentos da nova moral do
exclusivismo feminino. Especialmente perversa, tanto nos pressupostos como nos
resultados, é a institucionalização do casamento entre homossexuais, já que
aplica o padrão tradicional dos casais heterossexuais e reprodutores àqueles de
quem se poderia esperar que rompessem com esse formato moral.
A mesma perda de identidade atingiu a
esquerda exterior às instituições estatais, que passou a repetir e desenvolver
temas gerados na transição do século XVIII para o século XIX pela
extrema-direita anticapitalista, conservadora ou radical. Nesta deslocação de
sentidos e de referências, a esquerda exterior às instituições estatais, que em
várias épocas constituiu uma efectiva ameaça, não passa agora de uma
irrelevância. Exceptuando em alguns — poucos — países da Europa ocidental e da
América Latina, esta esquerda tem sido ignorada nas principais lutas sociais
dos últimos anos.
Por que motivo, aliás, continua a
chamar-se esquerda àquela que hoje existe com este nome?
Está em curso uma profunda
transformação orgânica da classe trabalhadora, resultante da convergência de
seis processos.
a. A mundialização da classe
trabalhadora praticamente extinguiu os sistemas pré-capitalistas e se antes
tínhamos formações económico-sociais constituídas por vários sistemas sob a
hegemonia do modo de produção capitalista, temos hoje um só modo de produção
capitalista com variantes internas. Ora, por um lado este processo foi
correctamente entendido como uma globalização, mas por outro lado deu origem à
falsa noção de que o capitalismo estaria a dissolver-se numa multiplicidade de
formas.
b. A redução de todos os tipos de
exploração ao sistema de exploração capitalista ocorreu muito mais rapidamente
no plano económico do que no plano cultural, em que persistem tradições
herdadas de sistemas pré-capitalistas entretanto assimilados pelo capitalismo.
Assim, uma parte considerável dos trabalhadores pensa em quadros ideológicos
que já não correspondem à sua base socioeconómica. Trata-se de uma falsa
consciência resultante de um desfasamento temporal.
c. O capital está transnacionalizado,
mas o mesmo não sucede com o mercado de trabalho, sujeito a barreiras nacionais
ou regionais e onde se erguem obstáculos à migração. Ao contrário do que fora
previsto pelos socialistas do século XIX, não foi o proletariado mas os
capitalistas quem se internacionalizou e, perante o grande capital unificado
mundialmente, os trabalhadores apresentam-se fragmentados. A esta situação de
inferioridade corresponde uma falsa consciência, estando os trabalhadores
divididos entre uma aspiração de globalização e as pressões do nacionalismo. O
nacionalismo hoje difundido na esquerda é a expressão dessa falsa consciência.
E este nacionalismo tornar-se-á tanto mais estridente quanto mais se confinar
ao plano ideológico e cultural, tentando compensar assim a ausência de um
substrato económico.
d. As profissões liberais
extinguiram-se devido à proletarização dos seus processos de trabalho, que
passaram a obedecer à padronização e a uma avaliação estritamente quantitativa.
Por este motivo, a maior parte dos antigos profissionais liberais converteu-se
em trabalhadores proletarizados e os restantes, uma pequena minoria,
converteram-se em gestores. Porém, a maioria dos antigos profissionais liberais
convertidos em trabalhadores, em vez de assumir a consciência deste processo,
pelo contrário, reage contra ele mediante uma falsa consciência que implica um
comportamento elitista relativamente aos trabalhadores assumidos como tais.
e. O sistema de relações de trabalho
geralmente denominado pós-fordismo ou toyotismo recorre à terceirização
extensiva, de modo que uma parte considerável da força de trabalho é
apresentada no plano jurídico como profissionais independentes quando na
realidade socioeconómica se trata de um assalariamento precário. Gerou-se assim
uma cisão entre a consciência social dos trabalhadores precários e a dos trabalhadores
integrados num assalariamento formal e de longo prazo.
f. A produção de bens imateriais
desenvolve-se cada vez mais. Ora, apesar de o capitalismo ter sempre incluído
serviços e de as relações de exploração se definirem em termos de tempo de trabalho
e não de fabrico de objectos palpáveis, divulgou-se a noção de que a diminuição
da percentagem dos trabalhadores encarregues de fabricos materiais
corresponderia a um declínio da própria classe trabalhadora, o que implica que
os produtores de bens imateriais sejam concebidos como exteriores à classe
trabalhadora.
A convergência destes processos leva
uma grande parte dos trabalhadores, ao mesmo tempo que perde a noção antiquada
da classe, a não adquirir uma noção modernizada e pertinente. Enquanto a classe
trabalhadora atravessa uma profunda transformação orgânica, que está longe de
chegar ao seu termo, as ideologias hegemónicas na esquerda actual reflectem
esta transformação em modalidades de falsa consciência. Generalizaram-se noções
vagas e especulativas, a futilidade, a cisão entre o cultural e o fundamento
socioeconómico e o distanciamento relativamente à economia, que é deixada ao
bel-prazer dos tecnocratas. Este misto de ambiguidade e de falsa consciência
reflecte-se nos intelectuais profissionais da esquerda mediante a ideia difusa
de que o capitalismo actual dispensaria a classe trabalhadora. Houve épocas em
que alguns intelectuais contribuíram decisivamente para a formação e a
generalização de uma consciência de classe trabalhadora, mas sucede hoje o
contrário e a nova consciência de classe, quando ressurgir, virá da
multiplicidade de elaborações silenciosas, resultantes de uma acumulação de
pequenas e grandes lutas e alheias ao discurso intelectual.
Uma teoria revolucionária não é apenas
uma teoria que revoluciona o panorama intelectual. No que diz respeito à
sociedade, é também uma teoria da revolução. Não existe actualmente teoria
social revolucionária, em nenhum destes dois sentidos.
a. O marxismo pereceu devido a duas
implosões sucessivas: uma resultou da burocratização da revolução russa e do
estabelecimento do regime soviético como capitalismo de Estado e a outra
deveu-se à extinção dos regimes de tipo soviético e à sua fragmentação
geopolítica.
b. O anarquismo pereceu em virtude de
um duplo processo, repetido ao longo do tempo: a dissolução que o atinge quando
se confunde com uma liberdade indeterminada ou com um naturismo primitivista e
o congelamento que o imobiliza num museu de relíquias veneradas e indiscutidas.
Aquilo que hoje sobra de ambas as
correntes restringe-se a alguns meios universitários, onde se limita a
constituir um objecto de estudo e a alimentar os currículos. Nem contribui para
revolucionar o meio intelectual nem para inspirar uma teoria da revolução.
Não valeria a pena perder tempo aqui
com a velha esquerda composta pelos saudosistas do capitalismo de Estado, viúva
do regime soviético aguardando que a deitem ao lado do defunto, não fosse o
facto de o capitalismo de Estado ter continuado a ser um atractivo, mas agora
em sistemas mistos que não excluem o recurso a outras modalidades de
inter-relacionamento das empresas.
Desde a sua origem, antes ainda da
génese do marxismo, que na esquerda existe um acentuado pendor para o
estatismo. Não se trata para essa esquerda de alterar as relações sociais de
trabalho, mas de concentrar no Estado os principais mecanismos de decisão
económica. Esta é a esquerda que corresponde exclusivamente aos interesses da
classe dos gestores, cujo acesso ao capital passa pelo exercício de funções administrativas
e não pela detenção de propriedades.
Os gestores podem ascender tanto no
aparelho tecnoburocrático das grandes empresas como no aparelho
tecnoburocrático do Estado. Todavia, as grandes empresas são muito exigentes
nos seus critérios de selecção, que passam pela avaliação dos currículos e por
entrevistas, intermediadas nas esferas superiores por firmas especializadas em
recrutamento. É certo que há uma circulação entre os quadros administrativos
das grandes empresas e a administração estatal, mas apenas enquanto assessores
ou ministros técnicos, porque o acesso aos postos elegíveis obtém-se graças a
clientelas partidárias ou simples compadrios. Ora, como não se trata aqui de
convicções mas de oportunidades, pode ser conveniente usar com fins eleitorais
um rótulo de esquerda, devido ao seu apelo populista. Esta diferença nos
processos de escolha explica que os gestores candidatos eleitorais em listas de
esquerda sejam muito menos competentes do que os seleccionados por
recrutamento, o que leva a militância partidária na esquerda estatista a atrair
sobretudo a tecnoburocracia de segunda e terceira ordens.
A armadura jurídica do capitalismo
pode assim ser discutida pela esquerda no aparelho de Estado e eventualmente
remodelada, enquanto nas empresas as relações capitalistas de trabalho se
mantêm ou são mesmo reforçadas. Já na União Soviética o apreço pelo taylorismo
fora levado a um grau extremo, a tal ponto que foi aí, durante os planos
quinquenais, e não nos Estados Unidos, que se realizaram as maiores
experiências fordistas. A situação não mudou e para esta porção da esquerda
socialismo continua a significar ampliação do poder de decisão económica do
Estado, ficando completamente posto de lado o problema das relações sociais de
trabalho. É um socialismo de gestores, não de trabalhadores.
Existe uma subespécie de eternos
candidatos a gestores que têm como programa a ocupação do poder de Estado, mas
com ilusões tais que nunca podem ser satisfeitas. Distinguem-se dos outros não
pelos objectivos últimos, que em ambos os casos é a estatização da economia,
mas pela ausência de noções práticas quanto ao caminho a percorrer. E como a
sua vocação para o fracasso os leva a imaginarem-se revolucionários, consideram
que é o sucesso eleitoral que classifica os outros como reformistas. Na
verdade, trata-se de uma esquerda governamental in partibus, que só parece
exterior às instituições estatais porque não consegue inserir-se nelas.
Nem conseguirá porque julga que o
capitalismo perdeu as potencialidades de crescimento e o dinamismo interno.
Esta esquerda é incapaz de se dar conta do aprofundamento do sistema de
exploração e das novas formas de concentração económica que garantem ao
capitalismo o aumento da produtividade e dos lucros e uma grande capacidade de
absorção dos conflitos sociais. Embora invoque sempre referências marxistas, a
sua compreensão nunca foi além da mais-valia absoluta. Os mecanismos da
mais-valia relativa e da renovação das classes dominantes mantêm-se para ela
envoltos em mistério.
O facto de arrastar uma história
composta toda de fracassos não desanima esta esquerda, que se ocupa
exclusivamente em dar lições aos governantes e aos patrões sobre a maneira de
gerir o Estado e a economia e em profetizar o fim iminente do capitalismo. É
estranho que não se dê conta de que traça assim uma distância crescente entre a
sobranceria apocalíptica com que se refere ao capitalismo e a desconsolada
mediocridade a que se confina. Qualquer teoria da revolução ficaria sem sentido
se a crise do capitalismo não correspondesse à ascensão dos revolucionários e
se a crise em que os revolucionários se encontram não indicasse a hegemonia do
capitalismo.
Tudo isto seria trágico se fosse
grandioso, mas como ocorre em esferas diminutas é só ridículo.
O
pós-modernismo deve ser visto como a inversão da última das Teses sobre
Feurbach.
II
Existe outra esquerda, que hoje tem o
ascendente e se define como pós-moderna.
O pós-modernismo generalizou a noção
de narrativa. A realidade é assimilada pelo discurso sobre a realidade. O que
passa a ter importância é o controlo sobre o discurso, substituindo a acção
sobre o real. Esta concepção tem a sua expressão prática — ou, mais
exactamente, de negação da prática — na redução da política às redes sociais,
enquanto disputa de narrativas.
O enclausuramento no quadro virtual lança
raízes muito antes do aparecimento da internet. Os chefes fascistas concebiam a
política como uma encenação e Salazar falou por todos eles ao pretender que
«politicamente, só existe o que o público sabe que existe» e que «politicamente
tudo o que parece é». Do outro lado da barricada, George Orwell preocupou-se,
tanto no Homage to Catalonia como em vários artigos, com a possibilidade de uma
vitória absoluta do franquismo entronizar como verdadeira a ficção de que o
levantamento dos generais se fizera porque os soviéticos estariam a enviar
tropas para Espanha. Assim, deduziu Orwell, um triunfo político poderia tornar
verdadeiro um facto falso. É nesta perspectiva da realidade virtual que devemos
interpretar o newspeak do Nineteen Eighty-Four, a matriz do politicamente
correcto. Do mesmo modo, Gore Vidal, no final do Empire, imaginou Hearst, num
encontro com Theodore Roosevelt, a vangloriar-se de que, se com os seus jornais
inventava o país e o país acabava por ser tal como o inventara, então não
precisaria de tomar o poder político, porque ele mesmo criaria a imagem
daqueles que seriam eleitos.
Esta noção de narrativa adquiriu com o
pós-modernismo um estatuto de fundamento epistemológico. Negando pertinência à
avaliação da distância entre a realidade e uma narrativa da realidade e
pensando que a realidade é um constructo, reduz-se a realidade, ou pelo menos a
realidade perceptível, ao discurso sobre a realidade. Mas a realidade pode
desenvolver-se de maneira oposta à narrativa, que fica então convertida numa
falsa consciência. Esta discrepância é tão antiga como a história da humanidade
e prova-se materialmente em sítios arqueológicos onde a reconstrução da vida
quotidiana difere da sua representação nas pinturas murais ou nos relevos,
assim como decorações figurativas em vasos de cerâmica puderam sofrer
transformações que não indicam nenhuma alteração correspondente nos costumes.
Do mesmo modo, as grandes gestas heróicas que alguns povos durante séculos
consideraram como espelhos da sua história narram feitos e situações que jamais
ocorreram. Ora, o facto de aqueles povos não só aceitarem a pertinência de tais
representações mas até se mirarem a si próprios com esses olhos não impediu que
a realidade social e a realidade material obedecessem a outras leis e se
transformassem segundo outra dinâmica. O maior interesse de cada narrativa
reside na distância que a separa, ou não a separa, da realidade. A narrativa
válida é aquela que toma essa distância como objecto de reflexão.
Ou então, é válida também a narrativa
feita para dentro, sem expressão pública. Não são apenas os achados
arqueológicos e a épica arcaica a mostrar que a vida prática podia não
corresponder às narrativas plásticas. Quando se dispõe de documentação, a
análise dos regimes modernos com uma censura mais rigorosa, quer os fascismos
quer o stalinismo, revela que, apesar dos receios de Orwell, a vida quotidiana
não era absorvida pela narrativa oficial. Dois celebrados chefes do fascismo de
massas perceberam este risco. «Para dirigir as massas tenho de arrancá-las à
apatia», explicou Hitler. «As massas só se deixam conduzir quando estão
fanatizadas. Apáticas e amorfas, as massas representam o maior dos perigos para
qualquer comunidade política. A apatia constitui uma das formas de defesa das
massas. É um refúgio provisório, um entorpecimento de forças que de súbito
explodirão em acções e reacções inesperadas». Outro irrefreável demagogo, Juan
Perón, tentou explicar aos patrões reunidos na Bolsa do Comércio de Buenos
Aires em Agosto de 1944 que «a massa mais perigosa é a massa inorgânica. A
experiência moderna demonstra que as massas operárias melhor organizadas são,
sem dúvida, as que podem ser dirigidas e melhor conduzidas em todos os
domínios». Estes dois chefes do fascismo mostraram-se bastante mais cépticos do
que os pós-modernistas quanto à possibilidade de assegurar o controlo básico da
realidade mediante o controlo no plano da narrativa. Teve razão Karl Jaspers
quando, depois da guerra, classificou «o silêncio» como «o último recurso de
quem se encontra reduzido à impotência» e adiantou que «se dissimula o silêncio
para reflectir na maneira como se poderia restabelecer a situação».
A apatia política actual e o aparente
desinteresse, que muitos consideram como uma postura alienada, talvez revele,
pelo contrário, a fuga do plano das narrativas públicas e a passagem para outro
plano mais fundamental, para o qual a esquerda pós-moderna se encontra —
felizmente — despreparada.
O pós-modernismo exige a conversão do
newspeak em politicamente correcto porque o seu apêndice multiculturalista
constitui uma colossal hipocrisia, que para se disfarçar requer o puritanismo
da linguagem.
a. Os multiculturalistas esquecem, ou
pretendem fazer esquecer, que as culturas e identidades étnicas foram, todas
elas, originariamente exclusivistas e cada uma nasceu da assimilação e
liquidação de outras anteriores.
Essa situação não se alterou. Os
multiculturalistas passam por cima da questão fundamental, a do necessário
antagonismo entre umas e outras identidades e umas e outras culturas. Nem o
verniz do politicamente correcto consegue disfarçar o carácter inconciliável de
culturas ou identidades que o multiculturalismo apresenta como igualmente
respeitáveis, por exemplo a homossexualidade masculina e as culturas populares,
que em muitos casos incluem um componente de homofobia. Mais drasticamente
ainda, a hostilidade manifestada contra os homossexuais por culturas
tradicionais da África reflecte-se na legislação repressiva adoptada por alguns
governos africanos. Como harmonizar a apologia do movimento negro e a apologia
do movimento gay? O multiculturalismo não consegue também dar conta do choque
entre o feminismo, por um lado, e, por outro, identidades enaltecidas por se
apresentarem como antieurocêntricas, nomeadamente o islamismo e numerosas
culturas tradicionais. Não falta quem seja activamente feminista na
universidade que frequenta mas aceite sem tugir nem mugir a subserviência
tradicional das mulheres em povos índios. O que os multiculturalistas pretendem
apresentar como um necessário mosaico de identidades e culturas é, na prática,
um indispensável choque de identidades e culturas.
b. Nesta perspectiva, as denúncias de
eurocentrismo são uma falsidade e um anacronismo. Em primeiro lugar, são uma
falsidade porque as raízes greco-romanas da cultura ocidental nunca foram
europeias mas fundamentalmente mediterrânicas, localizadas tanto no sul da
Europa como na Anatólia, no Levante e no norte da África, e estendendo-se
depois mais longe a oriente na época helenística e no auge do império romano. A
cultura greco-romana resultou de uma fusão de todas estas proveniências. Em
segundo lugar, o presumido eurocentrismo é um anacronismo porque no século XIX
o capitalismo assimilou e extinguiu a diversidade de culturas distintas
existentes no continente europeu para formar uma nova cultura única, que nunca
foi exclusivamente europeia.
Ao longo da história, só o capitalismo
se mostrou capaz de admitir a multiplicidade de origens culturais como um
factor constitutivo permanente. O teste decisivo consiste na formação das
vanguardas artísticas, que são a ponta de lança da cultura. Ao mesmo tempo que
estas vanguardas foram influenciadas pelos novos meios técnicos e aprenderam a
usá-los, especialmente a fotografia e os efeitos da velocidade, assimilaram
também as lições estéticas provenientes de outras culturas. Não se tratou de
influências superficiais nem de modas, mas de uma contribuição que implicou
alterações de estrutura. Na segunda metade do século XIX os pintores europeus
começaram a interessar-se pela arte japonesa, nomeadamente o colorido e o tipo
de perspectiva, que deixaram fortes traços nos impressionistas e em alguns
pós-impressionistas. Em seguida, desde a primeira década do século XX, com os
cubistas e os expressionistas, incluindo o equivalente parisiense do
expressionismo, foi avassaladora a influência das esculturas e das máscaras
africanas, tanto na organização dos planos como na inversão da noção de espaço
vazio e cheio na escultura. Mesmo os construtivistas, cuja linguagem estética
emanou directamente das técnicas industriais, fundiram-na com a disposição de
planos característica das máscaras africanas. Ao mesmo tempo, um jovem escultor
francês radicado em Londres aprendeu também a lição sintética da escultura
maya, enquanto um pouco mais tarde certa pintura abstracta gerada no
funcionalismo construtivista incorporou igualmente a lição mesoamericana. Só a
pintura aborígene australiana foi assimilada tardiamente, já quando o século XX
ia adiantado. Todas estas lições passaram a fazer parte integrante de uma arte
moderna que não deve definir-se por qualquer localização geográfica mas apenas
pela situação temporal, a arte universal da sociedade global em que vivemos.
Não foi uma cultura europeia que se expandiu, foi uma pluralidade de culturas
de origem diversa que se fundiu para criar a cultura mundial da nossa época.
Para mais, note-se que esta
miscigenação impulsionadora da nova cultura capitalista não ocorreu nas
colónias ou nos espaços colonizados, onde os colonos sempre se revelaram
exclusivistas, por uma necessária afirmação de identidade num meio em que
constituíam uma reduzida minoria. Foi nas metrópoles que se gerou e desenvolveu
a cultura capitalista mundialmente integradora; e mais tarde, à medida que o
capitalismo se expandiu, as populações colonizadas absorveram de volta aquela
cultura e deram-lhe novos desenvolvimentos, conjugando a irradiação das
metrópoles com as iniciativas locais. A formação dos modernismos na América
Latina é um bom exemplo deste vaivém fecundo.
c. O tipo de feminismo que hoje está
na moda confunde as oposições de classe sob o pretexto da identidade biológica.
Dando à noção de patriarcal uma extensão refutada pelo estudo das diferentes
estruturas familiares ao longo da história e, em cada sociedade, nos vários
estratos sociais, esse feminismo em voga recusa ou secundariza a noção de modo
de produção e combate o projecto de uma cultura unificada de classe.
De maneira equivalente, o movimento
negro esconde as clivagens sociais e políticas existentes entre os negros, ou
pelo menos tenta atenuá-las, projectando para um plano supranacional os piores
efeitos do nacionalismo. O movimento negro serve agora de legitimação
ideológica à ascensão de novas elites, tal como a négritude serviu, há várias
décadas atrás, para legitimar a ascensão da nova elite política nas antigas
colónias francesas. No dia em que surja um movimento negro que critique a
formação de elites negras e as relações de desigualdade e exploração entre
negros com a mesma veemência com que critica o racismo antinegro, então esse
movimento passará a fazer parte constitutiva do processo geral de renovação da
classe trabalhadora.
Mas esse dia ainda não chegou, e a tal
ponto o politicamente correcto habituou a esquerda actual a confinar-se ao
mundo do vocabulário, que evoca um «feminismo de classe» ou um «movimento
étnico de classe», como se bastasse a junção dos nomes para ser possível
efectuar na prática a articulação de realidades sociais antagónicas. É o
pensamento mágico transportado para o plano da política.
Tudo somado, os multiculturalistas
propõem-se preservar apenas identidades e culturas já estabelecidas e recusam a
priori uma cultura em processo de construção, a de uma classe trabalhadora
mundial e unificada. Eles conseguem fazer pouco ou quase nada, mas conseguem
impedir muito. É esta a sua utilidade histórica para o capitalismo actual. O
multiculturalismo é o sucedâneo do nacionalismo na época da globalização.
d. Uma renovada identidade da classe
trabalhadora, que leve em conta a pluralidade de origens culturais, de
preferências sexuais e de características étnicas, não corresponde a adoptar o
multiculturalismo no âmbito dos confrontos entre classes sociais. Trata-se de
combater o multiculturalismo, tomando as mesmas matérias-primas culturais que
ele pretende congelar no estado actual e na fragmentação geográfica, e
construir com elas algo de muito diferente ou oposto, uma realidade nova e
mundialmente integradora. É a luta do futuro contra a conversão do presente num
mosaico de tradições.
O pós-modernismo deve ser visto como a
inversão da última das Teses sobre Feurbach. Transformar o mundo é considerado
pelo pós-modernismo como um projecto totalitário e centrado no sujeito — para
mais um sujeito histórico — que quer modelar tudo à sua imagem. Mesmo
interpretar o mundo é considerado perigoso, já que poderá ter algum efeito
sobre a prática. A grande narrativa é odiada e substituída pela proliferação de
narrativas multifacetadas.
A única visão do mundo que o
pós-modernismo admite é fragmentada e descritiva, o que garante que seja
inócua. Sendo descritiva, passa-se da interpretação para a transposição,
imunizando o objecto de sofrer qualquer interferência do sujeito e, portanto,
deixando-o sem modificação. E, sendo fragmentada, não se corre o risco de um
discurso global, que inspire um projecto global também, tido por isso como
totalitário. Ora, só um projecto global pode opor-se à globalidade do
existente.
Sem a ambição de transformar o mundo
fica votada ao fracasso a busca de uma acção revolucionária. A última das Teses
sobre Feuerbach é uma apologia da razão instrumental. Ora, a recusa da razão
instrumental é o cerne e o resumo do pós-modernismo.
A negação da razão instrumental nasceu
na extrema-direita germânica na transição do século XVIII para o século XIX,
caracterizou a extrema-direita europeia ao longo do século XIX e das primeiras
décadas do século XX e foi transportada para a esquerda pela Escola de
Frankfurt, especialmente pela crítica de Adorno e Horkheimer ao Iluminismo. A
negação da razão instrumental é o fundamento do pós-modernismo, que se opõe a
ultrapassar a filosofia rumo a uma transformação do mundo.
Permeando todo o espectro político e
convertida num lugar-comum dos nossos dias, a negação da razão instrumental
serve para legitimar a barbárie ecologista, que pretende regressar a
tecnologias e níveis de produtividade pré-capitalistas, e constitui o
fundamento filosófico de uma nova versão do socialismo da miséria. Por isso a
crítica à ecologia constitui o alvo indispensável de uma renovação do
pensamento e da prática políticas.
Recorrer à razão instrumental é
simplesmente aceitar que uma actividade prática, prosseguida em condições
definidas rigorosamente, tenha um valor demonstrativo no plano ideológico. Ou
seja, é aceitar que as principais questões ideológicas se resolvem fora da
ideologia e que o objectivo último da actividade ideológica é exterior à
ideologia. Contra o irracionalismo filosófico, trata-se de recorrer à
racionalidade de uma prática rigorosa. Na sua crítica ao Iluminismo, Adorno e
Horkheimer consideraram negativamente qualquer prova pela experiência
laboratorial e pelos resultados práticos porque, implicando um domínio sobre a
natureza, a consideraram totalitária. Mas afirmar que o êxito prático é
contrário à perspectiva crítica não leva longe. Ao conhecido postulado de um
dos pontífices do pós-modernismo, de que não existe nada exterior ao texto, a
razão instrumental caracteriza-se por, em última instância, invalidar ou
confirmar o texto fora do texto.
A razão instrumental é a arquitecta
das grandes transformações e tem uma das suas demonstrações práticas nos
processos revolucionários.
A razão instrumental é um utensílio
intelectual e passou a fazer parte das tecnologias intelectuais que lhe
sucederam.
Do mesmo modo a escrita nasceu em
sociedades hierarquizadas, cuja elite dispunha de uma acumulação de bens
suficientemente volumosa para exigir registos duráveis. Foi para isso que
surgiu a escrita, originariamente uma técnica destinada a consolidar a riqueza
e o poder. A partir do momento em que foi criada, no entanto, a escrita pôde
ampliar muito o escopo dos registos e converteu-se num instrumento lógico do
pensamento, determinando o desenvolvimento de raciocínios sequenciais, com
todas as consequências que daí advêm. Ninguém hoje dispensa a escrita, usada
mesmo pelas pessoas contrárias à acumulação de poder e de fortunas e até por
quem prefere os raciocínios cíclicos aos sequenciais.
O mesmo se passa com a razão
instrumental. Tanto os pensadores e políticos de extrema-direita que primeiro
concentraram nela o seu furor como os universitários que seguem as pegadas da
Escola de Frankfurt e os filósofos pós-modernos tiveram e têm de recorrer à
razão instrumental para assegurar a sua sobrevivência prática numa sociedade em
que a actividade produtiva pressupõe a ciência e em que todo o sistema é regido
pela crescente divisão do trabalho. O que sucede hoje aos críticos da razão
instrumental é que as suas elaborações intelectuais são descoladas do meio
prático em que se inserem, o que aliás explica o carácter especulativo e o
estilo difuso dessas elaborações. Trata-se ainda de uma modalidade de falsa
consciência.
O pós-modernismo não se limita a ser
um projecto filosófico, ou talvez nem sequer o seja fundamentalmente, e a este
respeito é necessário considerar o equivalente à low art.
A literatura de auto-ajuda é a única
que muitas pessoas lêem, tanto mais que a própria religião passou a ser
entendida como uma auto-ajuda. Aliás, no estilo e na diagramação os manuais de
auto-ajuda obedecem ao modelo dos velhos catecismos, que eram a low art da
teologia. E os manuais de formação para profissionais qualificados seguem
igualmente o padrão da auto-ajuda. Com o mesmo efeito, as revistas de modas e
as páginas dedicadas às celebridades oferecem exemplos de vida garantidos pelo
sucesso. A fragmentação dos noticiários na televisão e nos jornais destinados
ao consumo popular destrói qualquer possibilidade de uma narrativa integrada ou
sequer provida de sequência temporal. A arquitectura interior dos centros
comerciais, onde muitas pessoas gastam a maior parte dos lazeres, constitui uma
encenação da fragmentação e da mutabilidade e parece conferir ao pós-modernismo
uma garantia material. Tudo isto e muito mais é a low art do pós-modernismo, sem
a qual ele não teria conseguido abarcar o círculo do horizonte.
A hegemonia alcançada pela indústria
cultural de massas fez com que o universo estético dos revolucionários passasse
a ser definido pela low art do pós-modernismo. Aquela arte que antes era ou
desejava ser não só a arte da revolução como uma arte revolucionária foi
esquecida. E como o carácter de qualquer expressão estética é definido pela sua
forma, a submissão à indústria cultural de massas atinge o ponto extremo nas
composições musicais em que o texto se pretende revolucionário enquanto a forma
obedece aos padrões da banalidade comercial. Esta tensão resultante de um
conteúdo impedido de se expressar por uma forma que lhe é contrária revela o
pauperismo ideológico e cultural da esquerda. Hoje, neste campo, o principal
inimigo é o lugar-comum.
Referências
A primeira frase citada de Salazar foi
proferida no discurso em que deu posse a António Ferro como director do
Secretariado da Propaganda Nacional, a 26 de Outubro de 1933, e a segunda frase
foi proferida no discurso por ocasião da tomada de posse dos novos dirigentes
da União Nacional, em 22 de Março de 1938, encontrando-se ambas em João Ameal
(org.) Anais da Revolução Nacional, [s. l.]: Majesta, 1956, respectivamente no
vol. III, pág. 263 e no vol. IV, pág. 222. Estas duas frases foram repetidas
por Salazar, praticamente sem alterações, no discurso de 26 de Fevereiro de
1940, citado em João Ameal, op. cit., vol. V, págs. 71 e 72. As declarações de
Hitler vêm citadas em Hermann Rauschning, Hitler m’a dit. Confidences
du Führer sur son Plan de Conquête du Monde, Paris: Coopération, 1939, pág.
238. Recentemente, na
sequência de uma obra de Wolfgang Hanel, vários historiadores puseram em dúvida
os relatos de Rauschning. Penso que Hugh Trevor-Roper formulou bem o problema
ao escrever, no prefácio a Hitler’s Table Talk, 1941-1944. His Private
Conversations, Nova Iorque: Enigma, 2000, pág. x: «Rauschning pode ter
ocasionalmente cedido a tentações jornalísticas, mas teve oportunidade de
registar as conversas de Hitler e o teor geral desses registos antecipa com
demasiada exactidão declarações posteriores de Hitler para que o possamos pôr
de lado como uma falsificação». Com efeito, é muito possível que não
encontremos transcrições literais no livro de Rauschning, o que se percebe pela
própria forma como está construído, mas trata-se da expressão do pensamento de
Hitler no estilo que lhe era habitual. A melhor validação daquela obra reside
no facto de as suas revelações corresponderem exactamente aos acontecimentos
posteriores à publicação e terem sido confirmadas pela documentação relativa às
ideias expressas por Hitler e por outros dignitários nazis, tanto mais que
muitas das declarações divulgadas por Rauschning não eram conhecidas na época.
A citação de Perón encontra-se em Hugo del Campo, Sindicalismo y Peronismo. Los
Comienzos de un Vínculo Perdurable, Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de
Ciencias Sociales, 1983, págs. 152-153. As frases citadas de Karl Jaspers estão
no seu livro La Culpabilité Allemande, Paris: Les Amis des Éditions de Minuit,
1948, pág. 205.
Este Manifesto será publicado em
quatro partes. A 1ª parte incide sobretudo na velha esquerda. Esta 2ª parte diz
respeito à esquerda pós-moderna. A 3ª parte versa questões organizacionais. Finalmente,
a 4ª parte trata do horizonte económico do anticapitalismo.
Nenhuma
forma de organização dispensa uma luta interna permanente contra a
burocratização.
III
Enquanto o leninismo ocupou um lugar
destacado no movimento operário o fetiche era a organização partidária e tudo o
mais lhe era sacrificado. A Terceira Internacional foi uma colossal máquina de
soprar o quente e o frio nas lutas conforme fosse mais conveniente para a
protecção e o crescimento das suas secções nacionais e depois da segunda guerra
mundial os partidos comunistas continuaram a aplicar a mesma orientação. O
fetichismo da organização partidária significava na prática a preservação da
sua burocracia dirigente, num processo de conversão das vanguardas em elites e
de rejuvenescimento das classes dominantes.
O risco hoje é que outras formas de
organização sejam fetichizadas. A esterilidade do pós-modernismo no plano da
teoria revolucionária é acompanhada pelo fetichismo no plano da organização
prática.
a. Tendo-se desinteressado de
transformar o mundo, a esquerda pós-moderna dedica-se à criação de microcosmos
paralelos. A afirmação de que tudo o que é pessoal é político tem como
corolário a redução do político ao pessoal. O modo de vida tornou-se, por si
só, político, o que significa que em vez de mudar o mundo basta viver de certa
maneira. Esta nova espécie de militância consiste em pertencer a comunidades
onde todos se assemelham ou se esforçam por assemelhar-se nos hábitos e no
comportamento. A inspiração destes microcosmos está muito perto da literatura
de auto-ajuda. Eles são a low art da política. É como se cada um passasse o
tempo numa sala de espelhos; pensam que são muitos porque só vêem a sua própria
imagem repetida. Anestesiados pelo facto de se sentirem bem, a existência contraditória
das relações sociais perde a realidade concreta, extinguindo-se assim a vontade
de mudar o que lhes desagrada. Em vez de serem um meio de acção, estes
microcosmos imunizam da acção.
As convicções dos participantes nesses
microcosmos expressam-se mediante rituais, por exemplo, andar de bicicleta ou
plantar hortas no meio da cidade. Ora, como sempre sucede, o ritual depressa se
sobrepõe ao conteúdo ideológico originário, dando corpo a novas modalidades de
fetichismo, com a correspondente alienação.
b. Outra forma de organização estimada
pelo pós-modernismo e apresentada como panaceia é a ocupação de lugares
públicos por multidões cujo único meio de inter-relacionamento são as redes
sociais.
Porém, em primeiro lugar, este tipo de
mobilizações é facilmente manipulável por pequenas minorias dissimuladas, já
que os participantes não se encontram previamente unidos por relações estáveis
de afinidade, quer de morada quer de trabalho. Uma minoria coerente é sempre
capaz de manobrar uma maioria inorgânica.
Em segundo lugar, enquanto estas
mobilizações se restringirem a lugares públicos, se mantiverem exteriores aos
processos de trabalho e não servirem para desencadear movimentos no interior
das empresas, elas deixam incólumes as relações de trabalho vigentes e podem
até servir-lhes de legitimação.
Em terceiro lugar, as ocupações de
espaços públicos convocadas pelas redes sociais ou se mostram impotentes para
impedir a rápida reversão das suas conquistas (Primavera Árabe) ou se revelam
incapazes de evitar o seu sequestro a partir de dentro por forças da direita (a
revolta dos coxinhas na sequência das manifestações de Junho de 2013 no Brasil)
ou servem igualmente de modelo de mobilização à direita e à extrema-direita
(Tailândia, Ucrânia) ou são encenações irrelevantes que convertem a política
numa estética inofensiva (occupy e acampadas).
Existem formas de organização que são,
sempre e em todas as circunstâncias, nocivas para a acção anticapitalista. Mas
não existem formas de organização que sejam, sempre e em todas as
circunstâncias, benéficas. A este respeito, a garantia funciona só no sentido
negativo.
Não existem formas de organização
ideais, que as imunizem da recuperação interna por novas burocracias ou externa
por forças da direita. Mas existem formas de organização que facilitam a luta
contra essas tentativas de recuperação. Afinal, nenhuma forma de organização
dispensa uma luta interna permanente contra a burocratização.
O que é ser anticapitalista numa época
de expansão do capitalismo? Como é que uma táctica revolucionária a curto prazo
pode deixar de ser recuperada e assimilada pelo capitalismo em expansão? Terão
os anticapitalistas de se iludir necessariamente a si mesmos?
A grande questão é a de saber como
formar organizações de luta que obtenham vitórias nas suas reivindicações sem
com isto serem incorporadas nas instituições estatais e passarem a servir como
mais uma fonte de legitimação do Estado capitalista. Estarão os revolucionários
da nossa época condenados a operar como Sísifo, erguendo um rochedo só para o
deixar cair? É urgente reflectir sobre a acção revolucionária, o que significa
que é urgente reconstruir um pensamento revolucionário.
A priori, não me parece que seja
possível, na sociedade complexa e diversificada em que vivemos, regressar à
situação de um sistema teórico revolucionário único, ou pelo menos hegemónico,
como sucedeu nas últimas décadas do século XIX e na primeira década e meia do
século XX. Mas devemos criar um quadro teórico comum, que permita o diálogo e a
polémica entre várias perspectivas de pensamento revolucionário. Não um
sistema, mas um quadro.
Não há actividade científica e
progresso científico sem direito ao erro. De início toda a novidade surge como
um erro, e o debate e a polémica servem para distinguir o inadequado do exacto.
Assim como nas ciências da natureza o debate não é apenas um confronto entre os
cientistas, mas entre cada um deles e e a respectiva prática ou experimentação
laboratorial, também na teoria revolucionária não se trata apenas da polémica
entre as várias perspectivas, mas do confronto de cada uma delas com a acção
prática, o que significa, com os factos da acção prática. Penso ser este o
postulado básico de uma democracia revolucionária.
A
classe trabalhadora prefere o capitalismo da abundância ao socialismo da
miséria, e continuará a rejeitar o socialismo enquanto este só lhe oferecer
exemplos de miséria.
IV
A maior parte do que agora se denomina
esquerda alheou-se do combate ao capitalismo como modo de produção, ou seja,
como sistema de relações sociais de trabalho. No entanto, seria este o único
sentido do anticapitalismo. A esquerda que não pretenda transformar
radicalmente as relações sociais de trabalho limita-se a ser uma das correntes
políticas do capitalismo.
A maioria da esquerda actual só se
preocupa com o trabalho quando ele não existe. Quero dizer que essa esquerda se
inquieta justificadamente com o desemprego e o part-time; mas,
injustificadamente, parece esquecer que o assalariamento é o motor da
acumulação de capital. É a esquerda do conformismo e não da ruptura. O emprego
não é a solução para o desemprego. Só a liquidação do capitalismo poderá
solucionar tanto o desemprego como este emprego.
Para a maior parte do que agora se
denomina esquerda o combate ao capitalismo foi substituído por uma crítica
parcial, que põe apenas em causa o sistema financeiro, considerado improdutivo,
no sentido de economicamente inútil e, portanto, gerador de lucros
injustificados e necessariamente especulativos. Aliás, a noção de que haveria
um «capital produtivo», com raízes nacionais, oposto a um «capital
especulativo», de carácter internacional, surgiu originariamente nos meios da
extrema-direita europeia nos primeiros anos do século XX e tornou-se um dos
elementos constitutivos da ideologia fascista precisamente em virtude do
carácter nacionalista que lhe está subjacente. A redução do anticapitalismo ao
ataque ao sistema financeiro situa perigosamente a maioria da esquerda actual numa
linhagem que atravessa o fascismo.
Este tipo de noções é improcedente
porque o capitalismo, desde a sua génese, não funciona sem o crédito, que
constitui um factor tão indispensável como qualquer outro para o crescimento da
economia. O crédito contribui para articular espaços, fornecendo os capitais
acumulados num lugar aos empreendimentos que só assim poderão nascer noutros
lugares, e para articular tempos, adiantando capitais acumulados agora tendo em
vista a ampliação da actividade económica no futuro ou antecipando lucros
futuros para ampliar agora a actividade económica. E como o capitalismo,
contrariamente a todos os modos de produção anteriores, é dinâmico e não
estático, só através do crédito ele se desenvolve e o faz de maneira integrada.
Aqueles ataques têm como alvo um sistema financeiro imaginário, não
correspondente ao sistema financeiro real, que tem outras funções e obedece a
outros mecanismos. São críticas que mais parecem dever-se a nostálgicos do
mercantilismo.
A noção de que o capitalismo poderia
funcionar, e funcionar melhor, sem o sistema financeiro é de tal modo
incompatível com a análise histórica e com a teoria económica que os motivos
para a sua divulgação devem ser procurados noutro plano. Com efeito, apesar de
o capitalismo se ter internacionalizado e depois transnacionalizado, um grande
número de empresas funciona em âmbitos nacionais, eventualmente como
subcontratantes de companhias transnacionais. No sistema financeiro actual,
porém, todos os empreendimentos são directamente supranacionais. Assim, a
concentração das críticas no sector financeiro é uma das expressões ideológicas
do nacionalismo. Ao apresentar como único inimigo as operações mais
globalizadas do capital, a maior parte da esquerda está a promover a diluição
dos interesses dos trabalhadores de cada país nos anseios dos pequenos e médios
patrões desses países. E assim se legitima o fundamento do capitalismo, que
consiste nas relações sociais de trabalho vigentes em todas as empresas,
qualquer que seja a sua dimensão e sejam elas agrícolas, industriais ou de
serviços, incluindo os serviços financeiros. Empresas operantes num quadro
nacional podem sentir-se em contradição com o sistema financeiro operante no
âmbito supranacional, mas para os trabalhadores, onde quer que laborem,
qualquer contradição que não os oponha globalmente a todas as formas de capital
só pode ser uma variante da falsa consciência, que neste caso é a inconsciência
de uma conciliação entre classes.
A ocorrência de graves perturbações na
regulação do sistema financeiro foi interpretada pela esquerda como uma crise
do capitalismo, quando o que desde há mais tempo se vem a verificar é uma crise
no interior do capitalismo, em que os antigos centros entraram em declínio
enquanto surgiu um conjunto de novos centros. A reestruturação pós-fordista das
relações de produção, geralmente denominada toyotismo, incluindo a
flexibilidade suplementar garantida pela subcontratação de fases da cadeia
produtiva e a flexibilização das relações de trabalho, marcou o início de um
novo ciclo do processo de extorsão de mais-valia e uma etapa superior na
acumulação do capital. Nada disto indica uma crise do capitalismo mas, pelo
contrário, uma crise da capacidade de resistência dos trabalhadores.
Na clássica dicotomia socialismo ou
barbárie, o socialismo não se confronta só com a barbárie do capitalismo.
Confronta-se igualmente com a ameaça de barbárie proveniente daquela esquerda
ecologista que, pretendendo ultrapassar o capitalismo ou fundar microcosmos
paralelos, se propõe restaurar formas sociais e níveis de produtividade
pré-capitalistas. Essa esquerda da barbárie acusa a classe trabalhadora de
estar integrada no capitalismo, de aceitar a integração e já não desempenhar
nenhum papel histórico revolucionário. O que se passa, no entanto, é que a
classe trabalhadora prefere o capitalismo da abundância ao socialismo da
miséria, e continuará a rejeitar o socialismo enquanto este só lhe oferecer
exemplos de miséria. As lutas da classe trabalhadora, tal como têm existido até
hoje, são o único obstáculo à fusão daquelas duas barbáries, a barbárie
constituída pelo capitalismo e a barbárie promovida pela esquerda ecologista.
Enquanto lutarem, os trabalhadores
exercerão pressões para trabalhar menos e ganhar mais, com o duplo efeito de,
por um lado, estimular a produtividade dos meios técnicos existentes e a
criação de novos meios técnicos mais produtivos e, por outro lado, aumentar a
abundância e a diversidade do consumo. Será necessária a imposição de uma
ditadura económica de mais-valia absoluta, sustentada política e
ideologicamente pelos ecologistas, para pôr termo às lutas pela redução do
tempo de trabalho e pelo aumento da remuneração. Mas neste caso o capitalismo
tenderá a ser substituído por um novo modo de produção, afim daquele escravismo
de Estado que os SS implantaram nos territórios eslavos ocupados durante a
segunda guerra mundial e que os Khmers Vermelhos instauraram no Cambodja na
segunda metade da década de 1970. Seria esta a barbárie de um modo de produção
pós-capitalista.
É especialmente perverso o argumento
de que, tendo o capitalismo atingido um alto grau de produtividade e
conseguindo caminhar rumo à abundância, uma crítica radical implicaria a recusa
de qualquer tecnologia que sustente a produtividade e a abundância.
Decerto a tecnologia é uma
materialização de relações sociais, pelo que a liquidação do capitalismo
implicará obrigatoriamente uma nova tecnologia. A classe trabalhadora é dotada
de uma estrutura social e de formas de organização interna que podem ir desde
as silenciosas até às explícitas, e estas formas, no seu desenvolvimento,
imporão uma nova tecnologia. Não se trata aqui apenas de um futuro distante mas
já do presente, porque as lutas práticas contra o capitalismo, além da sua
expressão social, têm igualmente uma expressão técnica material. A sabotagem
individual, uma das formas mais antigas e disseminadas de luta pela redução dos
ritmos de trabalho, implica a tal ponto a criação de novas técnicas que a
própria palavra vem do termo francês sabot, o tamanco de madeira que o
operário, como que acidentalmente, deixava cair nas engrenagens, também de
madeira, para as travar. Até a mera preguiça não se exerce sem técnicas que
suspendam ou pelo menos atenuem a pressão dos meios de produção.
Estas são técnicas defensivas,
destinadas somente a moderar os efeitos da tecnologia capitalista, mas quando a
classe trabalhadora passa à ofensiva e enceta processos duradouros de
autogestão — com a condição de se tratar realmente de autogestão — começam
então a ser aplicadas pequenas mudanças técnicas relacionadas com o controlo da
produção pelo colectivo dos produtores. Uma tecnologia é uma estrutura global
que conjuga de maneira sistemática e organizada um grande número de técnicas
particulares, e antes que se defina uma nova tecnologia aparecem alterações de
detalhe que pouco a pouco vão modificando o carácter das técnicas vigentes.
Assim, quando menciono a necessidade
de manter e ampliar a produtividade e a abundância, isto em nada pressupõe a
conservação da tecnologia capitalista. O que afirmo é a necessidade de que as
novas técnicas originadas pelo desenvolvimento das relações sociais de luta e a
nova tecnologia em que futuramente se hão-de articular em conjunto sejam
produtivas e gerem abundância mediante formas materiais e sociais distintas das
usadas no capitalismo.
Se pretendermos lutar contra o
capitalismo sem correr o risco de cair no socialismo da miséria, a grande
questão é: como pode instaurar-se uma organização política igualitária e
comunitária numa sociedade e numa economia muito complexas, baseadas na divisão
do trabalho e que já não permitem a rotatividade em todas as funções? Este tipo
de sociedade não dispensa o mercado nem o dinheiro e exige uma coordenação.
Como frequentemente se confundem os conceitos com as palavras e se ignora a
diversidade intrínseca dos conceitos sob a aparente uniformidade das palavras,
é indispensável verificar o significado de cada um destes três termos.
a. Os mercados precederam de milénios
o capitalismo e, além disso, não pressupõem necessariamente a existência de
relações de exploração, como mostram os estudos históricos e antropológicos. Os
mercados também não pressupõem necessariamente a existência de propriedade
privada e serviram em vários casos para inter-relacionar colectividades
proprietárias. Ao longo do tempo, os mercados têm-se revelado uma instituição
plástica, adaptável e sempre em mutação, e é impossível definir num plano
trans-histórico leis do mercado.
Mesmo referindo-nos ao capitalismo
actual, só o hábito nos faz empregar uma mesma palavra para designar tipos de
mercado diferentes e com leis de funcionamento distintas. No mercado de
trabalho a livre concorrência funciona apenas entre os trabalhadores, com a
condição de os sindicatos não desempenharem um papel relevante, já que a livre
concorrência será tanto mais acentuada quanto mais fragmentada estiver a classe
trabalhadora. Mas em sentido inverso a livre concorrência não funciona no
mercado de trabalho, porque as empresas, enquanto compradoras de tempo de
trabalho, encontram-se numa situação oligopsonista, que tenderá tanto mais para
monopsonista quanto mais os capitalistas se coordenarem nos confrontos de
classe. Na outra modalidade da relação entre as empresas e os trabalhadores,
quando estes se apresentam enquanto compradores de bens e serviços, a regra é
ainda a assimetria, existindo livre concorrência do lado dos consumidores, mas
existindo oligopolismo ou monopolismo do lado dos vendedores. Nas relações
entre grandes empresas a livre concorrência já não funciona e foi substituída
por formas de acordo, que não precisam sequer de ser convencionados
explicitamente. Por sua vez, nas relações entre as grandes empresas e as
pequenas e médias firmas subcontratadas vigora de um lado uma relação
oligopsonista ou integralmente monopsonista enquanto do outro vigora uma
relação tanto mais concorrencial quanto mais fraccionadas estiverem as empresas
subcontratadas. Estes vários tipos de mercado obedecem a regras distintas e
executam funções diferentes no interior do mesmo modo de produção. Uma das
potencialidades do capitalismo é a sua capacidade de articular mercados muito
diversos. Nesta situação, usar neoliberalismo como conceito e mencionar o
mercado em geral, como é corrente na esquerda, corresponde a participar num
mito ideológico.
b. O dinheiro coexistiu com os mais
variados modos de produção, incluindo algumas sociedades sem exploração.
Aquelas pessoas que não imaginam a
possibilidade de superar o capitalismo sem abolir o dinheiro deveriam meditar
sobre as tentativas de supressão do dinheiro levadas a cabo pelos anarquistas
na Catalunha e em Aragão durante a guerra civil, que demonstraram, afinal, a
plasticidade do dinheiro e o seu ressurgimento nas novas condições sociais. Num
artigo publicado há mais de trinta anos mostrei que essas tentativas
resultaram, por um lado, na manutenção do dinheiro enquanto unidade
contabilística usada em sistema de clearing; por outro lado, na substituição do
dinheiro emitido centralmente por senhas e vales de emissão municipal, os quais
foram empregues para algumas das funções de dinheiro e constituíram uma forma
de para-dinheiro. Aliás, o facto de as tentativas de abolição do dinheiro terem
levado a um resultado oposto ao pretendido seria já previsível a partir do que
sucedera na Rússia soviética durante o chamado comunismo de guerra. Outros
casos extremos confirmam que nas sociedades modernas, sempre que a emissão
central de dinheiro se torna insatisfatória, quer pela insuficiência do volume
de dinheiro em circulação quer por uma acentuada e rápida perda de valor das
unidades monetárias, surgem formas pecuniárias devidas à iniciativa dos
particulares.
O dinheiro dá corpo a uma abstracção.
Historicamente, nas sociedades em que o dinheiro teve relevância o pensamento
abstracto ocupou um lugar importante na actividade intelectual. E numa
sociedade evoluída como a de hoje, em que cabe a hegemonia ao raciocínio
abstracto, o dinheiro permeia todas as relações. Mas de que modo o faz, esta é
a questão, tal como é uma questão também a maneira como as abstracções se
articulam e estruturam o pensamento. Assim como existiram e virão a existir
diferentes sistemas de pensamento abstracto, também existiram e existirão
diferentes formas de dinheiro. Pretender a abolição do dinheiro numa economia
evoluída é uma utopia, porque isso implicaria a instauração de uma sociedade em
que a abstracção não tivesse a primazia. O primitivismo económico seria acompanhado
pelo primitivismo lógico.
Em qualquer das suas modalidades e em
todos os sistemas económico-sociais em que vigorou, o dinheiro serviu e serve
acima de tudo como transmissor de informação. A relação é muito estreita entre
o dinheiro e a linguagem, e do estruturalismo linguístico podem extrair-se
lições teóricas proveitosas para o estudo dos fenómenos pecuniários. Pretender
que o dinheiro seria, por si só, um factor de reificação é como pretender que a
linguagem seria obrigatoriamente um meio de dissimulação ou de distorção. A
reificação não é gerada pelo mercado nem pelo dinheiro mas pelas relações
sociais estabelecidas nos processos de produção de bens e serviços, materiais e
imateriais. Sistemas de trabalho igualitários determinarão a fundação de novos
tipos de mercado nas relações entre os colectivos produtores e a criação de
novas formas de dinheiro nas relações intercolectivas e interpessoais.
c. Uma sociedade complexa, que requer
a divisão do trabalho, exige igualmente instituições coordenadoras. No processo
de derrube do capitalismo, a rotatividade não pode incluir a esmagadora maioria
das funções nem pode presumir-se a ausência de especialização e de divisão do
trabalho. A rotatividade deve conceber-se nas funções de direcção, com a condição
de a direcção ser entendida como coordenação.
Essa coordenação não deve caber ao
Estado, sob pena de se construir um novo capitalismo de Estado. O Estado não é
um espaço neutro que possa puxar-se para um lado ou para o outro, mas uma
estrutura que impõe leis e direcções próprias a todos os elementos que a
compõem. Um socialismo que herde uma sociedade complexa e queira prossegui-la
tem de destruir o Estado e de o substituir por um novo tipo de instituições
coordenadoras. Ora, uma sociedade baseada num colectivismo de produtores e
recorrendo ao mercado e ao dinheiro como instrumentos de inter-relacionamento
pode evitar a centralização, que é um dos factores de existência do Estado,
pois o mercado e o dinheiro permitem a conexão descentralizada.
Para isso o novo tipo de democracia
revolucionária deve recorrer a uma coordenação sustentada pela informática e em
geral pelos meios de comunicação electrónicos. Há uma notável afinidade entre a
circulação do dinheiro e as redes electrónicas. Se o dinheiro serve de transmissor
de informação e em boa medida deve ser concebido na perspectiva da linguagem, o
mesmo sucede com as redes informáticas. Ora, se estas redes veiculam hoje uma
recolha de informações que segue da periferia em direcção ao centro e de
emanação de decisões que vai do centro para a periferia, elas têm condições
técnicas para sustentar percursos inversos, em que instituições coordenadoras
recebam as decisões emanadas da periferia, as articulem e as reenviem para a
periferia, juntamente com novos fluxos de informação. A possibilidade de os
meios de comunicação electrónicos se desenvolverem de uma maneira ou de outra
depende das relações de força políticas prevalecentes.
Só assim poderá instaurar-se uma
democraticidade que não coloque em risco a produtividade e sustente um
socialismo da abundância.
Para que uma sociedade autogerida não
leve à barbárie da falta de produtividade e do primitivismo tecnológico é
necessário que a complexidade não sirva de pretexto à ignorância e que todos
queiram aprender a gerir. Se o interesse e a competência generalizados e uma
divisão do trabalho igualitária forem uma utopia irrealizável, então será
impossível a autogestão da abundância e teremos de optar entre uma abundância
gerida por outros ou a autogestão da miséria. Toda a questão do comunismo é
esta.
Ora, o aparecimento do punk-rock
constituiu uma colossal ruptura política, afirmando o direito dos que não têm
voz a cantar, dos que não têm ouvido a compor, dos que não sabem tocar a tocar.
A partir de então não se parou e a ignorância e a inaptidão deixaram de
constituir obstáculo às pretensões. A democracia assumiu um novo sentido, não é
mais a luta pelo direito a todos aprenderem o que quiserem saber e passou a ser
a afirmação de que é desnecessário saber o que quer que seja. A internet é
usada como infra-estrutura desta punk-incultura. Tudo o que assim se poderá
obter é a autogestão da miséria. Na época da punk-democracia, é desta verdade
profunda que deve partir qualquer programa de reforma da esquerda
anticapitalista.
Para reconstruir uma esquerda
anticapitalista ou, mais exactamente, para reconstruir o anticapitalismo no
espaço que hoje se denomina esquerda, temos de partir quase do zero.
Referências
Este Manifesto foi publicado em quatro
partes. A 1ª parte incide sobretudo na velha esquerda. A 2ª parte diz respeito
à esquerda pós-moderna. A 3ª parte versa questões organizacionais. Finalmente,
esta 4ª parte trata do horizonte económico do anticapitalismo.
Muito bom esse texto. Confesso que me deu um nó no cérebro, mas me fez pensar em muita questões. O comentário final sobre punk-rock me deixou intrigado, será que ele tem conhecimento de causa?
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